Em mais de seis horas de depoimento à CPI da Covid ontem, a médica Nise Yamaguchi negou que tenha participado de reunião no Planalto para alterar a bula da cloroquina a fim de permitir que o medicamento fosse ministrado no enfrentamento ao coronavírus.
Yamaguchi admitiu, porém, ter integrado um conselho científico extraoficial, do qual também fazia parte o empresário Carlos Wizard, que se reuniu periodicamente com membros do Ministério da Saúde e o seu então titular, Eduardo Pazuello.
"Tinha muita gente na sala e conversamos sobre uma resolução da Anvisa que falava sobre inclusão de nova medicação terapêutica para Covid e também uma nota do Ministério da Saúde", declarou aos senadores sobre agenda no dia 6 de abril do ano passado.
Nessa data, segundo relatos colhidos pela CPI, ela teria apresentado a proposta de adaptação da bula para indicá-la como remédio contra a Covid.
Segundo a médica, no entanto, "a minuta (de um suposto decreto) jamais falava de bula, mas sobre a possibilidade de haver uma disponibilização de medicamentos", que seriam distribuídos para a rede pública de saúde, conforme documento notarial apresentado aos parlamentares.
"Esse papel que estava em cima da mesa só falava sobre dispensação de medicamentos. Sou especialista em regulação, isso jamais aconteceria", contestou.
Oncologista e imunologista, Yamaguchi compareceu à comissão na condição de convidada e não de testemunha ou investigada. Nesse caso, ainda que tenha prestado juramento, não tinha obrigação de falar a verdade.
Durante o depoimento, o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), aventou possiblidade de interromper a sessão e aprovar a sua convocação como investigada. A ideia não prosperou.
A informação de que Yamaguchi havia discutido a mudança na bula da cloroquina, comprovadamente ineficaz contra a doença, foi relatada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, primeiro a depor no colegiado, quase um mês atrás.
De acordo com Mandetta, Yamaguchi tinha sugerido a reformulação, que constava de esboço de decreto a ser assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O ex-ministro reafirmou essa versão nessa terça-feira, 1º.
Aos senadores, Yamaguchi confirmou ter se encontrado com o chefe do Executivo "quatro ou cinco vezes", desde março do ano passado, mas afirmou que, nessas ocasiões, não trataram expressamente da recomendação da cloroquina para combater o coronavírus, embora tenham discutido suposto tratamento que estaria em voga na Europa.
"Eu tive a oportunidade, no início", continuou Yamaguchi, "de receber dele (Bolsonaro) a informação de que existia um tratamento que estava sendo discutido na França. Eu já tinha a informação prévia, e ele me falou nessa reunião que existia".
Em coletiva depois da sessão, Aziz afirmou que a médica "passou oito horas aí e não conseguiu apresentar uma publicação científica sobre cloroquina", mas descartou convocá-la.
"Estava com catatau de documentos", acrescentou o senador. "Sabendo que ia fazer depoimento, teria de saber de cor e salteado uma resposta dessas. Nada disso aconteceu. Foi um baita engodo que se passou pra população."
Em entrevista ao O POVO no último domingo, Aziz avaliou que a fala da médica seria uma das mais importantes da CPI porque, a partir dela, os parlamentares poderiam comprovar ou não a existência do gabinete paralelo da Saúde. O presidente da comissão disse ainda duvidar de que Yamaguchi, pelo currículo e notoriedade, não fosse mentir.
Relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL) assinalou que o depoimento da médica "possibilitou a primeira acareação (da comissão), porque tivemos oportunidade de confrontar Nise presencialmente com os vídeos que ela própria publicou".
"E, pelo que vimos e ficou comprovado", arrematou Calheiros, "a Nise presencial foi contestada pela Nise dos vídeos. Isso possibilitou grande oportunidade que fizéssemos essa averiguação na CPI".
Cientista política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Carolina Botelho destaca que as informações trazidas por Yamaguchi ao colegiado "batem com algumas de pessoas que estavam sendo investigadas" e que ela "parece ter tido influência forte nesse aconselhamento oficioso".
"É como se ela fosse chancelar academicamente, com um crachá de médica, as ideias loucas e torpes, não que ela também não ajudasse nessas ideias, do Wizard, Weintraub, o pessoal que quis arrumar justificativa para manter o tratamento precoce. Deu uma chancelada como médica com alguma reputação, que não era infectologia", aponta.