Abraçados aos quadris fartos da mãe, os cinco filhos de Francisca Iolanda atravessaram Fortaleza quando a família decidiu abandonar as então lonjuras dos casebres no Jardim América para construir moradia na antiga Praia de Iracema - nos olhos infantis, o espanto com a imensidão do mar engolindo lindo. Era 1971. Iolanda tinha apenas 24 anos e já se esparramava pela Capital feito onda forte rebentada na areia: chegou ao Poço da Draga quase por acaso, determinada a evitar o exaustivo percurso diário que o marido traçava até a faixa litorânea para trabalhar.
Na comunidade, partilhando cadeiras na calçada para catar feijão e pastorear seus meninos e os da vizinhas, sentiu já nos primeiros dias o peso de uma Cidade em disputa. "Eu estava trocando o piso da minha casa, logo que cheguei aqui, quando um pessoal da Prefeitura me disse para não perder tempo porque a gente já sairia mesmo. Foi há quase 50 anos. Eu não saio daqui de jeito nenhum".
Localizado em uma região alvo de forte especulação imobiliária, precisamente entre o Centro e a Praia de Iracema, o Poço da Draga é um retrato cru dessa Fortaleza tão desigual: a comunidade centenária está incrustada entre equipamentos culturais e comércios luxuosos como o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e os escombros do incerto Acquario Ceará, mas sequer tem saneamento básico. É feito uma rusga na paisagem urbana estéril, lembrança incômoda de uma Cidade negada nos mapas do Meireles, da Aldeota, do Papicu. "O Poço da Draga, para eles, é uma ferida. Parece que as periferias são como os índios que os portugueses fingiram não existir quando chegaram ao Brasil, sabe? Tem gente que não sabe nem que isso aqui existe", continua a moradora.
Na contramão do esquecimento, dona Iolanda conta e reconta histórias da localidade nos saraus que organiza mensalmente em sua casa - "abertos a todos", convida. Aos 72 anos, a chamada "Madrinha do Poço da Draga" é uma das guardiãs da memória da comunidade. "Eu já não lembro como surgiu essa ideia, eu não sabia nem o que era sarau há uns quatro ou cinco anos. Mas as pessoas se reuniam no Pavilhão Atlântico para ler poesia, tocar bandolim, cantar. Um dia, perguntaram quem sabia declamar uma poesia. 'Eu!'". Em voz pausada, recitou os versos de O milagre do nordeste, do pernambucano Olegário Mariano. Os poemas, aprendidos ainda no tempo de escola, transformaram a vivência de dona Iolanda no Poço. "Nos encontros, eu sempre lembro que cheguei aqui quando não tinha nem água encanada ainda. É muita coisa, viu? Ali atrás tinha um poço que, quando a maré enchia, transbordava. Os pescadores pescavam quando estava cheio e, quando secava, os meninos jogavam bola lá. Voltavam todos melados da lama", ri-se. Nos livros e experiências trocadas nos saraus, madrinha Iolanda descobriu outras tantas cidades possíveis.
"Eu já vi muita ameaça de remoção por aqui. Querem nos expulsar, mas você já viu pescador ir morar no sertão?", questiona. Na Fortaleza de dona Iolanda, o Poço da Draga é família. Lá criou seus cinco filhos e gestou mais um, observou as correrias dos nove netos pelos becos e vielas da comunidade e embala duas bisnetas. "Quando a gente vive muito tempo em um canto, cria raiz". Apontando para as duas árvores em sua calçada, lembra: "Se você arrancar essas árvores daí para plantar em outro canto, elas morrem". No enfrentamento dessa lógica vertical de produção da vida urbana, onde tudo flutua, a Cidade no Poço se enraiza e permanece.