Campeão olímpico em 1992, em Barcelona, como jogador da seleção brasileira masculina de vôlei, Marcelo Negrão assumiu nova função no esporte: saiu das quadras e virou comandante. O paulista de 50 anos recém-completados chega a Fortaleza para treinar o Rede Cuca Vôlei em sua temporada de estreia na elite nacional, a Superliga.
Ao longo da trajetória como atleta, Negrão conseguiu destaque internacional, sendo escolhido melhor atacante da Liga Mundial de 1990 e melhor jogador do mundo em 1993. O desempenho rendeu oportunidade também no vôlei europeu, mais especificamente na Itália. Marcelo Teles Negrão ainda disputou os Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, no qual a seleção ficou na quinta posição.
Na reta final da carreira, aventurou-se no vôlei de praia após sofrer com problemas físicos e conheceu o cearense Márcio Araújo, que fez história na modalidade e era presidente da Rede Cuca, responsável pelo projeto do time de vôlei, que era amador.
O relacionamento e a trajetória vitoriosa de Marcelo Negrão levaram à proposta para assumir o time cearense na temporada 2022/2023. A estreia oficial será diante do atual campeão da Superliga, Sada Cruzeiro-MG, na próxima sexta-feira, 21. O novo treinador conversou com O POVO e falou desse novo desafio, da infância, da carreira como jogador e dos projetos anteriores em que comandou.
O POVO - O que levou você a aceitar esse convite para vir treinar o Rede Cuca Vôlei?
Marcelo Negrão - Bom, primeiro é uma grande oportunidade. Eu, como profissional da área, já conheço muito bem o Nordeste, tive o início da minha carreira em Recife, então eu sei como são as dificuldades, sei as qualidades. Então quando me veio esse convite, acho que uns dois anos atrás, mais ou menos, do Márcio Araújo, que é o jogador de vôlei de praia, medalhista olímpico, ele na época era o presidente do Cuca. E a gente vinha sonhando e quando jogava, a gente falava: “Quem sabe um dia o vôlei daqui não sobe, se torna uma das referências” e tal. E a gente ficou com esse papo no ar. Ele foi correndo atrás do projeto, se tornou presidente da Rede Cuca, e a gente estava sempre falando e ele me dizendo que tinha essa possibilidade de subir para a Liga C, depois para a Liga B e tentar, quem sabe, um dia, subir na Superliga principal.
E isso aconteceu, só que ele já não estava mais como presidente, mas me indicou para o nosso atual presidente, que é o Caiubi, uma pessoa sensacional, e é um grande prazer, uma grande honra conhecê-lo. Hoje a gente está trabalhando juntos. A nossa conversa foi muito boa desde o começo, eu já tinha essa vontade, então casou tudo, deu tudo muito certo, e a gente está agora no início desse projeto, dessa caminhada longa que vai ser essa próxima Superliga. Então assim, quando já tinha essa situação de jogar a Superliga principal, eu falei: “Poxa, tomara que venha o convite”, e deu tudo certo.
O POVO - Então você já conhecia o projeto, né? Conseguiu acompanhar os jogos do Cuca pela Superliga B?
Marcelo Negrão - Então, eu sempre fiz parte da da Superliga A, da principal, a minha vida inteira jogando na principal. E não tem muitos anos que colocaram a Superliga B e a Superliga C para motivar o voleibol da região, já que antigamente não existiam muitos times, não tinha esse sobe e baixa. Geralmente eles acrescentavam um time a mais, quando aquele time tinha condição. E o voleibol começou a crescer, crescer, crescer, muitas outras cidades começaram a se interessar pelo torneio de voleibol e se criou a Superliga B. Então, de vez em quando, eu sempre dava uma olhada, porque ali serviu para a gente estar testando os jogadores jovens.
A gente colocava os jogadores jovens em times não tão expressivos assim para eles rodarem, ganhar uma experiência de rodagem de jogo, e a Superliga C e a Superliga B sempre foram muito usadas para isso. Mas de um tempo para cá, a gente começa a perceber que a Superliga B, principalmente, já está virando um torneio bem forte, um torneio de jogadores que já estão ganhando alguma coisa para jogar, alguns já até profissionais. Então a coisa está ficando como é na Europa, pelo menos na Itália, que você tem A1, que é a principal, A2, A3, B1, B2, é uma infinidade de nomes, letras, modalidades e categorias. E não quer dizer que os jogadores que jogam uma A2 não ganhem tanto quanto o jogador da A1. Então a Superliga B é um começo de um futuro promissor.
O POVO - Como foi a recepção quando você chegou, os primeiros dias de trabalho e sua percepção?
Marcelo Negrão - Foi muito bom, é muito caloroso o povo do Nordeste, eu já conheço esse calor humano. Eles me receberam muito bem e estão sempre apoiando, sempre desejando muita boa sorte, e isso aí eu sabia que não ia ser diferente, que eles realmente iam abraçar o projeto e que a receptividade deles ia ser muito boa, como está sendo todo dia. E agora em relação ao trabalho, é diário. Todo dia é querer um pouquinho a mais, mas vai ser devagarinho, mas não tão devagar porque a gente já está perto da competição.
O POVO - Antes de chegar ao Cuca, você foi técnico no Sesi e no Mogi. Como foram as suas primeiras experiências e o que acha que pode trazer para o Rede Cuca Vôlei?
Marcelo Negrão - Eu participei da base toda do Sesi até chegar no time profissional, depois eu estive no time do Mogi, onde a expectativa era fazer um time profissional, que acabou não dando certo e virou um time de base, juvenil. E assim, eu tento passar a minha experiência como jogador, não é nem tanto como um técnico. Como jogador que sentiu a pressão que ele está sentindo, sentiu aqueles momentos de dificuldades e, na minha opinião, eu gosto de ter técnicos que foram jogadores.
Então eu procuro passar a minha experiência como jogador e, é claro, como técnico. Dividir o tempo, explicar, conversar, aí sim é a hora que eu que eu uso mais essa parte de técnico. De sentir como que está o jogador, o psicológico dele. Mas eu procuro, no nosso treinamento, dentro de quadra, passar esse meu lado como jogador. Graças a Deus eu consegui, como atleta, me tornar campeão olímpico, várias vezes melhor jogador do mundo, melhor atacante, então é uma vasta experiência como atleta. São quase quarenta anos dentro de uma quadra de voleibol, então eu consigo passar e tento passar essa experiência para esses jogadores hoje em dia.
O POVO - Você despontou no vôlei muito cedo, chegou à seleção com 17 anos, inclusive sendo o autor do ponto de título olímpico. Como foi a sua história até chegar ao vôlei? Já era algo sonhado desde criança ou você foi adquirindo essa vontade com o tempo?
Marcelo Negrão - Eu nasci em São Paulo e com 2 anos, o meu pai, que era engenheiro mecânico, recebeu uma proposta para sair de São Paulo para trabalhar numa empresa em Recife, com melhor salário, melhores condições e toda a família veio junto com ele. Nos finais de semana, ele gostava de fazer uma atividade física, só que não tinha o basquete em Recife, que ele praticava, e ele começou a jogar vôlei de praia. Ele viu que eu estava crescendo bastante, já com 10, 11 anos, eu tinha mais de 1,80m, e aí ele falou: “Esse menino vai ser alto, então vou colocar ele no esporte”. E eu comecei a jogar vôlei de praia junto com ele todos os finais de semana, seguindo meu pai, junto com ele.
E um certo dia, o técnico de um colégio que existe até hoje, o Colégio Boa Viagem, me viu jogando e me chamou para ir no colégio fazer um teste, e se eu passasse ia ganhar uma bolsa de estudos. Esse técnico é o Murilo Amazonas, que não é mais técnico, mas todo mundo conhece, é uma figura bem conhecida. E ele me chamou, eu comecei a treinar e, na sequência, ele falou: “Olha, você passou no teste, bem-vindo. A partir de agora você tem uma bolsa de estudos e vai começar a jogar aqui pelo colégio”. Jogando pelo colégio, a gente disputa — acho que hoje não sei se tem mais — colégio contra colégio na cidade e depois são selecionados os melhores para disputar os campeonatos estaduais. E eu fui selecionado pra jogar pela pelo estado de Pernambuco, onde eu joguei o Campeonato Brasileiro infanto-juvenil.
E o técnico de um grande clube que existiu, hoje não existe mais, de onde saiu grandes jogadores, o Banespa, eles tinham todas as categorias de base e o time profissional. E ele me viu jogando, me fez uma proposta de voltar para São Paulo e me tornar um atleta profissional. Conversei com meu pai, com a minha mãe, que disseram: “São Paulo não vai ser problema para você, não vai ter problema nenhum de adaptação. Quando você chegar lá tem teus tios, teus avós, o que precisar”, mas mesmo assim eu fui morar numa casa do atleta. Nessa casa tinham 30 atletas. Desses, dois chegaram à seleção brasileira, eu e o Giovane. E aí eu topei, lógico, eu queria ser um atleta, queria e sonhava. Tinha visto a seleção brasileira na época, medalha de prata, jogar, então sempre almejei. Eu queria muito um dia colocar a camisa do Brasil no peito e aí eu vi aquela aquela situação na minha frente, analisei e falei: “Poxa, uma excelente oportunidade, eu vou pra São Paulo”.
Aí eu comecei comecei a treinar, comecei a me dedicar cada vez mais. Um belo dia, apareceu uma oportunidade de treinar no time principal, e o técnico ficou surpreso com a força, a potência que eu tinha no ataque e no salto, e me chamou para começar a treinar. E um belo dia apareceu uma oportunidade de eu entrar no jogo, no time adulto, onde eu consegui virar uma partida que a gente perdia por 2 a 0. Outra vez também aconteceu de eu entrar, o time estar perdendo por 2 a 0 e virar (para) 3 a 2. Dali em diante, o técnico falou: “Olha, você vai ser o nosso titular”. E nessa o Bebeto de Freitas me viu com 17 anos jogando e já teve a minha primeira convocação para a seleção brasileira adulta. Então foi uma ascensão muito rápida.
E no começo, em todas as vezes que eu tinha as folgas e as férias, eu voltava para Recife, até que quando eu fiz 20 anos, já depois de ser campeão olímpico, os meus pais voltaram para São Paulo, onde eles vivem até hoje. E aí ficaram as grandes amizades em Recife, por isso que eu digo que eu tenho uma veia grande aqui no Nordeste, porque os meus melhores amigos são aqueles verdadeiros, que me conheciam antes de eu virar um jogador de voleibol, estão aqui no Nordeste.
O POVO - Você foi eleito o melhor do mundo, passou por grandes times do Brasil e da Itália. Conta como foi sua carreira e quais os grandes momentos que você lembra além do título olímpico.
Marcelo Negrão - Eu joguei cinco anos na Itália, que é o melhor campeonato do mundo, e ali, realmente, a gente encontra os melhores atletas do mundo. Joguei um ano no Japão, que também é um campeonato muito difícil, onde você joga duas vezes na semana, tem os deslocamentos pegando trem-bala. Você vai lá em uma cidade e no outro dia já está viajando de novo. É um campeonato bem difícil, eu não sei agora se mudou, mas na época era muito complicado. Mas são experiências, né? Experiências que valem muito a pena, principalmente o Campeonato Italiano, eu joguei ao lado de italianos, holandeses, americanos, russos. Tem um russo que é muito meu amigo até hoje, a gente está sempre se falando, enfim. É uma experiência tremenda, né?
E você ser campeão italiano é estar como um dos melhores jogadores do mundo, porque ganhar um título jogando pelo teu país é uma coisa; jogar ao lado de pessoas que você nunca viu, em uma linguagem diferente, com caras que também são uma estrela do país deles e você conseguir juntar todos ali e ser campeão italiano é uma coisa realmente muito difícil. Então entre nós, jogadores, tem um conceito que diz que se você é campeão italiano, meu amigo, todo mundo vai te reconhecer como um grande jogador. Então eu, graças a Deus, consegui me tornar um campeão italiano também.
O POVO - Na carreira, você teve alguns problemas no joelho e encerrou cedo. Como foi esse momento de parar?
Marcelo Negrão - Apesar de ter tido uma lesão séria no joelho, eu ainda joguei até os 38, então não foi uma carreira tão curta assim. Eu joguei até uns 30, 31 na seleção, se eu não me engano, quando eu me machuquei, e dali eu saí da seleção, mas eu me recuperei da lesão e fui jogar até os 38, nesses últimos atuando no vôlei de praia. Então assim, apesar das lesões... Inclusive hoje não tenho dor nenhuma, não tenho lesão nenhuma, não ficou sequela nenhuma em relação às dores que eu tinha no vôlei de quadra. Eu operei o joelho, operei uma vez o tornozelo, torci o pé e arrebentou os ligamentos, mas a pior lesão, realmente, foi só do joelho, e graças a Deus eu me recuperei. Inclusive, depois da recuperação, voltei a jogar e me tornei campeão brasileiro de novo no time da Ulbra.
O POVO - E quando parou, você já pensava em ser treinador ou foi acontecendo depois?
Marcelo Negrão - Não, isso foi acontecendo depois que o meu filho resolveu jogar voleibol e ao assistir aos jogos dele. As pessoas chegavam pra mim e me perguntavam: “Poxa, como é que eu estou treinando? Como é que eu estou jogando?” Um dia, uma mãe de um atleta chegou para mim e me falou para passar justamente essa experiência que eu tinha para esses adolescentes, para esses jovens, para esses jogadores. Que não dá para você ficar guardando o conhecimento que você tem, que tem que passar isso adiante e foi aí que eu comecei realmente a pensar mais com carinho nessa situação.
Quando meu filho começou a jogar, eu achei que realmente precisava ajudá-lo, só que eu não tinha como atrapalhar o trabalho do treinador. E para isso, eu deveria me tornar um treinador. Eu fiz os cursos nível 1, nível 2 e nível 3, que é o mais importante do vôlei, e fui contratado pelo Sesi, onde eu comecei nas categorias de base, desde o mirim, infantil, infanto-juvenil, juvenil, até chegar no adulto, onde eu tive o primeiro ano de competição na Superliga adulta. E depois eu fui para o time do Mogi, onde, por questões políticas, o time acabou não sendo profissional. Mas a gente já está nesse meio aí de treinador há uns quatro anos.
O POVO - Como você vê a atual geração do vôlei brasileiro? Tanto a seleção masculina quanto a feminina estão passando por renovação...
Marcelo Negrão - Eu acho muito difícil o Brasil não ficar no pódio de qualquer competição que disputar. Já tem muitos anos e eu acho que pelo investimento, pela qualidade, pelo tamanho que o vôlei tem hoje no Brasil, é muito, muito difícil que o Brasil deixe de subir ao pódio. Então para mim não é novidade nenhuma chegar entre os quatro e ir para a final. A novidade é quando não chega entre os quatro e não sobe no pódio. O Brasil tem uma cultura muito grande do voleibol. A gente diz que é o primeiro esporte, porque o futebol é quase uma religião, então não se compara, mas depois do futebol é o voleibol.
Então a gente tem jogadores enormes, que antigamente iam para o basquete, e hoje eles vão para o vôlei. E o voleibol paga bons salários, é um esporte consolidado aqui no Brasil. Masculino, feminino, de praia e de quadra, é muito raro quando o Brasil não sobe no pódio. Eu estou acostumado, acho que, ao meu ver, eles não fizeram mais do que o que precisa. Não vou dizer que é uma obrigação, porque hoje o vôlei está muito equilibrado, mas pelo que nós temos e essas condições, centro de treinamento, o apoio que a gente tem, eu acho que o Brasil está fazendo o seu dever de casa.
O POVO - Queria que você finalizasse falando o que a gente pode esperar do Rede Cuca Vôlei na Superliga. Como está sendo essa montagem de elenco, como está o nível dos atletas e o que ainda precisa evoluir?
Marcelo Negrão: Primeiro, podem esperar muita, muita raça, muita dedicação, que é uma coisa normal do pessoal que joga aqui nessa região. O time é muito raçudo, muito guerreiro, e é isso que eu quero. Acho que a bola tem que demorar pra cair no chão do lado do nosso time, a gente tem que defender, dar volume de jogo, e isso tudo é muito treino, é dia a dia, é estudo técnico do time adversário e obedecer as estratégias. A gente vai ter essa estratégia de jogo, ir para cima de todo mundo e acreditar o tempo inteiro.
Não tem essa de “poxa, é um time que está muito longe do centro do voleibol nacional”, não tem essa. A gente tem as mesmas condições, a gente vai ter as mesmas oportunidades, então vai ter que ir para cima e acreditar. Aqueles jogadores que estavam na Superliga B que estão fazendo parte do time, é acreditar no projeto, acreditar no tipo de treino que vai ser feito, pensar todo mundo junto que a gente tem grandes chances de manter o time na primeira divisão e, quem sabe, pegar uns playoffs mais à frente. Mas o primeiro objetivo hoje é manter o time na elite.