No Brasil, a herança colonial manifesta um contrato racial (Charles Mills, O Contrato Racial, Zahar, 2022) de modo silencioso e eficaz: produz privilégios para a branquitude e impõe restrições aos não brancos. Como observa Aníbal Quijano (Colonialidade do Poder, Revista Clacso, 2005), às relações de colonialidade perpetuaram-se para além do colonialismo e fazem do racismo o epicentro das relações de poder na Modernidade. Uma tecnologia social essencial ao capitalismo, pois criou novas identidades (índio, branco, negro) distribuiu lugares sociais hierarquicamente a partir dessas categorias.
Mas antes mesmo das teorias decoloniais ganharem força, a antropóloga negra e brasileira Lélia Gonzalez (1984, Entrevista concedida ao The Brasilians) caracterizou o racismo praticado no Brasil como "profundamente disfarçado", um tipo de "neurose cultural".
Conforme Lélia, acreditando em mitos como o da democracia racial, o Brasil seguia denegando a realidade racista que reproduzia cotidianamente por meio de dois mecanismos bem específicos: o privilégio branco interrelacional e intergeracional e a imposição de rituais de deslegitimação para negros.
Mais de 40 anos depois da crítica social levantada por Gonzalez, assistimos esse fenômeno se repetir numa das mais renomadas universidades do Brasil. O caso da professora Érica Bispo, aprovada em primeiro lugar no concurso de Literaturas Africanas da USP e impedida de assumir o cargo após anulação do certame, expõe a continuidade desse disfarce.
Questiona-se o mérito da candidata, não o racismo de quem põe em dúvida a lisura do processo ou mesmo a instituição que avaliza tal questionamento. A psicóloga Cida Bento (2022, Pacto Narcísico da Branquitude, Cia das Letras) chamou esse tipo de cumplicidade de "pacto narcísico da branquitude" onde brancos conservam para si privilégios simbólicos e materiais. A cada banca ou promoção acadêmica, repete-se o gesto de proteger o espelho racial das elites, mesmo sob discursos de inclusão.
Os dados do Censo da Educação Superior 2023 (MEC/INEP) confirmam: apenas 21% dos docentes das universidades se declaram pretos ou pardos; 2,9% pretos. As mulheres negras são ainda menos representadas: são 26.770 diante dos 31.541 professores negros.
Novembro é o mês da Consciência Negra, momento em que as comunidades celebram pertencimento e negritudes. Mas continua sendo urgente reafirmar a necessidade de novos pactos. Um país de maioria negra não pode espelhar apenas uma minoria racial em espaços de poder, muito menos deixar essa maioria sendo permanentemente refém de quem tem historicamente o privilégio de definir o que é mérito e apontar o que é verdade.