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No universo dos intocáveis
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No universo dos intocáveis

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Pastor Jamielson Simões, em cima do antigo aterro do Jangurussu coberta pelo mato (Foto: EVILÁZIO BEZERRA)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA Pastor Jamielson Simões, em cima do antigo aterro do Jangurussu coberta pelo mato

Jamieson Simões (ou pastor Simões), 43 anos, teólogo, "defensor dos direitos humanos por paixão", conselheiro do O POVO e ex-candidato ao Senado (nas eleições de 2018, pelo PSol), mora na "última rua do Bom Sucesso e na primeira rua do Bom Jardim". A trajetória que faz, pela vida e pela Cidade, é de cruzar limites, ultrapassar distâncias.

Filho da "diáspora nordestina" que levou os pais cearenses à guerra da borracha no Norte (anos 40), nasceu em Belém (Pará). E foi criado "no miolo do Bom Jardim" ou "no lugar da exceção", um dos cinco bairros mais vulneráveis de Fortaleza - com piores indicadores sociais e econômicos (dados do Centro Cultural Grande Bom Jardim) e estigmatizado pela violência. Onde, ele conta, não havia água e, aos 12, 13 anos, enquanto varria a calçada de casa, foi agredido por um policial com um revólver e recebeu a sentença de "vagabundo" pelo furto de uma bolsa, "mas que bolsa?", que aconteceu no bairro. Ele era o negro-pobre no meio do caminho: "Quando eu me levantei (da agressão), entendi tudo. Entendi a vida".

Na infância, pastor Simões já ia de uma Fortaleza a outra, de "uma cidade que não tinha nada" a "uma cidade que tinha tudo", levar o almoço da irmã que trabalhava no shopping e lhe recomendava: não olhe nos olhos dos outros. Ele sempre olhou, contrapõe, e, na Força Aérea, onde esteve porque precisava do salário e "não se tem escolha quando se tem necessidade", deixou de acreditar na "violência como mediadora".

Salvou-se pela fé, por livros e pelo karatê, soma. Pastor Simões fala em espiritualidade, "que vai me dizer que vivemos em uma casa comum", ao invés de religião, que "vai me separar das pessoas". E gosta de lembrar um alimento que a mãe, pouco alfabetizada, dava aos dez filhos que criou em par com um vigilante: as histórias de Robinson Crusoé e dos irmãos Grimm. "A outra coisa é que tive acesso ao esporte cedo e, aí, fui canalizando minha raiva do mundo", une ao respeito que obteve por ser atleta, inclusive, da seleção brasileira. As pessoas passaram a torcer por ele.

É pela própria história que chega às distâncias de Fortaleza, vai até o universo dos intocáveis. Ele partiu do Lagamar e das palavras, nos anos 2000, quando conhecidos lhe pediram para mediar conflitos entre as gangues. Por saber "falar com as pessoas", reflete, acordou que o tiroteio parasse na hora das aulas.

E, depois que um menino foi morto, "por engano", pelo tráfico, na comunidade Barro Vermelho, ele proibiu outros 600 meninos de morrer. Com "a tia da cozinha" e educadores de um projeto social, segurou a vida dessas crianças "por um ano", com cultura e comida de domingo a domingo, até que a equipe e os recursos se exauriram.

Esta entrevista foi entre o Bom Jardim e a antiga rampa de lixo do Jangurussu, onde os limites de vida e de cidadania também se esgarçam. De onde se avista Fortaleza, ainda que Fortaleza não veja a rampa. Lá e ainda no Conjunto Palmeiras e em Santa Filomena, pastor Simões apoia o projeto Meninos de Deus. Um nome para abarcar crianças que ninguém quer: abandonadas por famílias e refugiadas no crime.

"Os meninos de Deus são a última linha", são as infâncias ao Deus-dará, "Existem muitas", encara, com uma bola de futebol nas mãos e uma utopia nos pés. É possível amar Fortaleza e mudar as coisas e as pessoas, ele caminha com os intocáveis. "Tenho medo todo dia... Mas o medo não pode me impedir de amar", segue, em comissões da Assembleia Legislativa, contra o homicídio de crianças e adolescentes. "Mas olhe para isso: a gente está circundado de vida! Todo mundo aqui tem um sonho, um prazer, uma esperança. Tem coisa mais potente do que isso?", insiste, da rampa do Jangurussu.

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