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Há tantos diálogos: entre polêmicas e polifonias, dialogar
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Há tantos diálogos: entre polêmicas e polifonias, dialogar

Na era da virtualidade, onde sociabilidades se constroem em 280 caracteres, o diálogo anda cá e lá parecendo impossível: discordâncias facilmente se convertem em bloqueios. Em meio ao isolamento que nos obriga ao digital, no entanto, recuperar o sentido do verbo dialogar se mostra urgente.
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Foto: Susano Correia/ Divulgação "Homem carregando o peso", obra do artista catarinense Susano Correia.

"Diálogo consigo mesmo/ com a noite/ os astros/ os mortos/ as ideias/ o sonho/ o passado/ o mais que futuro/ Escolhe teu diálogo/ e/ tua melhor palavra/ ou/ teu melhor silêncio./ Mesmo no silêncio e com o silêncio/ dialogamos", versou o escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade na obra "Discurso de primavera e algumas sombras" (1977). O poeta, alheio ao amanhã irascível que hoje se configura, louvava em palavras o diálogo com o ser amado, o semelhante — mas desejava também tecer conversações com o diferente, o indiferente, o oposto, o adversário.

Na era da virtualidade, onde sociabilidades se constroem em 280 caracteres, o diálogo anda cá e lá parecendo impossível: discordâncias facilmente se convertem em bloqueios. Em meio ao isolamento que nos obriga ao digital, no entanto, recuperar o sentido do verbo dialogar se mostra urgente. "Estamos vivendo um momento em que o diálogo como manifestação humana fundamental é algo cada vez mais raro. Desse modo, um passeio, ainda que breve, pelo modo como ele emerge como gênero literário e filosófico na Antiguidade Grega é sempre bem vindo", destaca Maria Aparecida de Paiva Montenegro, professora do curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará.

"O diálogo surge mais como gênero no âmbito da comédia, sobretudo da comédia siciliana, datada do séc V aC. Destacam-se aí os nomes de Sófron e Epicarmo, poetas que privilegiavam a representação de cenas cotidianas, cujos personagens eram em grande parte pessoas comuns, ao invés de reis, heróis ou divindades, como se vê nas tragédias. Segundo testemunho de Diógenes Laércio, tais poetas teriam influenciado sobremaneira o estilo de Platão", explica a pesquisadora.

Na Grécia Antiga, Platão utilizou o diálogo na construção do conhecimento. "O diálogo como gênero filosófico registrado pela letra de Platão (preservado em sua totalidade), imortaliza Sócrates como uma espécie de herói filosófico, cujo adversário não é o guerreiro Troiano ou Meda, mas a ignorância e a impáfia de quem não sabe que nada sabe. Ademais, permite inserir o leitor em um debate do qual ele não participou, acompanhando, quase como que ao vivo, o desenrolar de uma discussão cujo desfecho muitas vezes pode parecer insatisfatório, posto que não chega a uma definição acabada acerca dos temas examinados, mas que preserva a filosofia, antes de tudo, como ato, como forma de viver", complementa Maria Aparecida.

Mas, afinal, o que conceitua o diálogo? Todas as experiências sociais, nas quais os homens agem e interagem entre si, são dialógicas? "O diálogo é uma prática que envolve a busca por entendimento, é uma busca por entender a posição do outro e também por fazer com que a sua posição seja entendida. Nesse sentido, o diálogo é também uma prática que se realiza entre iguais ou quando se tem uma relação horizontal", conceitua a escritora e dramaturga Helena Vieira. "As situações informais de conversa são também dialógicas, mas nem toda situação comunicacional é necessariamente um diálogo. A situação de uma venda, por exemplo, não busca diálogo — busca a adesão do cliente. No cotidiano, as situações comunicacionais são mistas, o que assegura que as pessoas possam assumir uma abertura corporal, uma atenção ética de tentar estabelecer esses diálogos".

 
 
 
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Para Helena, é fundamental destacar que o diálogo não é uma panaceia — existem questões principiológicas que apenas o entendimento entre pessoas ou grupos não é capaz de solucionar. "O racismo, por exemplo, não é uma questão de desentendimento. O racismo perpassa as posicionalidades estruturais — nesse sentido, não é o diálogo que vai conseguir resolver o racismo, mas pode engajar pessoas na luta antirracista. Outro aspecto importante de observarmos é quando o diálogo é usado como tentativa de amansamento das reivindicações dos oprimidos. O diálogo é uma modalidade de atuação política, ele não é toda a atuação política. Considerar que todos os nossos problemas se resolveriam com diálogo significaria dizer que todos os nossos problemas são fruto de incompreensão e desentendimento. Nossos problemas são também da ordem da economia, da estrutura. O diálogo pode cooperar, mas não é a única solução", defende.

Dialogar é, sobretudo, assumir riscos: na construção de um território comum entre sujeitos, onde as diferenças são também celebradas, é preciso aceitar que podemos sair desses encontros modificados — ou mesmo mal interpretados. Como se busca esse entendimento, então? "Esse é um dos grandes desafios", continua Helena. "Eu tenho pensado no diálogo como um investimento político incessante, ou seja, um esforço contínuo — sobretudo daqueles que têm posição mais privilegiada — de exercitar a escuta. As posições de cada sujeito são múltiplas, então o mesmo sujeito pode ocupar muitas posições e elas podem estar em suspensão em alguns momentos. É preciso, então, que quando a gente constate uma situação de desigualdade fundamental numa tentativa de diálogo, aquele que ocupa nessa relação a face dominante construa o esforço para considerar legítimo o que o outro está dizendo", sugere a escritora.

 
 
 
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"O errôneo senso comum de que o diálogo é impossível, principalmente no campo político, precisa ser confrontado. "Sabe por quê? Porque a gente nem tentou dialogar tanto assim. É necessária uma postura ética que priorize o entendimento e não a polêmica. A gente vive numa sociedade em que as trocas se davam de maneira unilateral: o livro dizia, o jornal dizia, as pessoas conversavam só nos seus círculos mais próximos. Ainda não construímos estruturas que nos permitam realizar essas trocas todas", enfatiza Helena. Os caminhos de fala e escuta são múltiplos. "O que eu chamo de generosidade interpretativa é o que vai ajudar a construir no outro uma prática para interpretar melhor. Diálogo tem a ver com dialogicidade, um regime de troca — meu processo de fala, mas também meu processo de escuta no interior dessas práticas", finaliza.

 

O artista

Artista visual catarinense Susano Correia assina a capa do Vida&Arte deste domingo, 30.
Foto: Divulgação
Artista visual catarinense Susano Correia assina a capa do Vida&Arte deste domingo, 30.

Mais do que simples expressão, a arte é um delicado canal de interação e um elemento vital para o desenvolvimento humano. É assim que Susano Correia conceitua o seu trabalho. Natural de Florianópolis, ele começa a se consolidar como um dos expoentes da nova geração de artistas visuais do País. Formado em licenciatura em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) em 2015, o jovem popularizou seus trabalhos pelas redes sociais, o que deu ao artista projeção nacional e possibilidade para dedicação exclusiva à arte. Desde então, Susano desenvolve uma linguagem pictórica contemporânea, com preocupações didáticas, e usa meios democráticos para expor suas obras ao grande público. Com isso, atrai em suas exposições também um público que não tem o hábito de frequentar museus. Em meados de 2019, mudou seu ateliê para a maior cidade da América Latina, São Paulo, que é também um importante polo cultural, com a finalidade de expandir os horizontes, buscar novas experiências e contatos no meio artístico. Site: www.susanocorreia.com.br

 

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