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O passado voltou: um perfil de Vladimir Putin
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O passado voltou: um perfil de Vladimir Putin

De ex-espião a autocrata, Vladimir Putin manobrou para assegurar seus planos de restauração da "antiga mãe Rússia"
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Presidente russo Vladimir Putin (Foto: ALEXEY NIKOLSKY / SPUTNIK / AFP)
Foto: ALEXEY NIKOLSKY / SPUTNIK / AFP Presidente russo Vladimir Putin

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Em reportagem hoje profética publicada em março de 2000 no New York Times, o jornalista britânico John Lloyd escrevia que, a quem ele perguntasse sobre o que achavam da chegada ao poder na Rússia de um certo Vladimir Vladimirovich Putin, então com 47 anos e com cabelos que lhe caíam pelas laterais, ouvia como resposta: "O passado voltou".

A imagem não poderia ser mais precisa. Ex-membro do "Komitet Gosudarstveno Bezopasnosti" (KGB) e depois dirigente do Serviço Federal de Segurança (FSB, na sigla em cirílico) da Rússia, Putin seria alçado do posto para o cargo de premiê e, em seguida, de presidente, cujo mandato exerceria sucessivamente, mantendo-se no poder seja por meio direto, seja indireto.

Entre a ascensão, em 1999 e no ano seguinte, em substituição a Boris Ieltsin, e a invasão da Ucrânia na madrugada da última quinta-feira, 24, passaram-se mais de duas décadas, no curso das quais Putin travou ao menos duas guerras, anexou territórios (Crimeia), sufocou revoltas (Chechênia), redefiniu o espírito russo e trouxe mais instabilidade para uma ordem pós-Guerra Fria no centro da qual ele busca alargar o espaço vital do seu país.

Ex-espião, formado em Direito, amante das artes marciais, exibicionista despudorado em relação a seus dotes militares, Putin nasceu na simbólica São Petersburgo, a Leningrado do cerco da II Guerra Mundial. Filho de um combatente e de uma sobrevivente do conflito, alimentava um imaginário no qual se via frequentemente como herói.

Putin Aguanambi 282(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Putin Aguanambi 282

A história, porém, talvez o mostre desempenhando o papel contrário. E não apenas pelo gesto mais recente de agressão à Ucrânia. Mas porque, em mais de 20 anos no poder - serão 24 quando os mandatos se encerrarem, mas com possibilidade de renovação por mais 12 -, a Putin é atribuído um rosário de crimes, da perseguição política ao assassinato de adversários por envenenamento.

"Se analisado friamente", escreve o jornalista russo Mikhail Zygar, "esse quadro é o de um homem que se tornou rei por acaso. Sua ideia inicial era se agarrar ao trono, mas, ao perceber que a sorte estava do seu lado, decidiu se tornar um reformador-cruzado: vamos chamá-lo de Vlad, coração de leão".

Autor de "Todos os homens do Kremlin: os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin", uma radiografia dos processos por meio dos quais o ex-agente e espião se tornara um dos homens mais poderosos do planeta, Zygar afirma que o mandatário passaria rapidamente por uma metamorfose.

Ao "coração de leão", se seguiriam "Vlad, o magnífico" e, agora, Vlad, o terrível" - há quem encare toda essa trajetória como unicamente odiosa e temível, vendo já nos primeiros passos de Putin a semente do que depois ele viria a se tornar: um autocrata, populista e figura beligerante e ressentida que, municiado de uma retórica passadista, acenderia o coração de seu povo na tentativa de restituir o seu orgulho.

 

"Ao "coração de leão", se seguiriam "Vlad, o magnífico" e, agora, Vlad, o terrível" - há quem encare toda essa trajetória como unicamente odiosa e temível, vendo já nos primeiros passos de Putin a semente do que depois ele viria a se tornar: um autocrata, populista e figura beligerante e ressentida"

 

Claro que as grandes reservas de petróleo e gás o ajudariam nessa tarefa, já que o bom desempenho da economia russa é um dos trunfos do presidente, que permanece no controle do poder a despeito da oposição, a qual sufoca, e das vozes dissidentes, às quais impõe o silêncio.

Como a do ex-agente da FSB Alexander Litvinenko, morto em 2006 depois de se mudar para Londres na esteira de denúncias de corrupção que havia feito contra o regime russo. Numa fuga cinematográfica descrita em pormenores no livro "Morte de um dissidente" (Cia das Letras), Litvinenko buscaria refúgio na Inglaterra depois de um périplo pela Turquia. Lá, no entanto, as mãos invisíveis da máquina de assassinato o alcançariam.

 

Em seu corpo, a polícia detectou a presença de elemento radioativo raríssimo, o polônio 210. Litvinenko agonizou por 22 dias depois de contaminado, ao fim dos quais acusou Putin de tê-lo matado.

"Morte de um dissidente", publicado no Brasil em 2007, narra o calvário do ex-agente a partir da perspectiva de Alex Goldfarb, um microbiologista russo emigrado para os Estados Unidos na década de 1970 e amigo da vítima, e Marina Litvinenko, cujo sobrenome entrega: é viúva.

Assim como a morte de Litvinenko, Putin seria suspeito de outros crimes, também por envenenamento, variando apenas a substância utilizada. Agora não mais o polônio, mas o novichok, uma neurotoxina desenvolvida na Rússia nas décadas de 1970 e 1980 e cujo nome significa "novato".

Putin reconheceu regiões separatistas(Foto: ALEXEY NIKOLSKY / SPUTNIK / AFP)
Foto: ALEXEY NIKOLSKY / SPUTNIK / AFP Putin reconheceu regiões separatistas

O último registro data de 2018, quando um casal foi encontrado desacordado na Inglaterra após contato com o mesmo produto que havia envenenado o ex-espião russo Sergei Skripal e sua filha, Yulia, meses antes.

Putin, obviamente, nega todas essas acusações. Mas ele também negava que tivesse pretensão de invadir a Ucrânia e, antes disso, que havia massacrado chechenos ou que estivesse alimentando separatistas em ex-nações soviéticas, a fim de provocar sublevações em cadeia e desestabilizar regimes, por meio de ameaças ou da nova face do confronto que ele ajudou a aprimorar: a ciberguerra.

Do garoto franzino fã de histórias de espionagem ao presidente fanfarrão que gosta de posar montando a cavalo e se gaba de já ter lutado contra um urso, Putin cultiva uma aura de macheza, de virilidade militarizada, da qual tira proveito na construção da autoimagem de líder inconteste.

Faixa preta de judô e divulgador do esporte, esforça-se em parecer simpático publicamente e identificado com os valores de seu povo, recorrendo a símbolos fortes como o da igreja ortodoxa russa.

O mundo era um quando chegou à função de premiê a convite de Ieltsin, em 1999. Depois, quando se elegeu presidente, em 2000, começou a tentar configurar uma nova ordem, uma que fizesse justiça ao que considera como a "grande mãe Rússia" e na qual as forças da Otan e da Europa não representassem obstáculos a seus planos de expansão.

Para tanto, convenceu o eleitorado a lhe conceder mais quatro anos depois de haver deixado a presidência em 2008, pondo em seu lugar um aliado, Dmitri Medvedev, que governaria até 2012 - dali em diante, Putin voltaria, desta vez sem hora para sair.

Naquela mesma reportagem assinada para o New York Times e publicada em 2000, quando os delírios de Putin eram então pouco críveis, John Lloyd foi advertido por um analista gabaritado: "A prioridade de Putin será aumentar os poderes do Estado, e na Rússia essa tradição é sombria".

Todos os eventos das últimas 72 horas, durante as quais o poderio e a ambição se Putin se mostraram sem limites, provam que, muito tempo atrás, as garras do urso já estavam à mostra para quem quisesse ver.

 

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