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O tesouro perdido dos céus cearenses
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O tesouro perdido dos céus cearenses

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Céu sobre o Sertão: a astronomia foi uma das novidades que a Comissão Científica de Exploração levou ao Ceará (Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES Céu sobre o Sertão: a astronomia foi uma das novidades que a Comissão Científica de Exploração levou ao Ceará

Um telescópio, sete teodolitos, duas lunetas zenitais, dois pluviômetros e mais duas dezenas de aparelhos de nomes complicados: todos equipamentos que jamais haviam medido antes os sertões cearenses. Talvez o segmento da Comissão Científica de Exploração com menos resultados, a Seção Astronômica e Geográfica ficou marcada por intempéries e possuía, por incrível que pareça, relação determinante para a busca de minerais preciosos no Ceará.

“Havia o interesse de coletar informações sobre tudo, quaisquer coisas extraordinárias (...) a Seção Astronômica tinha essa missão, catalogar eventos climáticos, algo que chamasse atenção, pudesse ser significativo”, diz Emerson Ferreira de Almeida, diretor do Museu do Eclipse de Sobral. “A presença de anomalias magnéticas pode indicar depósitos minerais no subsolo, por exemplo, então por isso essa importância desse trabalho”, explica.

Boa parte dos equipamentos e materiais coletados pela Seção liderada pelo Giacomo Raja Gabaglia, no entanto, acabou afundando junto com o “Palpite”, embarcação que naufragou no litoral de Camocim em março de 1861. “O trabalho dessa Seção se dava em duas etapas: primeiro, se coletaram as informações, que em um momento posterior seriam analisadas em laboratório. Infelizmente, essa segunda etapa jamais chegou a ser realizada”, diz Emerson.

Carta de Francisco Freire Alemão, de abril de 1861, chegava inclusive a pedir auxílio do então presidente da província, Antônio Marcelino Nunes Gonçalves, na recuperação de parte do material naufragado: "Não constando como, nem onde se fez este naufrágio, nem se se salvou alguma cousa ou se haverá possibilidade de salvar-se, rogo a Vossa Excelência que se sirva dar as providências que julgar necessárias para que as autoridades locais procurem salvar, se for possível, essa bagagem, pois nela se achavam objetos de subido valor para a Comissão, como são livros e registros de observações”.

Por conta do naufrágio, os trabalhos – que já haviam sido retardados pela dificuldade em transportar os grandes e frágeis equipamentos pelo Interior – acabaram quase todos perdidos. “Esses registros astronômicos desapareceram, primeiro pelo naufrágio, depois pelo incêndio recente no Museu Histórico Nacional”. O embaraço foi tanto que, ao contrário dos demais grupos, a Seção Astronômica e Geográfica jamais publicou relatório de seus trabalhos.

Anos mais tarde, em 1878, o chefe da Seção Mineralógica e Geológica, Guilherme de Capanema, chegou a denunciar que as observações, determinações e estudos da Seção Astronômica e Geográfica ainda existiam, mas estavam em mãos particulares. O naturalista chegou a cobrar que o governo reavesse os documentos, o que nunca ocorreu.

A vocação sobralense

Décadas após a passagem da Seção Astronômica e Geográfica pelo Ceará, o Interior do Estado voltou a cruzar novamente a história da astronomia. Dessa vez, no entanto, resultados das pesquisas foram em sentido oposto ao fiasco do grupo chefiado por Raja Gabaglia: em maio de 1919, o município de Sobral serviu de palco para experimento que provou a Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.

Segundo Emerson Ferreira, o município cearense foi escolhido para o experimento com um eclipse por uma série de questões objetivas. "Além de a sombra da lua passar sobre Sobral, havia várias condições logísticas envolvidas, como ligação próxima com o Porto de Camocim, na época um dos principais da região, comunicação telegráfica e até facilidades de estrutura para receber os astrônomos e cientistas.

No experimento, foram registradas diversas fotos do céu em telescópios de alta precisão antes e no momento exato do eclipse. Segundo a teoria de Einstein, a massa do sol teria influência sobre os astros, distorcendo a distância entre as estrelas durante o fenômeno. Ao examinar os dados coletados em Sobral, ficou confirmada diferença nas medidas na "espessura de um fio de cabelo" - o bastante para comprovar a tese do cientista alemão.

O mesmo experimento foi conduzido ao mesmo tempo na ilha do Príncipe, na África, mas não obteve resultados satisfatórios por conta de condições climáticas. Anos mais tarde, em 1999, seria inaugurado na Praça do Patrocínio de Sobral, onde foi realizado o experimento, o Museu do Eclipse e o Observatório Astronômico Henrique Morize.

O calor no Ceará

Francisco Freire Alemão fala bastante do calor e do quanto fica suado no Ceará. "Não indica o termômetro forte calor, mas a demasiada umidade do ar produz copiosa transpiração" (p. 489). Porém, a impressão do chefe da seção Geológica, acostumado ao clima serrano do Rio de Janeiro, não é a mesma dos fortalezenses com o clima naqueles dias chuvosos. "As senhoras todas, [uma] a uma dizem que de manhã quase morrem de frio. Os machos mesmo, o Sr. Viana me disse que esta noite passada cobriu-se com cobertor! E que teve muito frio", escreveu sobre aquele mesmo 12 de junho (Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão, Fundação Waldemar Alcântara, 2011).

Um cometa é avistado em Fortaleza

Francisco Freire Alemão estava sentado à janela da casa da família Bezerra quando chega Giácomo Gabaglia. Eram 21 horas de 2 de julho de 1861. O chefe da seção Astronômica mostra uma lista branca no céu. "(...) era a cauda do cometa, que tem aparecido de madrugada. Não se vê o núcleo, que está abaixo do horizonte, mas a cauda parte daí e chega até o meio do céu, confundindo-se com a Via Láctea" (Diário de Viagem, 2011). "(...) é uma lista nebulosa, que na aparência pode ser duas braças, e com igual largura em toda a extensão, só varia um pouco quanto à intensidade da luz, que no alto é mais apagada, e a sua direção, quase de norte a sul" (p. 545).

A "chuva do caju" e além

No seu relatório ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Francisco Freire Alemão fala de um tipo peculiar de chuvas. "Nos bons anos aparecem algumas chuvas vagas, incertas, nos meses de outubro e novembro, a que chamam 'chuvas-de-caju'". O mestre mateiro José Carneiro conta que não eram apenas as "chuvas do caju". "Tem a chuva do caju no litoral, mas, na nossa serra, temos no mês de outubro a chuva da manga. A tradicional chuva do café, entre o fim de setembro e o começo de outubro. Com a influência do homem, a degradação, elas não estão mais frequentemente".

A "seca artificial" que o sertanejo cria

Nem só a falta de chuvas provoca seca, constatou há 160 anos a Comissão Científica de Exploração. Existe outro tipo, a "seca artificial". Ela é criada pelos próprios sertanejos, chama atenção Giácomo Raja Gabaglia em Ensaios sobre alguns melhoramentos tendentes à prosperidade da província do Ceará (em A seca no Ceará. Escritos de Guilherme Capanema e Raja Gabaglia. Museu do Ceará, 2006. p.69-70).

"Se a irregularidade ou escassez das águas pluviais, ou simplesmente suas oscilações, geram tantos danos ao povo do Ceará, outra sorte de seca artificial preparada pelos próprios habitantes com vigor colossal vai imperando e concorrendo para agravar o mal: refiro-me às extensas queimadas que algumas vezes vingam durante semanas e na distância de léguas, transformando em inóspitos descampados os terrenos pouco antes cobertos de viçosas e verdejantes capoeiras e de uma pastagem abundante".

Em 2019, o Ceará registrou 4.304 focos de incêndio detectados por satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O sertanejo ainda cria a seca de que se amaldiçoa. O passado ainda é presente e o presente é o passado.

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