O aceno aos evangélicos do pré-candidato do PDT à Presidência, Ciro Gomes, seria respondido naquele mesmo dia 21 de junho por Silas Malafaia, pastor da Assembleia em Deus Vitória em Cristo. O líder religioso bolsonarista disse aos fiéis que havia começado o tempo do "cinismo" e da “safadeza política”. Na peça levada às redes, o cearense disse que o País se formou no berço do cristianismo, ainda que seja laico e que não deva haver predominância de um credo sobre outro.
Mostrou Bíblia e Constituição Federal nas mãos como modo de dizer que fé religiosa e política não são atividades conflitantes. Havia no texto lido uma junção entre os elementos contidos no seu programa para o País e o léxico cristão, com palavras-chave como "superação" e "solidariedade".
A entrada inicial do pretendente ao Planalto no mundo evangélico gerou furor à esquerda e à direita. Seja para apontá-lo aproveitador ou elogiar a ideia, muita gente comentou o vídeo. Situado no primeiro grupo, Malafaia disse que o PDT apoia a “ideologia de gênero” e o “aborto”, temas morais e sensíveis ao público a que Ciro se dirigiu.
A ação e a reação não são ocasionais, ocorrem dentro de um cenário mais amplo de busca pela preferência de eleitores ligados a denominações evangélicas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) também tentam agradá-los, cada qual ao seu modo.
As manifestações mais conhecidas do presidente da República sobre a religião envolvem também o Supremo Tribunal Federal (STF). É quando diz que o assento que ficará vago com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello será ocupado por um novo ministro “terrivelmente evangélico”. Foi o segmento que deu ao então candidato Jair Bolsonaro ampla maioria contra Fernando Haddad, representante petista derrotado em 2018.
José Eustáquio Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, estima que 69% dos evangélicos entregaram o voto a Bolsonaro, enquanto que Haddad obteve 31%. O vencedor do pleito ganhou por pouco entre católicos, com 51% a 49%.
Alves toma como base uma projeção em cima de pesquisa Datafolha de 25 de outubro de 2018, aplicada por ele aos votos válidos contabilizados três dias depois, quando apuradas as urnas de segundo turno.
“A pesquisa do Ipec (41% a 32%) mostra Lula ganhando entre evangélicos, mas, no Datafolha, está empatado (35% a 34%). Então, as pesquisas não são conclusivas, não. O que todas mostram é que ele [Bolsonaro] perdeu apoio, mas a questão é saber quanto ele perdeu”, adiciona o demógrafo. A pesquisa Ipec foi publicada em 24 de junho; a Datafolha, em 12 de maio.
O fato de o discurso de Bolsonaro ser fortemente ancorado na moral religiosa e, no entanto, as pesquisas não lhe mostrarem favorito nesse recorte é revelador das complexidades que cercam a questão.
Desde que recobrou os direitos políticos, Lula tem feito conversas com lideranças políticas e da sociedade civil, entre as quais Manoel Ferreira, líder da Assembleia de Deus de Madureira.
Em 2002, o petista obteve no segundo turno, contra José Serra (PSDB), o apoio de líderes como Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus, e de R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus. A aliança se repetiu com Dilma Rousseff (PT) em 2010 e em 2014.
Mas quem é o eleitor evangélico? Graziella Testa, doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), diz ao O POVO logo de início que não se pode interpretá-los como uma massa necessariamente subordinada às preferências político-eleitorais dos pastores.
“Dentro dos evangélicos têm alguns grupos que têm mais organização em torno de definir candidatos institucionalmente, e outros que não. A gente vai ter organizações internas que fazem essa decisão”, destaca a cientista.
Pondera, contudo, que o “eleitorado evangélico não é acrítico, é composto de pessoas que são evangélicas, mas também que são parte de outros grupos que podem influenciar nos seus votos.”
Autor de “Entre a Religião e o Lulismo” (Editora Recriar), Vinicius do Valle faz uma separação entre as características de voto para o Legislativo e o Executivo. A ideologização do discurso é mais convincente quando levada aos eleitores por candidatos a vereador ou deputado.
“Quando a eleição é para governador, para presidente, essas pautas se enfraquecem nas razões que as pessoas dão para o voto. Evangélicos falam que precisam votar em quem tem meus valores, mas para presidente, governador, voto em alguém que vai melhorar a vida de todos”, analisa Valle.
Veja a entrevista de Ivo Gomes, prefeito de Sobral, ao Jogo Político:
Elementos básicos da vida estão falando mais forte que pauta moral, diz Ana Carolina Evangelista
Pesquisadora do neoconservadorismo brasileiro e diretora executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser), Ana Carolina Evangelista disse ainda ser difícil prever se em 2022 o arranjo de problemas econômicos, sociais e sanitários comprometerá o poder mobilização da pauta moral religiosa.
Mas ela toma em consideração os indícios das últimas pesquisas de intenção de voto, com base nos quais afirma que "pautas referentes a elementos básicos da sobrevivência das pessoas - saúde, comida na mesa, renda - estão falando mais forte, por enquanto."
"A nossa crise humanitária - de fome e emprego - e de saúde pública não tem precedentes na nossa democracia recente e, neste cenário, atribuir à esquerda a responsabilidade por esse caos está muito mais difícil", ela escreveu ao O POVO por e-mail.
Evangelista diz que ao tempo em que isso ocorre essas mesmas forças contrárias ao governo atual padecem de um desgaste produzido pelo "acúmulo de anos", sobretudo desde 2010, a partir de quando ela diz que "a pauta chamada moral tem sido sistematicamente mobilizada, utilizada e comunicada em diferentes estratos e segmentos da sociedade."
E adiciona: "Com múltiplas estratégias, na política e na sociedade civil. Com uma aliança entre forças religiosas de diferentes matizes, não apenas evangélica, e uma importante aliança com forças conservadoras em geral, não apenas religiosas."
Questionada sobre que nuances permeiam a relação entre pastores e fiéis, se esse é um convívio baseado em dominação, considerando ser comum que igrejas supram ausências do Estado, Evangelista responde os sentimentos de pertencimento e acolhimento cultivados no ambiente religioso preenchem o vínculo de sentido.
"É importante compreendermos isso porque, se não, numa sociedade historicamente de maioria católica não praticante, vamos sempre olhar para aqueles que optaram por uma outra religião não majoritária como sendo massa de manobra de alguém", verifica Evangelista, também mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP.
Contudo, ela pondera que isso não implica concluir que não exista manipulação de determinadas lideranças e segmentos do universo evangélico que exploram "fraquezas, ausências e medos." "Os últimos ciclos eleitorais nos mostram isso especialmente. Como nessas bases os medos, e seu vínculo com as moralidades religiosas, foram explorados para mobilizar votos."
Esquerda tem de buscar evangélicos que dependam do Estado, diz pesquisadora
Professora na Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas (EPPG-FGV), Graziella Testa observa primeiramente que partidos de esquerda têm de fazer uma “busca ativa” dos eleitores que congregam em igrejas evangélicas - ir em vez de dizer “venham”.
Já será um deslocamento tardio, ela diz, pois por muito tempo não foi realizado ou pouco realizado pelo preconceito de que seriam segmentos já capturados pela direita “em todas as dimensões”.
“Esses partidos vão apresentar para esse eleitorado que eles podem ser atingidos negativamente por pautas economicamente liberais. Ficou muito claro o que há de diferente e conflituoso entre a esquerda e esse grupo. O que a esquerda vai tentar mostrar é o que há de comum.”
Testa menciona que do ponto de vista financeiro a diversidade entre eleitores evangélicos é grande, tornando-os dependentes de serviços públicos muitas vezes oferecidos pelas igrejas. “Esse eleitorado é o que a esquerda vai buscar”, define.
Para o cientista político Vinicius Valle, doutor pela USP, estratégias como a vista no vídeo de Ciro Gomes (PDT) são interessantes se vistas como uma tentativa de aproximação, pois o fiel evangélico quer se sentir levado em consideração. O que para ele não deixou de soar superficial.
"Quem é evangélico sabe quem é próximo das Igrejas e quem não é. Uma tentativa de ser mais próximo do que não é pode gerar alguma desconfiança", ressalva.
Questionado sobre como não parecer artificial na aproximação, ele respondeu não haver fórmulas prontas, porque é diferente o modo como ator político se relaciona com o meio. "Mas o que é mal visto é quando o candidato tenta pregar como religioso, não se apresenta como amigo, mas como pregador", afirma.
Fernando Altemeyer Junior, chefe do departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que a realidade econômica adversa pode se sobrepor ao discurso moral de Bolsonaro, afastando-lhe destes votos.
Por outro lado, o teólogo diz notar haver dominação dos pastores sobre as escolhas dos fiéis. “Cabresto mais religião dá uma sopa amarga, mas para romper com isso vai precisar ter consciência crítica, leitura diferenciada.”
Essa “dominação” será em prol de Bolsonaro? “Nem todos do mundo protestante pentecostal estão felizes. Então, começa a ver brechas no dique aí. Se vai quebrar o açude, não sei. Mas parece que não está tão monolítica como foi.”
Dois pastores evangélicos e os seus mundos
Pastora evangélica, médica, deputada estadual e apoiadora de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). São algumas credenciais de Dra. Silvana (PL). Ela afirma que sua entrada na Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE), em 2010 como suplente, foi resultado de um entendimento negativo sobre os anos de Lula e Dilma Rousseff (2003 a 2016) na Presidência da República.
Ela explica: “Os dois governos de cada um deles, realmente a representação evangélica, se você fizer uma pesquisa, aumentou muito porque na realidade foram governos que realmente nos afrontaram, nos convidaram para a briga.”
Silvana relata que o marido Jaziel Pereira (PL), pastor e deputado federal, a convenceu de entrar “para a disputa”. Jaziel já passou pela AL-CE, mas começou a vida política na Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor), eleito em 2001.
“A gente vê mobilização de grande líderes nacionais que acabam sendo grande inspiração para todo evangélico. Vêm abrindo os nossos olhos porque que se ficarmos de braços cruzados a esquerda vai avançar e vai nos sufocar”, comenta a parlamentar.
Por “sufocar”, ela se refere ao que diz ser “o sonho de criar um mundo literalmente gayzista”. Sobre esse termo, ela sinaliza com segurança ao O POVO que “isso você pode publicar, tem toda minha autorização.”
Questionada sobre o que os eleitores buscam do mandato dela, responde que apenas a “fidelidade com a nossa fé”, isto é, ela diz, uma posição contra o aborto, a “ideologia de gênero” e a favor da família “segundo o modelo de Jesus” - “pai homem, mãe mulher e filhos”.
A mais de 2,5 mil quilômetros distante de Silvana, em Santa Catarina, milita pelo PDT o pastor Alexandre Gonçalves, diretor do Sindicato dos Policiais Rodoviários Federais daquele estado.
Presidente do movimento Cristãos Trabalhistas (ligado ao PDT), ele valia que a esquerda por muito tempo quis impor sua concepção de mundo aos cristãos, sem primeiramente entender a forma de o cristão ser.
A linha conservadora dos membros do movimento não significa reacionarismo, ele faz questão de separar. Enquanto o conservador aceita mudanças graduais, mas sem rupturas, o reacionário as rejeita e “fica com o apego a um passado idílico que na verdade nem existe.”
“Então, esse movimento é formado por pessoas desse tipo que estão ali colocadas para dialogar, então a gente tem um diálogo dentro da esquerda para acabar com esse preconceito e generalização que existe em relação aos cristãos”, explica.
Gonçalves defende que o foco do debate tem de ser aquilo que une todos. Isso significa que as pautas identitárias devem ser interesse do Estado, mas a prioridade há que ser “saúde, educação, políticas de moradia, emprego, industrialização, avanço do país, empoderamento do pobre.”
Assim como o PDT, o PT possui núcleo voltado exclusivamente aos evangélicos. É dirigido pela deputada federal Benedita da Silva (RJ), com quem O POVO não conseguiu falar na última terça-feira, 29, quando ela informou por telefone que estava no plenário da Câmara dos Deputados. Mensagem enviada ao WhatsApp da parlamentar não foi respondida.
Confira o Jogo Político da última terça-feira!