A glória e a tragédia caminharam juntas na trajetória de Diego Armando Maradona. "O mais humano dos deuses", como definiu o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940–2015), morreu ontem aos 60 anos após parada cardiorrespiratória. É o ponto final da história em vida do maior ídolo do futebol argentino, repleta de altos e baixos. O legado do Pibe de Oro, entretanto, não acaba. É eterno.
Maradona estava se recuperado de delicada cirurgia no cérebro, realizada no começo do mês. Ele não resistiu ao mal súbito e morreu na própria casa, situada em Tigre, zona metropolitana de Buenos Aires. O governo argentino declarou luto oficial de três dias. O corpo do eterno camisa 10 será velado na Casa Rosada, sede da presidência da Argentina.
El Diez teve uma vida carregada de excessos, dividida entre a faceta do gênio divino do futebol e da imperfeição humana. Trajetória marcada por dribles e gols memoráveis, como La Mano de Dios, quando marcou sobre a Inglaterra usando a mão para vencer a disputa aérea com o goleiro inglês Peter Shilton, na Copa do Mundo de 1986. No mesmo jogo, passou por metade do time da Inglaterra, inclusive pelo arqueiro, para fazer o "gol do século".
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Naquele Mundial, Maradona mostrou o melhor do seu repertório "mágico" e carregou nas costas o frágil escrete argentino ao bi na Copa do Mundo. Desempenho histórico para colocá-lo na prateleira dos deuses do futebol.
Don Diego transformou o Napoli, clube tradicional da Itália, mas sem expressão no Velho Continente em termos de conquistas, numa potência europeia na época. O camisa 10 provocou uma revolução entre 1984 e 1991 e levou os celestes ao primeiro título do Campeonato Italiano, considerado então a liga mais forte disparada, e da Copa da Uefa, entre outros.
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O craque argentino disputou, durante a carreira como jogador, quatros Mundiais, entre 1982 e 1994. Na edição seguinte ao bi da Argentina, comandou a seleção até o vice em 1990 — Copa que ficou marcada para o Brasil pela dolorosa eliminação para os hermanos, que teve passe de Maradona e gol de Caniggia.
Diego vestiu ainda as camisas de equipes como o Boca Juniors, onde fez história, e o Barcelona, em que teve menor brilho. Foi ainda treinador, sendo o comandante da Argentina na desastrada Copa do Mundo de 2010, quando fez parceria com Lionel Messi. Até ontem era técnico do Gimnasia y Esgrima, mas estava afastado por questões de saúde.
Paralela à carreira, Maradona colecionou polêmicas e precisou driblar a morte em meio ao vício em drogas e o consumo excessivo de álcool. Por uso de cocaína, ele chegou a ser suspenso após ser pego no doping em 1991, quando era o ídolo máximo no esporte, campeão mundial e Rei de Nápoles.
Flertou com a morte nos anos 2000. Por duas vezes, o mundo quase se despede de forma precoce de Dieguito. Em uma delas, teve um ataque cardíaco devido a overdose, quando estava hospedado em um resort em Punta Del Leste, no Uruguai.
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"Diego Armando Maradona foi adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses. Qualquer um podia reconhecer nele uma síntese ambulante das fraquezas humanas: mulherengo, beberrão, comilão, malandro, mentiroso, fanfarrão, irresponsável", escreveu Eduardo Galeano sobre o craque argentino no livro "Espelhos: uma História Quase Universal".
Colunista do Uol Esporte e comentarista do BandSports, o jornalista Julio Gomes acredita que o lado humano do argentino potencializou ainda mais a figura de Maradona. Para ele, que cobriu de perto El Pibe como treinador da Argentina na Copa de 2010, El Diez não é nem o segundo melhor de todos os tempos, mas é o maior personagem que o futebol já teve.
"As pessoas se comovem. Isso gera julgamento para o bem e para o mal. As críticas e os próprios elogios de quem se identifica, de pessoas que têm problemas com drogas. O fato de Diego ter tido muitos problemas, e eram problemas dele, que não geravam problemas nos outros, fez com que muito mais gente o idolatrasse", explica Julio.
Para o cantor cearense Raimundo Fagner, que tem forte ligação com o futebol e amizade com grandes nomes do esporte, como Zico e Pelé, as polêmicas vivenciadas por Maradona nunca tiraram o brilho do que fez o jogador dentro de campo. "Ele representa bem o argentino, do lado tango, da tragédia que confunde entre o lado humano e da genialidade. Reforçou que os mitos também são humanos."
Diego Armando Maradona, o mais humano dos deuses
Quando se fala de futebol, podemos deixar de lado o monoteísmo que herdamos do Cristianismo e abraçar o politeísmo. É possível, sim, que haja mais de um Deus futebolístico. Embora católica, sempre tive esse pensamento firme comigo dentro do esporte. No futebol, considero nesse status Pelé, Garrincha, Maradona, Marta e Messi.
Quando coloco algum jogador no status de Deus, penso que os feitos de tal serão eternos, assim como ele e todo seu futebol. O grande problema de colocar alguém nesse patamar é aceitar que, como qualquer ser humano, ele não é eterno ou mesmo perfeito.
Diego Armando Maradona Franco nunca fez questão de ser perfeito. Falastrão e zombador, não suportava que contestassem sua genialidade no futebol ou que colocassem outro em seu patamar. Talvez ele tenha sido o mais falho entre os humanos que conheci — ainda que a distância. A imperfeição, contudo, é fácil de aceitar. A finitude não.
Ser falho num mundo onde as pessoas procuram a tal (inexistente) perfeição é ato de coragem e isso Maradona sempre teve. Foi tão corajoso que até tentou vingar a Guerra das Malvinas com um gol de mão em quarta de final de Copa do Mundo. Teve força para defender seus ideais políticos contra tudo e contra todos, até mesmo contra a Fifa, que insiste na alienação. Entretanto, ter coragem nem sempre é o bastante para vencer a batalha contra a dependência química.
Maradona tentou, mas nesse jogo ele perdeu, de forma mais trágica do que os outros vários que todo jogador — humano ou divino — perde.
Este revés, porém, não se resume ao D10S. Todo fã de futebol saiu dessa partida derrotado. Afinal, Maradona sempre nos lembrou que deuses do futebol eram falhos e agora Ele nos mostra que também não são imortais. Infelizmente.