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MP tenta impedir influência das facções nas eleições no Ceará
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MP tenta impedir influência das facções nas eleições no Ceará

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Procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro

Manuel Pinheiro estava no segundo mês como procurador-geral de Justiça do Ceará quando policiais militares pararam e se instaurou uma crise na segurança pública. Duas semanas após o fim do motim, os primeiros casos de Covid-19 foram confirmados no Ceará. Duas crises que deram o tom dos dois primeiros anos de mandato.

Em janeiro passado, ele tomou posse no segundo mandato, após ser reconduzido. A pandemia e a segurança pública seguem como problemas. Recuperar o avanço que havia sido obtido e que se perdeu no combate e no julgamento dos crimes contra a vida. Este ano, complicador extra são as eleições. Que envolvem desafios que vão desde as informações falsas até a presença das facções.

Manuel Pinheiro destaca o quanto o crime organizado já afeta a vida de comunidades, vários setores da economia. E, na eleição de 2020, já teve influência nas eleições, no apoio e no financiamento de candidatos. Algo localizado, segundo ele. Comprovado em três ou quatro municípios. Para este ano, o desafio é impedir que se alastre.

 

OP - O senhor tomou posse em 6 de janeiro de 2020. No mês seguinte, começa o motim na Polícia Militar. No mesmo mês, a Covid-19 é diagnosticada pela primeira vez no Brasil. Como foi lidar com esse período atribulado?

Manuel Pinheiro - Foi um período desafiador. Primeiro, a crise da segurança pública. O Ministério Público teve um papel de articular a resposta com a comissão dos três poderes. Nós sugerimos a formação, essa comissão se reuniu na Procuradoria Geral de Justiça, para ouvir as reivindicações, a vocalização dos interesses daquela categoria e para buscar uma solução que respeitasse a ordem constitucional e legal. Por óbvio, desde o princípio nós sabíamos que era preciso fazer valer as regras do Estado democrático de direito. A Constituição proíbe sindicalização e greve de militares. Isso sempre foi a baliza inicial do nosso modo de atuar. Nós reunimos os três poderes do Estado, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) como observadores, e recebemos interlocutores desse movimento. O que nós conseguimos construir como solução foi a aceitação de uma proposta que já havia sido discutida na Assembleia e a garantia do devido processo legal na apuração das responsabilidades daqueles que se excederam. E o Ministério Público cumpriria esse papel. A Promotoria da Auditoria Militar tem apurado e processado os agentes públicos que se envolveram em atos de vandalismo e, direta ou indiretamente, contribuíram para o motim. Foram tempos muito difíceis. Reuniões muito tensas. Porque nós sabíamos que estávamos sendo acompanhados pela opinião pública estadual e nacional. O resultado daquele impasse poderia ter consequências em todo o País. Porque outros movimentos do mesmo tipo estavam sendo organizados em outros estados da federação. A maneira como nós gerimos aquela crise foi muito exitosa. Nós conseguimos chegar a um consenso em relação à aplicação das sanções a quem havia se excedido, sem qualquer espírito de vingança e a categoria também obteve os reajustes que haviam sido pleiteados e dentro do que era possível. E o Ministério Público teve papel proativo. Não esperou que os problemas viessem através dos processos judiciais. Nós nos antecipamos, facilitamos o diálogo. Fomos firmes, como tínhamos de ser, como órgão que aplica a Constituição e as leis. Foi um processo de muito aprendizado. No fim, acho que a solução que veio atendeu ao anseio da sociedade. Nós lamentamos muito os problemas que nós vivemos até hoje relacionados com aquele movimento. Tivemos a interrupção de um processo muito positivo de melhora dos indicadores de controle da criminalidade. Mas, acho que o Estado do Ceará resolveu esse problema de forma muito civilizada. E deu exemplo para o País. Porque, se não fosse resolvido como foi resolvido no Estado do Ceará, talvez outros movimentos do mesmo tipo tivessem eclodido em outros estados e nós tivéssemos um abalo da segurança pública em todo o País.

OP - O senhor era recém-ingresso no Ministério Público quando houve o primeiro movimento do tipo no Ceará, em 1997. Depois teve outro de 2011 e foram diferentes formas de tratar. Inclusive, creio que 2012 da forma como ocorreu, com concessão de anistia, até estimulou o movimento posterior. O que o senhor acha que teve de aprendizado de um processo desses para outro, de como lidar com movimentos do tipo feitos por militares?

Manuel - A sociedade tem de entender a razão de ser da proibição de sindicalização e greve das forças militares. São pessoas pelas quais eu tenho o máximo respeito. São pessoas que saem de casa todos os dias colocando suas vidas para proteger a vida de todos os cidadãos. São pessoas que têm de ser bem remuneradas, de forma digna, compatível com as responsabilidades das funções que desempenham. O que aconteceu no processo em que nós tivemos de intervir não foi algo trivial. Uma casa parlamentar cercada por milhares de pessoas exigindo uma decisão que lhes fosse favorável não é algo que possa acontecer sem consequências num Estado democrático de direito. A maneira como uma categoria armada se comporta, os riscos da mobilização de uma carreira armada, justificam que a Constituição tenha excepcionado o direito à sindicalização e greve em favor desses profissionais. O que nós tivemos de fazer valer foi o mandamento da Constituição e das leis. Nunca foi do Ministério Público nenhum tipo de animosidade em relação à reivindicação ser justa ou ser injusta por parte da categoria. Foi que o meio da greve, as associações de militares não poderiam patrocinar um movimento de paralisação, porque isso, a escolha da Constituição sempre foi muito clara, de que essas categorias, pela condição em que elas se encontram, pela importância do serviço que elas prestam à sociedade e pela condição também de serem uma categoria armada, não seria possível a sindicalização e a greve.

OP - O Ministério Público é um órgão de controle externo das polícias. No movimento de 2012, depois que acabou o motim, ficaram sequelas internas, na autoridade. Hoje dá para ter noção do impacto, como ficou a situação dentro da Polícia? Se a autoridade foi restabelecida ou se ainda há questões a serem sanadas?

Manuel - Eu não consigo ter essa visão de como a escala de comando internamente está funcionando atualmente. É claro que uma parcela dos policiais não ficou satisfeita com o desfecho. Mas, eu tenho também muita confiança de que as pessoas conseguem entender que não poderia ser um desfecho diferente. Nós tivemos aí 13 dias de greve, com aumento muito importante de todas as taxas de criminalidade, especialmente dos crimes de homicídio. Com o retorno às atividades dessa categoria tão importante, nós começamos a recuperar esses números. O que nós esperamos é que as coisas funcionem como deveriam funcionar. Para que essa categoria não fique sem voz, ela tem de ser representada nos seus pleitos perante a administração pública. Existem outras alternativas. A decisão como paradigma na época é do ministro Alexandre de Moraes e falava que deveria haver um canal de vocalização dos interesses dessa categoria. Mas, esse canal poderia ser uma bancada parlamentar, uma frente parlamentar da segurança pública que apresentasse os pleitos da categoria à administração pública. A Constituição, quando diz que não pode haver sindicalização e greve, não permite que aconteça é a conversa sem intermediação direta, associações de militares agindo como se sindicatos fossem. Os sindicatos sim, na Constituição e na CLT, têm essa atribuição de, diretamente, sentar à mesa de negociação, apresentar uma pauta de reivindicações, inclusive de cunho remuneratório, e discutir isso com quem pode atender esses pleitos. Mas, em relação às carreiras militares, isso não pode ser feito diretamente. Fazer isso diretamente é função típica de sindicato. O Ministério Público, inclusive, atestou isso numa ação judicial. De que as associações de militares não poderiam agir como se fossem sindicato. A CLT diz quais são as funções típicas de sindicato. Entre elas está essa de dirigir-se à administração ou ao empregador, seja público ou privado, sem nenhuma intermediação. No caso dos militares, pela condição própria que eles têm, a associação não pode atuar como se sindicato fosse. Não pode promover atos que indiquem que a deflagração de greve é uma das opções. E não pode também sentar à mesa com uma pauta de reivindicações diretamente, sem a intermediação, seja do comando das forças, seja de uma frente parlamentar. E isso é o que estava acontecendo. O que aconteceu nesse processo, e nós acompanhamos isso de perto, é que as associações agiram como se fossem sindicato. Elas financiaram a realização de vários atos de protesto, alguns na Praça Portugal, outros a redor da Assembleia Legislativa, os seus dirigentes sentaram na mesa com uma pauta de reestruturação das carreiras, agindo como se sindicatos fossem. Como a Constituição não permitia a sindicalização e, como em certo momento houve como que uma convocação para decidir sobre greve, nós tivemos de intervir para que essas associações passassem a atuar como elas podem e devem atuar. Elas têm uma existência lícita para todos os programas assistenciais em favor dos militares, que são prestados, os serviços de assistência jurídica, de assistência médica, odontológica, ações culturais, de integração. Tudo isso é lícito que a associação faça e ela deve continuar fazendo. mas, ela não pode atuar como sindicato, ela não pode sentar à mesa diretamente com o empregador, seja ele público ou privado, e ela também não pode suscitar a deflagração de uma greve, convocar uma categoria para deliberar sobre greve, porque sindicalização e greve são proibidas pela Constituição.

Procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro, na sede da MPCE/Procuradoria Geral de Justiça do Ceará(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro, na sede da MPCE/Procuradoria Geral de Justiça do Ceará

OP - Já têm ocorrido algumas punições administrativas, pela CGD. No âmbito judicial, tem essa perspectiva? Como está o andamento?

Manuel - Da última conversa que eu tive com o promotor da Auditoria Militar, que é o órgão que tem competência jurisdicional em todo o Estado, acho que mais de 400 policiais tinham sido denunciados por participação no motim e por crimes conexos. Não posso lhe afirmar com certeza quantos desses casos já foram julgados, mas nós estamos cumprindo com nosso papel de órgão que apura responsabilidades e, civilizadamente, diz ao Judiciário que, naquelas hipóteses, aqueles agentes devem receber punições, e o Judiciário dá a palavra final. O Ministério Público está cumprindo seu papel. Está respeitando os direitos fundamentais das pessoas que estão sendo investigadas em relação a esses fatos, tentando apurar e chegar à verdade, mostrando esses fatos ao Poder Judiciário, as provas que dizem respeito a esses fatos, e o Poder Judiciário dá a última palavra para saber se a culpa está estabelecida ou não. São diferentes tipos de crimes que são apurados, alguns mais leves, outros mais graves. Alguns crimes foram muito graves. Houve um momento em que uma viatura da Polícia Civil chegou a ser tomada de assalto por alguns participantes desse levante. Algumas coisas também que aconteceram em outras regiões do estado, que foram muito sérias. Tudo isso está sendo apurado por quem tem competência legal. O Judiciário vai dar a última palavra.

OP - A gente teve recorde de homicídios no Ceará em 2017, caiu em 2018, mas foram os dois piores anos na história. Em 2019 teve aquela onda de ataques. E depois da onda de ataques, toda aquela mobilização que houve, teve uma queda muito grande dos homicídios. E em 2020 acontece isso e se interrompe a sequência. Qual avaliação o senhor tem do impacto daquele movimento? Teve um pico de homicídios durante a paralisação, mas depois a gente teve ainda sequelas.

Manuel - O crime é um fenômeno complexo e multicausal. O crime tem aspectos econômicos, sociais, culturais, institucionais. O enfrentamento do crime exige uma conjunção de esforços, uma articulação de ações do Poder Público, da sociedade. Isso vinha sendo feito de forma muito boa no Estado do Ceará, através de uma câmera chamada Ceará Pacífico. Reuniam-se lá o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a OAB, a administração penitenciária, a Secretaria da Segurança Pública, as universidades. Esse diálogo era muito bom. Dentro desse grande programa, o Ceará Pacífico, havia um programa que o Ministério Público havia idealizado, o Tempo de Justiça, que visava acelerar o julgamento dos casos de homicídio acontecidos aqui em Fortaleza com autoria esclarecida. Dentro dessa concertação, vendo o que estava acontecendo que adiava o julgamento dos casos de homicídio. Homicídio é o crime que tem a maior sensação da violência. O modo mais perceptível da violência, que mais aflige a cidadania é o homicídio. Focamos energia no homicídio, mudamos rotinas, mudamos procedimentos, reforçamos a quantidade de juízes, promotores, defensores, delegados atuando nos casos de homicídio. Usamos um sistema para acompanhar todas as etapas dos inquéritos policiais que aconteceram com autoria esclarecida desde 1º de janeiro de 2017, para que fossem gerados alertas para o descumprimento dos casos, para que fossem gerados relatórios de desempenho de cada promotoria, cada juízo, cada defensoria, cada delegacia. Nos reuníamos todos os meses para avaliar os resultados, para corrigir as rotinas, corrigir os procedimentos, vê onde estavam as falhas que a gente às vezes não conseguia observar com mais clareza. Esse esforço surtiu bons frutos. Conseguimos julgamentos de casos importantes de homicídios com grande repercussão em um ano, quando a média nacional era de oito anos e meio. Um caso de homicídio, quando ele é julgado depois de oito anos e meio, não tem mais o efeito dissuasório da sanção penal. Essa mensagem que passa para o inconsciente coletivo de que o sistema funciona. Se você cometer um crime, você vai ser investigado, possivelmente descoberto, submetido a um julgamento e, sendo culpado, condenado a cumprir uma pena. É a forma civilizada com que a gente lida com o crime.

Nós partíamos de um ambiente em que as pessoas tinham baixa credibilidade em relação ao funcionamento do macrossistema de segurança e Justiça, porque elas olhavam para os crimes todos que estavam na nossa memória, do professor Eusélio Oliveira, da Maria da Penha, do caso da bailarina (Renata Braga), todos esses casos transmitiam para o conjunto da sociedade uma sensação de impunidade em relação aos crimes de homicídio. A sensação de impunidade é muito ruim, porque de certa maneira desencoraja as pessoas que conhecem os crimes, as vítimas sobreviventes dos homicídios, ou as testemunhas dos homicídios, a colaborar com a Polícia, com o Ministério Público, com a advocacia, com o poder Judiciário para descobrir como esses fatos aconteceram e, sendo o caso, aplicar as punições. Nós conseguimos, durante um período de um ano e meio, dois anos, inverter um pouco essa lógica. Nós colocamos muita energia, muitos recursos para que os casos acontecessem e fossem investigados, processados e julgados num tempo razoável. Isso tinha um impacto positivo na comunidade. O potencial autor de um homicídio, num ambiente em que ele sabe que vai ser investigado, processado e julgado em oito anos e meio se comporta de uma maneira. E quando ele sabe que é dentro de um ano, ele se comporta de maneira diferente. Estávamos querendo induzir a uma mudança de comportamento no potencial autor do homicídio. De certa maneira, nessas comunidades em que esses crimes de maior repercussão aconteceram, a resposta dada pelo Estado desencorajava o autor e encorajava a testemunha, encorajava a vítima sobrevivente a contribuir com a Justiça. A gente passava de um ambiente em que a gente tinha a violência alimentando a impunidade e a impunidade alimentando a violência. As pessoas nas comunidades até sabem quem são os autores dos crimes, mas elas não têm coragem de revelar quem são os autores, muito menos testemunhar contra os autores dos crimes, porque elas têm pouca confiança de que, ao final, o sistema vai dar a resposta esperada e civilizada que é, conforme o caso, uma condenação. Tentamos resgatar esse sentimento de que o sistema de Justiça funciona. Isso foi muito bom e de certo modo esse movimento da greve e a quantidade muito grande de homicídios que aconteceu naquele mês de fevereiro de 2020, isso mexeu com a cabeça das pessoas. Essa confiança conquistada nas instituições, na Polícia Militar, na Polícia Civil, no Ministério Público, Poder Judiciário, esse desejo de querer contribuir, e a partir disso sentir os resultados acontecendo em um ano, isso se perdeu.

Depois disso veio a pandemia e também nos prejudicou. Para a Polícia Civil investigar os casos ficou mais difícil, o trabalho de campo, durante os meses mais agudos da pandemia. Para nós também, do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria. Fazer as audiências remotamente é diferente de fazer presencialmente. Fazer os julgamentos do Tribunal do Júri também é muito difícil. Nós passamos meses e meses sem fazer nenhum julgamento no Tribunal do Júri. A gente vinha num processo de reduzir um prazo que, no Brasil, como média era de oito anos e meio para um ano, um ano e um mês. De uma hora para outra nós perdemos, retrocedemos. Não temos esse dado hoje preciso, mas talvez os processos dos crimes que aconteceram em 2020 e 2021, a gente vinha reduzindo significativamente, houve um aumento. Houve certa quebra da confiança no sistema. E teve essa situação da pandemia e essa situação também da greve. Mas a gente espera que, superadas essas dificuldades, consiga aos poucos ir retomando. Confiança é muita coisa. Confiança é quase tudo quando você trata de induzir comportamentos ajustados por parte de todas as pessoas que têm a ver com o crime.

OP - Quando se julga o crime em um ano ou oito anos, até mesmo os testemunhos, aquilo que as pessoas lembram, vai se perdendo.

Manuel - Um crime aconteceu digamos ontem. As pessoas têm isso muito fresco na memória. Mas, um crime que aconteceu oito anos atrás, as pessoas já não lembram mais dos fatos, as pessoas às vezes mudaram de domicílio, você não encontra mais aquela pessoa para depor. Aquela pessoa já não confia no resultado do processo, então ela fica intimidada. Quando quando a resposta é mais rápida... O nome do programa é Tempo de Justiça. E o slogan era "Justiça no tempo certo é a certeza do tempo de paz". Porque justiça tardia é quase uma vingança.

OP - O senhor estava à frente do programa.

Manuel - Estava à frente. Eu idealizei o projeto e era o coordenador no âmbito do Ministério Público. E o Ministério Público partiu com essa ideia, conseguiu convencer o Poder Judiciário, conseguiu convencer os órgãos de segurança pública do Estado e a Defensoria Pública também. Era uma experiência muito exitosa porque fazia com que o diálogo acontecesse numa mesa em que todos os atores estavam presentes e convergiam seus interesses porque não era acelerar o processo para a condenação. Era acelerar o processo para o julgamento, pela condenação ou pela absolvição. Respeitando os direitos fundamentais das pessoas investigadas e processadas. Sem isso, a Defensoria Pública não estaria na mesa, a advocacia não estaria na mesa. A gente sempre deixava muito claro: o que nós queremos aqui é a busca da verdade de forma civilizada, respeitando, sem qualquer tipo de pressa que prejudique os direitos fundamentais das pessoas que estão sendo investigadas e processadas.

OP - É uma prioridade para esse segundo mandato, tentar retomar essa pauta?

Manuel - Sim, sim, é uma prioridade. A gente sabe que ainda é muito difícil retomar nas circunstâncias da pandemia. Quando nós colocamos esse projeto e os resultados foram acontecendo, nós conseguimos reduzir 56% em média o tempo de tramitação dos inquéritos e ações penais de homicídio em Fortaleza. Isso foi um resultado muito bom, inclusive premiado nacionalmente. Mas isso depende muito da dinâmica. E a dinâmica hoje não é a ideal. Hoje o oficial de Justiça trabalha com receio porque ele está submetido ao risco da Covid-19. Antes se fazia várias audiências por semana, esse número de audiências caiu. A quantidade de júris também caiu, porque hoje você tem de ter todo um cuidado para poder reunir o conselho de sentença e mais um grupo de pessoas que fazem parte da ação do julgamento. Não se consegue reunir como reunia há dois anos, com mais facilidade. Hoje tem toda uma cautela. Tudo é naturalmente mais lento. Nas atividades todas que nós desenvolvemos. Também em relação ao jornalismo vocês devem sofrer impactos também devido ao fato de que a pandemia mudou as nossas vidas. Mudou nossa maneira de trabalhar. É muito difícil para nós trabalhar apenas com o virtual. Em muitas áreas do Ministério Público, a gente precisa do contato com a população. Isso isso é fundamental pra nós. Muita gente vive num ambiente de exclusão digital. Muitas ações que nós que nós temos, nós nos afligimos com a possibilidade de que as pessoas não busquem os nossos serviços, porque elas não sabem ler, não têm acesso à internet. Esse contato pessoal para nós é fundamental. Afeta muito a qualidade do nosso serviço não ter o contato pessoal e a pandemia atrapalhou muito isso.

OP - Outro ponto que surgiu durante o motim, não sei o quanto as investigações apontam para isso, são informações de que facções que estavam desorganizadas voltaram a se organizar, tomar alguns territórios a partir dali. O movimento que vinha de 2019, para 2020 já tomou pra conotação. É possível mapear isso, o quanto foi determinante também para uma certa reorganização das facções?

Manuel - Eu acho que houve uma janela de oportunidade. Aqueles 13 dias ali, de certa maneira, havia um trabalho de combate às facções criminosas que seguia num rumo. E naquele intervalo de 13 dias acolá, de certa maneira, as facções ficaram muito à vontade para atuar, para circular, para fazer acordos, para se fortalecer. Mas, se eu disser para você que tem uma informação precisa em relação a isso, eu não tenho. É uma impressão, é apenas uma impressão de que realmente se abriu uma janela de oportunidade com aquela crise. A situação de uma força de segurança que estava organizada, trabalhando de forma muito competente. Vinha realmente se baseando sempre nas melhores práticas. Sentiu-se o avanço da Polícia Militar, via-se a Polícia Militar começando a atuar com base em inteligência artificial, de ter uma predição dos fatos que podem acontecer a partir dos episódios do passado, as viaturas circulando levando em consideração a quantidade de ocorrências de furto, de roubo em cada lugar. Uma tropa motivada também. E aquela crise, na minha opinião, também gerou uma janela de oportunidade para que essas facções tivessem um sossego, porque as forças policiais não estavam mais com a mesma energia naquele momento. A partir dali eu acho que a coisa piorou um pouco. A gente está vendo aos poucos uma recuperação, mas é um desafio imenso, como civilização, lidar com as facções criminosas. Estão infiltradas. Quem olha de fora não imagina a complexidade que é lidar com todo esse contexto de ocupação das facções criminosas, de infiltração das facções criminosas. Em muitos setores da economia, da vida das pessoas, nas comunidades. O Brasil vive um fenômeno, não é particular do Ceará. Começou, inclusive, em outro estado da federação. É mais grave em outro estado da federação. Mas, as consequências disso e a maneira de lidar com isso não é nada trivial, não é nada fácil. Exige muita energia, muita competência.

OP - Quando o senhor ainda se debruçava sobre a crise da segurança veio a pandemia. Qual o papel do Ministério Público nesse período?

Manuel - Foi outro momento muito desafiador. Nós saíamos da crise da segurança pública e entramos na crise sanitária. Nós tivemos um desafio para manter as atividades ordinárias do Ministério Público. De ter de em certo momento colocar os membros e servidores em teletrabalho, fornecer para esses membros e servidores os recursos tecnológicos para continuar atendendo à população e fazendo as audiências. A seguir, dentro do que era possível, cumprindo as atribuições em muitas áreas diferentes. O Ministério Público atua na parte criminal, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, proteção de direitos fundamentais, das crianças, adolescentes, idosos. A área de atuação do Ministério Público é muito ampla e nós tínhamos um desafio muito grande de que cada setor desse continuasse trabalhando, na medida do possível, sem perdas para a população. E tivemos uma atuação concentrada também, das Promotorias da Saúde Pública na capital ou no interior, sob a coordenação de um Centro de Apoio Operacional da Cidadania, que hoje é o Setor Operacional da Saúde. Nós tivemos de criar uma unidade de respaldo, de orientação para os promotores em relação à saúde pública. Esse fenômeno mostrou o papel do Ministério Público de acompanhar todas as políticas em relação à saúde. Nós não tínhamos centro de apoio da saúde, mas nós criamos o centro de apoio da saúde. E nós tivemos muitos desafios. Combater a especulação que estava existindo na venda de remédios, venda de máscaras, no começo da pandemia. Cobrar do poder público também a ampliação da quantidade de leitos de enfermaria, de UTI. Cobrar do setor privado, dos planos de saúde, também ampliação dos atendimentos em enfermarias e UTIs. Brigar por vacinas também. Em certo momento entramos com ação judicial porque o Estado do Ceará estava sendo discriminado na distribuição das vacinas, recebendo uma quantidade de vacinas inferior àquilo que proporcionalmente deveria estar recebendo. Foram momentos muito aflitivos. O Ministério Público participou das instâncias, acompanhou de perto a tomada de decisões. Acompanhou o uso dos recursos públicos também. Em cada município, os promotores abriram procedimentos para prevenir que acontecessem desvios de recursos públicos. Reconhecendo que em algum lugar aconteceu o desvio, o procedimento também foi instaurado de investigação e apurada a responsabilidade, o Judiciário também está sendo movido para buscar punição a quem tenha se desviado em relação a isso. É algo que que mexeu com as nossas vidas de uma forma que acho que gerações e gerações não haviam passado por isso como nós estamos passando agora. A nossa capacidade de resiliência, de adaptação foi muito testada.

Nós conseguimos dar conta do recado em termos de produtividade. Mais ou menos, quase com os mesmos números em todas as áreas do que nós fazíamos antes da pandemia. E colocamos muita energia nisso. De tomar as opções sempre seguindo o que dizia a Constituição, o que diziam as leis, o que diziam as autoridades sanitárias. É importante também que isso fique bastante claro. As atuações do Ministério Público são baseadas no que diz a Constituição, no que dizem as leis, na jurisprudência do Supremo também. Nós não tomamos as decisões em relação ao controle da pandemia são das autoridades sanitárias. A lei da Covid diz isso com muita clareza. Agora, um órgão que aplica a lei e que zela pelo cumprimento da lei, a partir dessa decisão sanitária, nós tomamos as providências. E foram muitas, muitíssimas providências em todas as áreas. A defesa do consumidor também. O Decon teve uma atuação muito destacada. Agora mesmo, poucas semanas, poucos dias atrás, mais uma ação em relação às farmácias que estavam cobrando preços abusivos em relação às máscaras N95 e PFF2, que estavam sendo recomendadas para certos estabelecimentos. É um desafio muito grande. Eu sinceramente não esperava ter de enfrentar duas crises tão graves, uma atrás da outra. Mas, a gente está fazendo o possível para dar conta do recado.

OP - Em relação ao combate a corrupção hoje, como é que o Ministério Público está estruturado? Isso perdeu espaço no meio dessas crises?

Manuel - Nós tivemos dificuldades também em relação a isso. As operações que são feitas pela Procap, algumas pelo Gaeco em relação ao combate à corrupção, foram muito prejudicadas também durante a pandemia. Pela própria dificuldade de acesso a operações de campo, em que nós sempre conseguimos coletar evidências. Até para organizar as operações foi muito mais difícil. Mas, nós conseguimos manter uma quantidade satisfatória de investigações. O próprio contato com o Poder Judiciário foi mais difícil durante esse período. Mas, o Ministério Público continua tendo um compromisso muito firme de combate à corrupção. Uma atuação que, sendo proativa também, ela previne. Como nesse episódio todo da Covid. O simples fato de termos promotores em todas as comarcas acompanhando de perto a execução dessas verbas da saúde já, de certo modo, inibe comportamentos de desvio desses recursos. E aqueles fatos que foram noticiados, e foram muitos fatos noticiados em relação a isso, todos foram encaminhados para os promotores de Justiça que têm atribuição legal. Há investigações em curso ainda sobre isso. Tudo vai ser apurado. Com responsabilidade, com seriedade e com isenção. É isso, eu acho, que a sociedade espera do Ministério Público.

Procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro

OP - A gente sempre ouviu que a corrupção, sobretudo nos municípios, em prefeituras, passa muito por licitações. Direcionamento ou dispensas de licitação. É por aí ou vocês têm identificado que os corruptos têm encontrado outros instrumentos? Ou segue sendo nessas frentes?

Manuel - Essas contratações públicas realmente são o principal momento em que esses esquemas de corrupção funcionam. A gente continua atento a isso. Com a colaboração de outros órgãos de controle, do Tribunal de Contas do Estado (TCE), que sempre analisando as contas vez por outra encontra um indicativo de irregularidade. É importante esclarecer para sociedade que o Ministério Público não é o único órgão que investiga a corrupção. Ele tem uma atuação destacada em relação a isso, mas as atribuições também são da Polícia Judiciária, no caso da Polícia Civil no Estado do Ceará. Que tem as suas unidades também para essa finalidade. E nós continuamos fazendo operações. Temos um grupo especial de combate a organizações criminosas, para além da Procap, que também fez várias operações ao longo desses últimos dois anos. Estamos trabalhando para melhorar nossa atuação no que diz respeito à lavagem de dinheiro, que é um crime consequente da corrupção. É talvez a maneira mais eficiente de chegar às evidências e principalmente recuperar aquilo que foi desviado dos cofres públicos. A gente tem de melhorar a nossa capacidade de atuação no combate à lavagem de dinheiro. A gente vive num ambiente, no Brasil inteiro, de muita informalidade na economia. Isso facilita muito a atuação do crime organizado nessa parte de recurso público. Porque muitas pessoas conseguem enriquecer e desfrutar de um grande patrimônio sem que ele seja registrado no seu nome. A gente tem aqui o fenômeno dos laranjas, em todos os tipos de crimes. Os crimes relacionados com a corrupção. Nos crimes também das organizações criminosas é impressionante a quantidade de bens que são registrados no nome de pessoas que não têm renda suficiente para poder adquirir aquele patrimônio. É um desafio como sociedade também que as normas jurídicas sejam melhores em relação a isso. Que não seja tão fácil lavar dinheiro no Brasil. Eu fui promotor de Justiça dos crimes contra a ordem tributária, durante um bom tempo. E eu me chocava quantas vezes eu ia elaborar uma denúncia do crime de sonegação fiscal e quando ia ver o quadro societário da empresa, tinha uma pessoa na função de motorista, de porteiro daquela empresa, mas figurava formalmente como sócio. E a gente sabia que não era aquela pessoa que tinha tirado proveito econômico daquele crime. Mas, formalmente, era ele o proprietário de uma grande empresa, era ele o proprietário de veículos, de joias, de aeronaves. Esse esse é um grande desafio. No Brasil, o combate à lavagem de dinheiro é muito ineficiente ainda. Há uma série de mudanças que não dependem só dos órgãos de controle. Eu acho que a gente tem um desafio, porque enquanto o crime for proveitoso, vai sempre ter alguém que queira cometer. Se você conseguir retirar o proveito do crime, as que pessoas entram nos esquemas de corrupção, as pessoas que entram nos esquemas de lavagem de dinheiro não estão lá por outra coisa que não seja pelo dinheiro. Se você conseguir retirar o dinheiro, que é o ganho financeiro do crime, você diminui a quantidade desses desses eventos.

OP - A gente tem eleição esse ano. Como vocês estão se preparando para eleições que devem ser tão complexas?

Manuel - O Ministério Público, historicamente, tem sido a instituição que tem tido um papel muito destacado, até mais do que os partidos políticos e os candidatos também no processo, de apuração do abuso do poder econômico, do abuso do poder político. A maior parte das ações é por crimes eleitorais, as ações eleitorais são movidas pelo Ministério Público. Nós temos pela frente um grande desafio em relação a essa eleição. Problemas novos que a gente não tinha há algum tempo. Toda essa problemática relacionada com as notícias falsas. A maneira como esse fenômeno. Tem de encontrar um ponto de equilíbrio entre a liberdade de informação, a liberdade de expressão e a informação de qualidade que deve ser dada ao cidadão e particularmente ao eleitor nesse processo. É algo que a gente está aprendendo, como sociedade, a conviver com isso. Nós temos muita preocupação com com esse fenômeno nas eleições de outubro. Preocupações também com a infiltração do crime organizado. Nós, nas eleições anteriores, tivemos alguns episódios que claramente revelavam que organizações criminosas estavam participando, financiando certas candidaturas clandestinamente. Isso é um problema muito grave, também, que essas pessoas tenham relações e passem a atuar também, essas organizações criminosas, nos contratos públicos. Contratos de grande valor, que essas organizações também passam a ter interesse. Isso é outro desafio muito grande. E o Ministério Público, como órgão que tem a missão constitucional de zelar pelo regime democrático, tem de fazer tudo que estiver ao seu alcance para que o pleito seja regular, isento, que todos acatem o resultado das eleições. Porque esse é o nosso modo de vida. É assim que a Constituição traduz o acordo que foi feito pelos nossos ancestrais, de convivência num regime democrático. Fazendo as suas escolhas de forma livre, sem interferências de abuso do poder econômico, do poder político. Vamos fazer um esforço muito grande para concluir o concurso de promotor de Justiça antes das eleições. É outro desafio. A quantidade de promotores hoje no interior é muito pequena. Nós estamos com o quadro muito esvaziado, isso nos preocupa muito. Estamos aqui o tempo todo com as instâncias internas e com a instituição contratada cobrando para que o cronograma seja seguido, para que a gente tenha condição de nomear promotoria de Justiça para exercer as funções eleitorais antes de a eleição acontecer. Se nós não conseguirmos isso, vamos ter de tirar promotores da Capital durante o período período mais curto do processo eleitoral para acompanhar as eleições no interior. Mas, são pessoas experientes, são pessoas competentes, que sabem da importância do papel que o Ministério Público vai ter nesse processo. E, para além disso, toda uma articulação que deve existir entre os poderes do Estado. A imprensa tem um papel fundamental nesse processo também, para que a gente tenha a condição de que as eleições aconteçam com tranquilidade e essa renovação de mandatos aconteça de maneira tranquila.

OP - Sobre esse ponto da presença das facções nas eleições. O que é possível fazer? Como é possível combater isso?

Manuel - Nós temos um trabalho de inteligência que é feito pelo Ministério Público, pelos órgãos de segurança pública, que não raro descobre que certas candidaturas têm vinculações com o crime organizado. Nós demos atenção especial a isso na eleição passada. Vamos colocar muito foco nisso de novo. É um fenômeno muito preocupante. Já afeta a segurança pública, já afeta a prestação de outros serviços públicos. Em alguns bairros aqui da capital e de outras cidades também. O que a gente tem de fazer é ter condições de rastrear, de encontrar esses fatos que que revelam o envolvimento de facções com as campanhas e buscar punição para os partidos e candidatos que se envolvam com isso. Punições no campo eleitoral e punições também no campo criminal. Realmente, é muito preocupante e absurdo que nós tenhamos esse envolvimento. Eu não digo que seja algo generalizado, está longe de ser isso. Foi algo ainda pontual na eleição passada. Eu acho que a gente teve talvez, apurados mesmo, três ou quatro municípios em que havia com clareza essa aproximação ou tentativa de aproximação das facções com os partidos e com candidatos. Mas, a gente não pode deixar que isso se alastre, que isso cresça. Eu acho que as ações que foram feitas naquele momento tem de continuar sendo feitas, para que isso não se torne um problema maior do que ele já é.

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