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Bas'Ilele Malomalo: espiritualidade africana e Paulinho nas Olímpiadas
Farol

Bas'Ilele Malomalo: espiritualidade africana e Paulinho nas Olímpiadas

Professor nascido na aldeia Idumbe, na República Democrática do Congo, estreou sua coluna no O POVO em julho. Em entrevista, Malomalo discute racismo religioso e manda muito Axé para Paulinho, jogador que manifestou gratidão a seu orixá durante as Olimpíadas de Tóquio
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Bas'Ilele Malomalo é novo colunista do O POVO.  (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Bas'Ilele Malomalo é novo colunista do O POVO.

Desde que saiu da aldeia Idumbe, na República Democrática do Congo, onde nasceu, tudo o que o professor Bas'Ilele Malomalo faz tende para a conexão com a sua ancestralidade, conforme ele próprio destaca. O filósofo, teólogo e terapeuta da espiritualidade africana já lecionou no Ceará e hoje mora em Salvador, na Bahia, onde é professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Em julho, o ativista dos direitos do Ubuntu-Maat-Kalunga e diretor internacional da Comunidade Madinatu Munawara estreou sua coluna no jornal O POVO, onde deve trazer mensalmente conteúdos da África continental e diaspórica. 

O pesquisador avalia o espaço ocupado no jornal como importante para valorização negra e africana no Ceará e no Brasil. Mas faz questão de ressaltar que será uma coluna feita coletivamente, jamais de forma individual. “Eu não ando sozinho, eu tenho um povo andando junto comigo”, explica.

Em entrevista, Bas'Ilele comenta sobre as singularidades das espiritualidades africanas e discute a representatividade das religiões de matriz africana, além dos caminhos para o combate ao racismo religioso. Ainda, aproveita para mandar muito Axé para o jogador Paulinho, que manifestou publicamente gratidão ao seu orixá, Exu, durante a campanha olímpica vitoriosa do Brasil em Tóquio. “Mais gente deve agir como Paulinho, dar visibilidade às culturas que formam este País, mas que são discriminadas”, salienta. 


O POVO - A espiritualidade africana sempre foi algo muito presente na sua vida?

Bas'Ilele Malomalo - Minha relação com a espiritualidade africana vem do lugar onde nasci, da minha linhagem, meu pai, Ilel'a Djoyidjoyi, e minha mãe, Basambolo Ngone. A primeira espiritualidade começa, numa concepção africana, quando duas famílias se cruzam. Nasci numa aldeia chamada de Idumbe, em 1973, e quando se nasce numa aldeia estamos conectados com tudo. E isso é uma conexão com a Comunidade-Sagrado-Ancestral, a Comunidade-Universo-Natureza e a Comunidade-Bantu. Essa conexão é muito cedo com rios, com a natureza, com os tambores. Mas ao longo do caminho, por causa do colonialismo, nossa família foi posta no cristianismo, mas mesmo assim permanece a espiritualidade tradicional. Ao longo da minha formação, vou entrar em contato com o acadêmico, além dessa vivência familiar. Sou um cidadão do mundo. Com quatro anos mudei para a capital da República Democrática do Congo (Kinshasa). Depois, de 1997 a 1998, morei em Moçambique. Em 1999, cheguei no Brasil, em São Paulo, para fazer meus estudos de teologia. Na época, estava numa instituição religiosa católica, onde fiquei quatro anos estudando. Depois dei outra direção para minha vida, para constituir minha família e fazer meus estudos. Na época, eu também desejava ser professor universitário. Então entrei no mestrado da Universidade Metodista para fazer Ciência da Religião, entre 2003 e 2006, e ainda em São Paulo fiz doutorado em 2010. Dali, passei no concurso na Unilab [Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira] em 2012 e me mudo para o Ceará, onde morei de 2012 até 2015. No final de 2015, me mudo para Bahia por causa da Unilab, que tem um campus aqui. A partir de 2019, fui iniciado dentro da espiritualidade africana, a partir do meu mestre Sheik Dadiara Modibo, conhecido por Grand Papa. Desde o Congo até aqui tudo o que faço tende para essa espiritualidade, para proporcionar vida e promover a vida. Isso é espiritualidade.


O POVO - Para o senhor, quais são as maiores singularidades da espiritualidade africana?

Bas'Ilele - A espiritualidade africana é o modo de estar no mundo com. Falando do ponto de vista da comunidade, tanto de pessoas, tanto de estar no mundo consigo mesmo e com todas as pessoas que estão dentro da comunidade humana. Estar com a Comunidade-Universo-Natureza, de plantas, animais, estrelas, lua. Mas estar também com a Comunidade-Sagrado-Ancestral. É a maneira como estamos lidando com divindades, entidades espirituais, nossos ancestrais. Então essa espiritualidade africana concebe também Mundo-Visível e Mundo-Invisível. Os dois mundos interagem e essa interação se dá via ritualização da vida. Eu e você consideramos que a vida é essa relação que temos. Devemos agir na perspectiva de tornar essa vida algo de sagrado, o que a gente chama de dignidade. A dignidade se estende para outras pessoas e para seres não humanos. Essa é a espiritualidade africana que eu realmente pratico. Claro que você vai encontrar muitas vertentes porque a espiritualidade africana é plural. Você não tem somente uma linha. Sua manifestação está também nas religiões dos orixás, na África ou aqui; essa espiritualidade também está na umbanda. Ou, às vezes, as pessoas negras da África vão expressar isso no cristianismo, no islã, e assim por diante. Mas estou falando da espiritualidade africana de matriz, tradicional mesmo, como o nome já diz. Há uma ideia básica do Noun-Kalunga, ou, digamos assim: no início de tudo há uma Força, composta de energia masculina e feminina, ela vai se autogestar, nessa autogestação de uma forma processual. A partir dessa Força, vai nascer todas as coisas que existem, o universo, a natureza e os seres humanos, essas forças nas nossas tradições têm um nome: Râ, Atom, Olodumare, Nzambi. E ele se manifesta através dos orixás Oxum, Ogum, Exu, Iemanjá e outras. Esses são os elementos comuns dessa espiritualidade africana. E você vai ter influência de outros aspectos da vida, o como samba e a música brasileira, por exemplo, os maracatus da vida e mesmo o carnaval brasileiro, a arte brasileira e a literatura negra do mundo bebem dessa espiritualidade. Porque esse modo de estar no mundo e perceber o mundo como teia se manifesta de várias maneiras. Então não estamos falando de religião, mas de espiritualidade, modo de vida.

 

O POVO - O senhor é terapeuta da espiritualidade africana. Pode dizer o que isso significa?

Bas'Ilele - É uma maneira de a gente tentar se definir. Mas, de fato, hoje recebi uma responsabilidade, alguns vão chamar de mestre, outros vão chamar de sacerdote, alguns vão chamar de Baba. Na linha onde estou, até este momento me vejo como liderança religiosa da Comunidade Madinatu Munawara (CMM). A terapia vem como um processo de cura para restauração da vida. Para direcionar e orientar as pessoas, é preciso fazer alguns ritos. O terapeuta é uma pessoa preparada para isso. No caso da escola onde estou, conheço meu mestre há mais de 14 anos. Mas somente depois, você tem que entender que tem um chamado, e isso junto com o mestre, vocês vão descobrir. Gosto muito de dizer que o tempo divino não é o tempo dos homens, então o tempo ancestral é muito diferente para cada pessoa. Quando se estabelece o diálogo com o seu mestre ou mestra, ele ou ela vai te mostrar o caminho. A terapia entra no quadro de como você lida com os problemas do dia a dia das pessoas que acompanha. Posso falar isso do ponto de vista da Comunidade Madinatu Munawara, mas temos muitas escolas para [alguém] se tornar terapeuta da espiritualidade africana. Para mim, é relativamente novo me assumir como liderança religiosa, como terapeuta da espiritualidade africana, foi em 2019. Todas as minhas atividades, tanto na militância, do movimento negro, dos movimentos de direitos humanos imigrantes, do movimento negro para defender direitos das populações negras brasileiras ou ainda na Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americana, a minha presença na ONU [Organização das Nações Unidas], na plataforma Harmony With Nature, como minhas aulas como pesquisador, educador, em projetos de extensão, na sala de aula. Tudo é um exercício do meu sacerdócio, então para mim espiritualidade tem a ver com o que a gente faz, com o que a gente fala para com outras pessoas, para com a natureza ou para com as divindades.


O POVO - Recentemente, o jogador Paulinho, da seleção olímpica de futebol, manifestou gratidão a um orixá depois de receber a medalha de ouro. "Nunca foi sorte, sempre foi Exu", disse. O gesto foi considerado representativo. Como o senhor avalia a visibilidade das religiões de matriz africana no Brasil hoje?

Bas'Ilele - O gesto do Paulinho, a gente saúda. E aqui aproveito para mandar muito Axé, muito Axé, muito Axé para ele, essa força vital. Na nossa tradição, a gente manda para outra pessoa. Ele mostrou o que muitos brasileiros deveriam fazer: promover ou trazer espiritualidade, e promover outras culturas que formam esse nosso País. No Brasil, o cristianismo predomina na sua vertente católica e evangélica. Se você vai em algumas instituições públicas, como fóruns, tribunais, cartórios, você vai encontrar cruzes, mas o País diz que é laico. Só que você encontra símbolos cristãos em alguns lugares. E as pessoas não cristãs, como ficam? Todo mundo fala de cristianismo tranquilamente, mas outras formas de expressar sua religiosidade são quase proibidas. Quando é ainda praticante de religiões de raízes africanas, como candomblé e umbanda, você sofre racismo porque o nosso racismo não tolera nem uma pessoa negra, nem a sua cultura. Isso vem do período de escravidão, porque a escravidão veio junto com o racismo. O racismo como essa teoria de superioridade racial desemboca na discriminação, que se traduz em práticas de discriminação religiosa, que chamamos de racismo religioso. Quantas vezes não vimos a Polícia invadindo terreiros, lugares sagrados de povos do candomblé, quebrando assentamentos? Aqui mesmo na Bahia, tinham quebrado um assentamento, e a mãe de santo chegou a falecer. Essas agressões nós vemos desde o tempo da colônia. Ataques contra tudo de manifestação da cultura negra. A capoeira já foi criminalizada, o candomblé também, mas continuam. Então, o Paulinho fez um gesto que expressou o Exu, que esse é orixá da comunicação. Ao fazer esse gesto, realizou o que a gente chama de liturgia política. Ele trouxe a estética negra na esfera pública de futebol, mostrando que estava honrando seu orixá. Para a gente, naquele momento, ele mesmo é a manifestação de Exu, e Exu é realmente o orixá da comunicação. Ao fazer isso, a gente espera que essa comunicação do Exu que está em Paulo, que é o orixá dele, possa estabelecer uma conexão entre todas as pessoas, todos os brasileiros e brasileiras, para que nós possamos nos comunicar melhor. A comunicação significa o respeito pela cultura do outro, a valorização do outro independentemente da sua raça, cor, sexo, origem nacional. Essa é a mensagem que Paulinho está deixando pra gente. Não vemos religiões de matriz africana, em nenhum momento, pregando o ódio ou a discriminação para com o outro. Não são religiões prosélitas, são manifestações religiosas no sentido de preservar a vida das pessoas que frequentam os terreiros e a natureza do nosso País. Portanto, as religiões de matriz africana são patrimônios nacionais, que todos devemos respeitar e preservar.

O POVO - Onde o senhor acha que ainda é preciso avançar na visibilidade de religiões de matriz africana?

Bas'Ilele - Se você vir o gesto do Paulinho, ele agiu como cidadão. Esse gesto deve se multiplicar. Mais gente deve agir como Paulinho, dar visibilidade às culturas que formam este País, mas que são discriminadas. A cultura negra e indígena não têm visibilidade. A cultura branca e ocidental nesse País tem mais valor. É preciso seguir o caminho do Paulinho. Esse caminho, do ponto de vista institucional, é por exemplo, o que vem fazendo o O POVO, dando visibilidade à cultura local, cearense, à cultura nordestina e às culturas negras. Por isso, nós estamos chegando no jornal. Temos alguns colunistas no continente africano e estamos aproximando do jornal algumas pessoas negras para falar dessas culturas, dessa cultura africana e negra que está presente no Ceará, na Bahia, no Piauí, e em todo canto. Essa, falando do ponto de vista do O POVO, seria uma ação cidadã. Mas o outro gesto é o que deve fazer o Estado brasileiro, cumprir com a constituição brasileira, que reconhece que o País é multicultural e multirracial, e ainda estamos falando de um país que tem 55% de sua população autodeclarada negra, pessoas pardas e pretas, conforme últimos dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. Estamos falando de uma população que é maioria no País, mas cuja cultura é desvalorizada por causa do racismo histórico e cultural. Nós, intelectuais e ativistas negros, propusemos no País o ensino da Lei 10.639/03, que foi ampliada para atender também o ensino da história e cultura indígena. Por que isso? Porque nas nossas escolas se ensina mais uma cultura de lógica branca, e isso não está certo. A maneira certa de fazer num país multicultural e multirracial é valorizar as matrizes culturais de todos os povos que formaram esse país. No Nordeste, sabemos que tem uma influência muito forte das culturas negras e indígenas, por isso precisamos valorizar. Mas como fica a questão da religiosidade? Não estou falando de religiões. Mesmo se fossem religiões no sentido institucional, o ensino religioso vai mostrar esse caminho da diversidade que nós temos. Na constituição temos direito à liberdade religiosa, cada pessoa pode aderir a qualquer fé e grupo que quiser, mas uma boa espiritualidade é aquela que liberta, que emancipa, que me leva a reconhecer o outro, a valorizar o outro, e não a discriminar ou cometer genocídio contra aquele outro.


O POVO - O senhor estreou em julho sua coluna no O POVO. Como foi receber o convite? O que os leitores podem esperar na sua coluna?

Bas'Ilele - Primeiro, estou muito grato e quando digo eu, esse eu é coletivo. É realmente a valorização do trabalho que temos feito. Sou professor universitário, mas também tenho feito um trabalho social tanto no campo da espiritualidade como na luta pelos direitos da natureza, direitos humanos dos imigrantes e direitos da população negra. Então, foi conversado para trazer isso, que interessa ao jornal O POVO. A nossa contribuição vai nessa linha de trazer África continental e África da diáspora, será nesse sentido. Trataremos da ciência africana, da espiritualidade africana, da história africana, da economia africana. Isso no contexto da diáspora, aos poucos. Uma das questões que coloquei para fazermos um belo trabalho é não ver o colunista como indivíduo, o que não cabe na perspectiva africana de produção de conteúdo, de vida. Eu sou somente um Exu, como foi Paulinho. Um Exu significa um sujeito a quem nesse momento foi dada a oportunidade de comunicar para alguns leitores e leitoras do jornal O POVO. Mas eu não ando sozinho, eu tenho um povo andando junto comigo, eu tenho entidades que estão junto comigo. Nesse sentido, estamos pensando para que eu seja somente essa pessoa que abra caminhos, para que haja mais vozes, mais conteúdos voltados para África continental e África diaspórica. Meu primeiro texto que deu o tom do tempo começou com a questão do que é a vida, de onde vem a vida e quais respostas os povos africanos deram para isso. Teremos mais textos da minha autoria e outros textos que vou assinar com outras pessoas, que juntos irão enriquecer a coluna. Realmente teremos novidades. E aí faremos uma coluna realmente numa perspectiva africana que será muito diferente porque a comunicação é sempre plural. Não é somente o colunista. O colunista representa a comunidade. Então, as pessoas que gostam muito de trabalhar com direito da natureza, direitos humanos, minorias, estéticas africanas, ciências africanas no continente, contribuição da cultura negra no Nordeste, no Brasil e em outros lugares, nos esperem que vocês terão novidades! No primeiro momento, pedi para que a frequência dos textos seja mensal, mas estou achando que serão dois por mês.

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