Prestes a ter alta hospitalar depois de uma obstrução intestinal, o presidente Jair Bolsonaro renovou o interesse por seu corpo, que se presta a muitos papéis, todos voltados a um cruzamento entre política e religião. Foi nesse limiar que ele transitou nos últimos dias.
A internação interrompeu uma escalada de tensões na esteira da qual o mandatário definhava ante a opinião pública. Acamado, fez circular a foto na qual era ladeado por um padre, estudadamente disposto para compor uma cena que tem uma leitura estimulada: a do martírio do líder, do sacrifício do Messias numa jornada redentora contra forças mundanas que tentam macular conceitos como nação, família e credo.
Eis como o entorno presidencial recobriu o quadro atual de saúde do inquilino do Planalto, que, bem sabemos, foi esfaqueado em 2018, atentado do qual decorreram sequelas que talvez tenham relação com o agravamento observado agora e até com os soluços persistentes.
Desde que baixou no hospital, de onde deve sair hoje, Bolsonaro reforçou essa versão segundo a qual é portador de uma missão que confunde deliberadamente razões eleitorais e fé. O presidente e seus aliados operam nesses dois campos, misturando-os. Já convalescendo, tratou de se referir a adversários, entre os quais os membros da CPI da Covid, investigação que apura corrupção no Ministério da Saúde. O recado é claro: já tentaram matá-lo uma vez, sem sucesso.
A romaria de aliados e as correntes de orações pelas redes sociais ajudam a construir essa aura de corpo indevassável com a qual a franja radicalizada se identifica. Mas esse truque dificilmente irá prosperar com o restante do eleitorado.