Autodidata, a criança atenta viu a avó costurando e, de olho, aprendeu a técnica. Jovem, para escapar da prostituição na Europa, reviveu aqueles ensinamentos da infância e, criando vestidos e trançando perucas, se estabeleceu como produtora de looks das damas da noite italiana. Na fase adulta, transformou os aperreios vividos além-mar em discurso para promover revoluções – e foi firme até mesmo quando encarou a cela de uma prisão.
Lena Oxa, hoje aos 55 anos, conecta em si aprendizados múltiplos. É comunicadora, estilista, maquiadora, produtora, cozinheira e muito mais. No currículo, soma 40 anos de palco, consolidada como estrela da clássica boate Divine, no Centro, onde dublou, cantou, dançou e apresentou talentos. Ela também realizou a primeira parada da diversidade da Capital e conquistou o País com o programa “Glitter: em busca de um sonho”, um reality show de baixo orçamento que unia gays e travestis nas tardes de domingo na TV aberta.
Em paralelo ao glamour, viveu, ainda na adolescência, a crueza da ditadura militar. Entre os shows nos recreios do Liceu do Ceará e os confrontos com as forças policiais dos anos 1980, se descobriu artista e travesti . Precisou ser forte lá atrás e se mantém segura até hoje, provando-se mais uma vez camaleoa ao ganhar a vida atualmente com a sua banca de Acarajé na Praça do Carmo.
O POVO - Como foi viver o início de uma vida tão múltipla em meio à ditadura militar?
Lena Oxa - Minha infância foi maravilhosa, árdua e amarga ao mesmo tempo. Meu pai era da Polícia Federal, trabalhava com corte, que é como chamavam naquela época da ditadura. Você ia para o cinema, tinha o corte no conteúdo, tinha a polícia que prendia, tinha aquilo tudo. E eu querendo já ser artista naquela época. Eu estudava num colégio no bairro Antônio Bezerra e, de lá, fui para o Liceu do Ceará para fazer o segundo ano. Foi no Liceu que eu me perdi ou me achei, ainda não sei.
Foi uma época muito boa pra mim. Foi quando eu comecei a conhecer as pessoas do meio artístico. Na adolescência, fui começando essa transição, já queria usar hormônio, mas eu tinha medo por causa do meu pai, eu tinha receio de como a minha família ia receber, mas, quando eu fui para a rua, eu me encontrei. Eu era o aluno do Liceu que mais era expulso naquela época. Não por muita coisa, mas porque eu era artista. Quando estava na hora do recreio, ninguém ia para o pátio brincar, todo mundo ia para o pavilhão ver o meu show. Eu tinha uma fascinação pelas cantoras Nina Hagen e Tina Turner. Aí fazia meus shows e me lancei como artista, mas com medo do meu pai saber que eu fazia aquilo, tinha aquela adrenalina da descoberta, do escondido. Foi tão bom.
OP - Do pátio da escola, você foi para os palcos das boates. O que mais te encantou quando você deu de cara com o público da boate?
Lena - O dono da boate se apaixonou logo por mim. Na época, tinha um amigo meu que fazia a Nina Hagen, que é o Demi Mendes, que não mora mais aqui. Aquilo era muito mágico para mim. Quando eu entrei no apartamento dele e via as perucas, era tudo que eu queria. Era meu sonho estar ali vendo aquilo tudo. Eu tinha um grande amigo, o Rinaldinho, que me apresentou a todos esses artistas. Ele me ensinou a andar de salto, me ensinou a colocar uma peruca na cabeça.
Ele me levou para conhecer o Metamorfose, um grupo de atores transformistas. E eu cheguei sendo aquela louca que queria ser a Nina Hagen, a Tina Turner. No caminho que eu fui, eu tropecei por muitas vezes até chegar onde eu queria. Participei do concurso e tirei o primeiro lugar como Tina concorrendo com atores transformistas da Casablanca, uma das primeiras boates que eu trabalhei. Foi muito legal viver aquilo. Se fosse para passar por aquilo tudo de novo, eu passaria.
OP - Teve muito glamour, mas também teve repressão. Era um momento, nos anos 1980, em que a polícia prendia as travestis e as transformistas nessas boates. Como você encarou tudo isso?
Lena - Eu vivi na pele mesmo. Hoje em dia tem eu e mais umas seis que estamos vivas para contar essa história. Era uma época em que você não podia andar na rua. Se você tivesse fazendo um show na boate e fosse um dia de arrastão deles, que a polícia levava todo mundo, eles tiravam a gente do palco. Foi muita repressão, eu apanhei, me bateram muito. Foi na época que teve a fila indiana, foi uma época representativa, que não tem fotos, porque ninguém ia bater foto daquilo, mas quem viveu, viu. As pancadas que a gente sentiu. Todo mundo naquela fila indiana cantando “Três, três passará” até a delegacia e, quando chegava lá, apanhava.
“Como é teu nome?”, eles perguntavam. Se você fosse hétero e cis, você dizia seu nome, mas, se você fosse travesti, tinha que dizer dois nomes, então eram dois tapas que levava. “Como é teu nome de homem”, aí você dizia. “Como é teu nome de guerra?”. Aí dava dois tapas e levava a gente pra dentro da cela e batia. Era um horror. Era o meu sonho estar ali (na boate), então eu tinha que viver aquela realidade. Eu tive que passar por aquilo para fazer história. Eu tenho muito orgulho quando eu digo que fiz parte daquela época.
A ditadura é isso: você não poder falar. Ditadura é a opressão de você querer viver, andar, sair e não poder.
Eu sofri a ditadura. Posso contar, porque eu senti a dor. Um policial batendo do lado e batendo do outro, perguntando se o ouvido já tinha estourado e batia nos dois juntos. Eles também levavam a gente no camburão, que a gente chamava de canina naquela época. Levavam a gente para a Barra do Ceará e jogavam lá nas pedras.
Tudo isso eu fazia escondido da minha família, que sempre achava que ia fazer teatro, uma peça, dançar. A gente passava por aquilo e não podia falar (para as famílias). A ditadura é isso: você não poder falar. Ditadura é a opressão de você querer viver, andar, sair e não poder. Eu não podia contar aquilo no colégio, para a minha mãe e para o meu pai. Ele era policial. Eu agradeço por ainda estar viva para contar essa história. Hoje em dia as pessoas não dão tanto valor ao que a gente viveu. Você não sabe o que é você querer ser feliz, querer falar, querer sair. Hoje está tudo muito bom, é mamão com açúcar. Naquela época, foi muito complicado.
OP - Junto com a experiência de palco, você foi encontrando ferramentas para ganhar dinheiro. Como foi essa sua formação profissional?
Lena - Eu aprendi muita coisa com a minha avó, Maria Lopes de Medeiros, ela era costureira e eu ficava sempre ali no pé da máquina vendo ela colocar um zíper, fazer uma costura e eu ficava olhando. Eu sou autodidata, eu aprendo vendo. Tenho esse poder na minha mente, eu vejo, aprendo e, se eu quiser continuar, eu vou continuar e acabou. Quando eu era criança, eu fazia muita bijuteria. Eu aprendi a fazer com os rapazes que moravam no fundo do quintal (da casa dela), eu pulava o muro e ia para lá trabalhar. Aí eu fazia pulseirinha de hippie.
Na época, era normal você fazer pulseirinha e vender na Praça Portugal e na Praça do Ferreira. Eu fazia 20 pulseiras e ganhava R$ 2. Comecei a fazer aquilo ali. Eu via minha avó fazendo rede e aquilo foi um ponto para fazer um macramê. Era um ponto para eu saber o que fazer quando for bordar uma peruca. Esse meu lado profissional vem lá da minha avó. Eu trabalho com peruca, sou maquiadora, sou cozinheira, faço o que for. Deixar de ganhar dinheiro, a gente não deixa não.
OP - Você teve vontade de ir embora de Fortaleza?
Lena - Tive, mas antes de ir embora, eu fui morar num cabaré. Eu me apaixonei por um rapaz no meio da rua, o Paulo era uma pessoa superlegal. Eu não sabia onde ele morava, porque ele sempre escondia de mim. Eu já estava mais solta, saindo, dormindo fora com o pessoal do teatro e queria ir na casa dele. Quando eu me deparei com a casa dele era um cabaré lá na Messejana chamado Sonho Azul. Ele morreu ano passado, o Paulo, ainda viveu foi muito. Mas na época eu me desiludi com ele e quis ir embora. Aí meu pai me deu um presente, ele já sabia da minha história. Ele não queria ver o filho passando chacota, desrespeito.
Dizem: “Ah, ser travesti não é uma opção”. Para mim, foi um jogo de cartas que eu joguei e ficou. O jogo deu certo.
Aí eu quis ir para Salvador e ele me deu a passagem. Me mandei para Salvador. As baianas me receberam superbem. Aí foi que eu fui viver a minha vida fora da minha casa, fora do meu quarto. Ali eu já estava assumindo uma outra personalidade. Uma coisa que eu não disse para ninguém e estou dizendo para vocês agora é que eu tive a oportunidade de escolher o que eu queria ser na época. Dizem: “Ah, ser travesti não é uma opção”. Para mim, foi um jogo de cartas que eu joguei e ficou. O jogo deu certo. Se não, eu poderia ter ficado gay, ter continuado gay. Não ter colocado peito. Porque o problema foi ter colocado o peito naquela época, em 1984. O preconceito do peito.
Ser gay padrão é muito bom. Se for uma travesti, tanto faz eu, a Nany People, a Rogéria, na época, quando chega é um impacto, o povo vê logo que é uma travesti, uma coisa diferente, uma pessoa diferente. É muito mais complicado de a gente encarar. Hoje em dia ainda está mais fácil por conta das leis, mas naquela época era muito complicado. Então, eu tive a oportunidade de escolher o que eu queria ser. Eu quis ser travesti e me engajar na carreira da star travesti, que na época era Tina Azevedo meu nome. Não deu axé. Fui para Salvador, botei o meu nome de Marta Helena, que também não deu certo. Aí cheguei em Lena.
OP - Como a Europa aconteceu na sua vida?
Lena - Foi devido ao conhecimento que eu adquiri em Salvador. Fui estilista nas lojas Esplanada e conheci muita gente. Aí via aquelas travestis bonitas chegando da Europa, voltando com carro, com casa, com tudo. Aí eu quis encarar a Europa. Eu estava namorando com um rapaz em Salvador que me ajudou e vendeu até os tapetes de casa para poder comprar uma passagem para ir pra lá. E deu certo. Eu tinha ficado lá em Salvador na casa de uma amiga minha que já tinha ido pra Europa. Eu já tinha uma referência de alguém lá.
Para chegar na Europa não foi fácil, foi uma das coisas mais loucas que eu já fiz na minha vida depois de ter colocado peito. Para chegar na Europa, você tinha que ter um mapa, tipo Indiana Jones. Tudo era cronometrado. As travestis da Bahia faziam todas o mesmo caminho. Pegava um voo para Recife e, de lá, ia para Portugal. Em Portugal, você vai ser presa e realmente fui presa mesmo quando cheguei em Portugal. Mas eles vão liberar pois não querem ninguém, não tem voo de deportação. Eles vão lhe soltar e depois você pega um trem. Era tudo engatado.
Lá na França, peguei uma estrada carroçal, que os cachorros (da polícia francesa) não podem sentir seu cheiro ou você vai presa de novo. Cheguei na Itália e não era nada daquilo que eu imaginava. Pedi para ficar na casa da menina que eu já conhecia e ela já me avisou que eu não teria tempo para descansar. Ela disse logo “puta não descansa na Europa, puta trabalha”. Eu fiquei apavorada. Eu nunca tinha me prostituído. Eu tive logo que me arrumar para sair. “Se for pra ficar em casa descansando, fica no Brasil”. Eu fui para rua com ela e foi um choque tão grande.
A gente nunca pode dizer que não, que nunca vai fazer (se prostituir), mas aquilo era uma coisa tão diferente da minha vida. Eu tinha meu pai, minha família, meu emprego, eu nunca pensei em fazer aquilo. Eu não vou dizer que eu não fiz, mas, como eu não queria, eu lembrei da minha avó, das minhas roupas que eu fazia, eu costurava já. As roupas que eu desenhava, os sapatos e bolsas que eu forrava na Esplanada. Com as indumentárias que eu fazia, eu fui trabalhar com as travestis da rua que faziam show. Aí eu comecei a ganhar dinheiro.
Era cabelo, roupa de carnaval, aquilo foi me alimentando. Eu tinha a necessidade e obrigação de usar aquilo que eu tinha aprendido. Aí deu tudo certo. Eu fui resiliente e descobri as coisas que eu podia fazer. Eu fui criada com meu pai e minha mãe, tive uma infância muito boa, amável. Depois o trabalho, pessoas que gostavam de mim e eu não queria jogar aquilo fora. Quando você vai para um lado desse (prostituição), você joga tudo pro alto e vai se empenhar somente naquilo. Aí eu usei outras coisas para poder sobreviver.
OP - Como aconteceu seu envolvimento na militância LGBTQIA+? Foi uma escolha ou foi inevitável?
Lena - Eu voltei da Europa para a Bahia e trabalhei no Grupo Gay da Bahia (GGB), um dos maiores grupos de militância do Brasil. Lá, em Salvador, estava acontecendo uma outra ditadura (no fim dos anos 1990), a polícia estava batendo nas travestis na rua e todo muito já me conhecia em Salvador. Aí me tornei presidente da Associação de Travestis de Salvador (Atras) e tive que brigar, fazer as visitas nas ruas, enterrar as travestis e os gays mortos, criar as assembleias. Eu fiz muita coisa. Um policial entrou na minha onda lá, que queria matar pois eu estava brigando demais. Ele dizia que eu queria aparecer e revolucionar a Bahia. Foi um histórico de perseguição mesmo. Aí eu cortei meu cabelo, fui presa numa época que prenderam todas as travestis pois estavam procurando essa Lena que queria revolucionar e quebrar as regras.
Aí eu tenho que agradecer sempre às travestis de Salvador pelo fato de todas estarem presas junto comigo, eles passarem perguntando “Quem é Lena?” e elas não contarem. Uma que estava lá comigo mentia: “A Lena não está aqui não. Ela tem o cabelo grande”, mas eu tinha mudado todo meu visual. O GGB se preocupou muito comigo. Depois o policial foi preso, porque descobriram as torturas que ele fazia com as travestis. Eu tive que sair de lá, pois não era só ele. Aí voltei para Fortaleza e foi na época que tinha a boate Style ainda. Só tinha uma boate para trabalhar e as coisas estavam muito antigas, precisava de um up. Foi quando o Deco, um amigo meu, me indicou para uma boate que ia abrir no Centro.
Eu era louca por boate para fazer meus shows, minhas dublagens. Eu tinha aprendido muita coisa. Já estava apresentando show em italiano e espanhol nesse período na Europa. Aí foi aí que abriu a boate Divine, abriu no dia 27 de janeiro de 2000. Eu não sabia que a Divine ia ser um marco na história de Fortaleza. Eu mudei muita coisa na Divine. Tinha a oportunidade de fazer shows com novos talentos, top drag, the best of drag, eu precisava de um espaço para os artistas brilharem. O artista brilhando traz gente para a boate. Eu peguei o domingo, que era o dia que nenhum produtor queria, porque era um dia fraco, só dava 20, 50 pessoas. Aí lancei os novos talentos e deu certo.
Tinha essa preocupação de ter os meus aliados, aí vem a parte política. A política da boate é você arranjar pessoas próximas a você que possam te ajudar, um maquiador, um cabeleireiro, um estilista, mas eu não usava eles. Eu queria que eles criassem força para trabalhar para um dia a pessoa dizer assim: “A Lena me ajudou”. Eu sempre tive isso comigo. Várias amigas minhas foram para a Europa e eu sempre dou uma força, apresento alguém que já mora lá. Sempre faço esse intercâmbio e aviso que não é fácil morar na Europa. A Divine veio para isso. Quando eu fui prestar atenção, eu tinha uma lista de mais de 100 pessoas para fazer show, dava para escolher. Toda semana tinha artista para fazer show. Dos novos talentos às transformistas antigas.
OP - A Divine te preparou para a TV?
Lena - Foi um sucesso na Divine. Aí eu tive o prazer de estar lá e quem estava me olhando era o jornalista Garcia Júnior, que me viu dentro da boate aquela loucura toda que eu fazia. Aí um dia me ligaram da TV Diário para fazer um teste que ia ter um programa chamado “Pura Sedução”. O Garcia tinha me visto e mandou me chamar. Aí fui lá ver como é que era. Me deram um texto e eu fiquei muito ansiosa. Aí no dia de gravar, eu perdi o horário. Eu chorei tanto, mas chamaram novamente na semana seguinte. Aí fui fazer esse piloto e deu certo.
Mas eu não gostei do que eu tinha que falar (na pauta). Era para ensinar como colocar uma camisinha. Era uma pauta de saúde e eu só tinha um minuto para falar. Aí eu fiz, mas na terceira semana eu pedi para fazer uma coisa diferente, aí não era mais o programa “Pura Sedução”, era o “Manias de Você”, com a Regininha Duarte. Aprendi muita coisa com ela também. Aí teve uma reunião e eu ouvi que para eu fazer diferente, precisaria de patrocinador. Aí eu consegui três logo. De um minuto, eu passei a ter cinco. Mas eu queria mais, queria fazer entrevista, eu estava dentro da emissora. Eu comecei a arranjar patrocinador e o negócio começou a crescer. De cinco minutos passei pra sete, doze e acabei ficando com meia-hora de programa “Manias de Você”.
"Eu aprendi na raça. Ninguém queria fazer minhas matérias. Fui continuando e ali foi o meu marco, o meu passaporte para me estabelecer na televisão." Lena Oxa
Aí, depois, com as mudanças, também trabalhei com o João Inácio Júnior. Aí eu tive a bênção de cair nas mãos do Ênio Carlos e tudo mudou. Cheguei para ele e disse que tinha vontade de fazer matérias sobre coisas sobrenaturais, aí ele já me deu uma força. Foi aí que eu comecei a ter meu estúdio, minhas coisas. Na televisão, não tive a oportunidade de ter alguém pra me ensinar a editar, gravar, sonorizar, colocar lettering, nada. Eu aprendi na raça. Ninguém queria fazer minhas matérias. Fui continuando e ali foi o meu marco, o meu passaporte para me estabelecer na televisão. Eu passei oito anos trabalhando com o Ênio. Trabalhei no “Ação e Reação” com ele e, como deu muita audiência, ele me levou para o programa dele de quatro horas na televisão e lá eu tinha uma liberdade muito grande. Eu era produtora, era repórter. O que eu fazia, ele nem olhava. Já aprovava.
OP - Um desenvolvimento disso foi o Glitter, que acabou se tornando um marco num período em que a internet ainda estava entendendo o que era um viral, em 2012…
Lena - Eu cheguei para o Ênio dizendo que queria fazer um reality show gay. Eu olhei bem no fundo dos olhos dele. “Você não acha demais, não?”, Aí eu disse que não, que ia ser o primeiro e ia ser maravilhoso. “Eu acho arriscado, mas se você está dizendo que vai dar certo é porque vai”. Eu fiquei tão arrepiada na hora, a força que ele estava dando. Primeiro eu queria colocar as meninas dentro de uma casa de praia, mas Ênio sugeriu pensar em algo mais rentável que pudesse gastar menos e chegou naquele formato. Foi show.
Eu fazia o Glitter sozinha com uma câmera só. Aí fomos escolher as meninas. Buscamos pessoas educadas, que pudessem dialogar e cheguei às doze. Pessoas com sexualidades e gêneros diferentes. Só não consegui lésbica. Todo mundo comprou a ideia. O principal do Glitter é que eu consegui colocar na cabeça das meninas que todo mundo pode conseguir alguma coisa. Os “viadinhos” da rua, as palhaças da rua viraram celebridades. Elas criaram os bordões dele. Ali foi o começo que a internet começou a bombar, naquele tempo do Orkut. Todo mundo no Sul conhecia as meninas.
Tanto que fui gravar o programa do Danilo Gentili, em 2018, e desceu um monte de gente, muito produtor, muito gay, que conhecia a Rochele Santrelly, a Sangalo Schneider, a Valesca Bariloche, eles conheciam todo mundo. Ali foi o sinal de que meu trabalho deu certo. O Glitter foi a minha faculdade. Eu fui a diretora, ia com câmera, carro e uma van cheia de transformista. Onde a gente chegava ninguém segurava as bichas. Foi um divisor de águas na minha vida e para a sociedade cearense. Mais uma vez eu provei que eu pude fazer. Tudo que eu fiz foi um incentivo para todo mundo entender que todo mundo pode.
OP - Como a experiência na TV chegou ao fim?
Lena - Eu saí para me candidatar (a vereadora) em 2016. Quando o Ênio morreu (também em 2016), eu não tinha mais o que fazer, meu teto caiu. Fiquei louca, desesperada. Peguei chikungunya e não tive como trabalhar. Na eleição, eu tinha gastado tudo que tinha, foi uma decepção na minha vida. Aprendi que gay não ajuda gay. Ele não vota numa amiga dele, seja travesti, gay ou transsexual, ele não vota. Mesmo com todas as paradas pela diversidade que eu fiz. Eu fiz com o Joca (da Barraca do Joca, na Beira Mar) da primeira à quarta parada. Foi muito marcante. Depois o Grupo de Resistência Asa Branca (Grab) veio e pegou a parada, que eles mesmos não acreditavam quando a gente foi lá falar sobre a primeira parada. Ninguém acreditava.
A boate Divine botou o trio na rua e a gente conseguiu fazer até a quarta parada. Na quinta, o Grab tomou de conta e está com ela até hoje. Eu vivi a vida toda com política atrás de eleger vereadores, prefeitos e hoje nenhum olha para mim e nem chega na minha banca. Hoje em dia eu vendo acarajé pela minha resiliência e força de trabalhar. Hoje eu estou muito feliz vendendo meu acarajé. Passei por muita coisa e hoje estou tranquila vendendo meu acarajé na Praça do Carmo e nenhum deles pergunta se eu estou precisando de alguma coisa. Eu sou a única mulher trans que trabalha na rua vendendo acarajé na Cidade. Tenho um grande respeito pelas baianas. Sou afiliada da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (Abam).
OP - Você tem uma boa relação com a juventude LGBTQIA+?
Lena - Falta esse respeito, essa visão do carinho que elas tem que ter. O “Glitter” tem uma história que marcou. Nessa juventude, a gente não pode procurar apoio. É a minha visão. Antigamente você tinha mais como brigar e ir atrás de leis. O que está acontecendo hoje, das leis que estão em vigor hoje, que a gente pode mudar o nome, foi lá de trás, da minha época. Não foi de agora não. Eles hoje não estão preocupados em ir atrás. Já está tudo pronto. Eles chegaram com a festa já toda pronta. O que falta hoje em dia é reconhecimento, gratidão. Não querem saber quem fez a parada do orgulho. Eles querem estar lá. Brigar pra quê? Discutir o quê? O que eu vejo é todo mundo é falta de socialização, todo mundo se separando. LGBTQIA +.
Hoje em dia eu não tenho o que fazer na parada do orgulho mais. Ou eu luto por um todo ou não quero lutar só pela minha letra T. Ficou tudo muito segmentado e todo mundo se espalhou. Ninguém está mais preocupado com um movimento. Estão preocupados com os próprios movimentos. Se voltasse dois passinhos para trás seria bom. Não para regredir, mas para as pessoas entenderem que o movimento é o todo, não só uma letra. Torço para que as pessoas criem outras coisas e façam acontecer.
OP - Hoje, aos 55 anos, com toda a história que você carrega, o que você deseja da sua vida daqui pra frente?
Lena - Eu sempre quis ir na Hebe dar o selinho nela. Não consegui, ela se foi. Queria ir pro Jô, ele também subiu. Fui para o Danilo Gentili (no talk show “The Noite”). Quando eu voltei (de São Paulo), eu quis ter o meu programa. Passei muito tempo sendo coadjuvante, repórter, é bom, mas eu queria um programa meu. Eu tenho um leque enorme de temas. De comida, de ação, debatendo preconceitos, o que for. Mas, não tendo esse programa, vou continuar na minha, vendendo meu acarajé. Estou tranquila. Me reinventei para trabalhar, não preciso dar satisfação para ninguém, vou para a praça quando eu posso, quando eu quero. Quando chove, eu não vou.
Eu não quero ser homenageada depois de morta. Eu quero viver, ser feliz na minha vida, ajudar quem precisa e nunca baixar minha cabeça.
E tem mais: quem contratar o acarajé mais badalado da cidade agora, vai contratar com música. Vou entrar na carreira de cantora. A gente tem que inventar alguma coisa, tem que criar para ter o sustento. Eu acredito que dará certo. Todo passo que a gente dá para frente tem que lembrar do que fez lá atrás para resgatar alguma coisa para sobreviver. Nada se inventa, se recicla. Mas eu preciso que as pessoas vejam o trabalho que a Lena fez.
Eu não sou qualquer uma, eu tenho um trabalho diante do movimento LGBT. Passou pelo GLS, passou pelo LGBT, agora é LGBTQIA +. As pessoas precisam ter uma noção do que a gente fez. Eu não quero ser homenageada depois de morta. Eu quero viver, ser feliz na minha vida, ajudar quem precisa e nunca baixar minha cabeça.
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