José Eduardo Cardozo foi destacada personagem do PT nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Na eleição que levou Lula à Presidência, em 2002, ele foi o terceiro deputado federal mais votado de São Paulo e o segundo do PT — atrás de José Dirceu. Nos governos de Dilma, foi ministro da Justiça e, na fase final, advogado-geral da União. Foi também advogado pessoal de Dilma no processo de impeachment.
Nessa função, acompanhou a sequência de acontecimentos que foi da saída de Dilma, a ascensão de Michel Temer (MDB), a eleição de Jair Bolsonaro (PL), agora derrotado por Lula. Tudo considerado por ele um mesmo processo, de desestabilização das forças democráticas.
Ele teve rápida passagem por Fortaleza na última quinta-feira, 17, onde participou do lançamento do livro Crianças e adolescentes vítimas da ditadura — Reparação dos danos à luz dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do advogado Hélio Leitão, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Ceará e hoje conselheiro Federal da OAB. Antes do lançamento, ele concedeu entrevista ao O POVO, na sala da presidência da OAB Ceará.
Cardozo foi um dos coordenadores da transição entre Lula e Dilma. Atualmente, porém, ele está afastado. Acompanha de longe, dá sugestões quando pedem. Mas, está se dedicando ao trabalho como advogado e à vida acadêmica. É dessa posição de quem observa de fora, mas conhece o PT bem de dentro, que o ex-ministro analisa o momento político do País e as perspectivas para o retorno de Lula ao poder.
O POVO - O senhor veio a Fortaleza para o lançamento do livro do Hélio Leitão sobre crianças vítimas da ditadura. Esse debate fica mais relevante quando há pessoas em frente aos quartéis a pedir uma intervenção militar?
José Eduardo Cardozo - Esse livro vem em excelente hora. Resgatar certas questões, debatê-las é de uma atualidade impressionante exatamente por força de pessoas estarem pleiteando a volta do regime militar. Eu nunca imaginei, depois do fim da ditadura, que nós vivêssemos um momento em que pessoas quisessem voltar a esse passado sombrio, a esse passado de chumbo. A esse passado que fez verdadeiras atrocidades com vidas humanas e desrespeitou de forma tão clara direitos básicos e fundamentais das pessoas. Essa é uma obra de fôlego, uma obra que acho que calha bem para ser lida no momento histórico em que nós vivemos.
OP - Quando a gente discute crianças que foram vítimas, foram sequestradas e foram torturadas... Não que algum argumento justifique, mas tem sido recorrente entre defensores da ditadura afirmar que quem sofreu foram terroristas. Quando as vítimas são crianças, cai qualquer argumento por terra.
Cardozo - É repugnante pensar que seres humanos tenham feito barbaridades como essas e é igualmente repugnante imaginar pessoas que elogiam esses seres humanos. Uma das questões centrais que o Brasil e a humanidade vivem hoje é o respeito a esses valores humanistas. É o respeito à dignidade da pessoa humana. No fundo, as ditaduras são a negação absoluta da vida da pessoa humana. Violam a essência dos seres humanos, violam seus direitos, violam o direito de as pessoas serem pessoas e isso, a meu ver, é algo que precisa ser colocado com muita prudência neste momento que hoje nós vivemos.
OP - Por falar neste momento, o senhor foi advogado no processo de impeachment de Dilma Rousseff. Ela saiu, entrou Michel Temer, sucedido Jair Bolsonaro e agora a eleição do Lula. Qual é a sua visão desse processo e quão interligado tudo isso está.
Cardozo - Isso é um mesmo processo. A queda do governo Dilma Rousseff faz parte de um processo de desestabilização das forças democráticas. Evidente que há em cada momento forças novas ou coisas antigas a interagir, mas desde a queda de Dilma Rousseff, a prisão do presidente Lula, tudo isso preparou o terreno para a vitória de Jair Bolsonaro. Isso nos dá a dimensão do quão nocivo foi esse processo de negação da democracia, uma democracia que foi negada quando se derrubou uma presidente legitimamente eleita. Uma democracia e um Estado de direito que foram negados quando o presidente Lula foi preso de forma arbitrária. Uma democracia que foi negada e está sendo negada por um presidente da República que o tempo inteiro tentou dar um golpe de Estado, tomou iniciativas para isso e agora faz com que seus seguidores não queiram respeitar um resultado legítimo dado pelas urnas. Isso é um processo político que felizmente parece que está sendo derrotado. Não que ele acabou. Ele continuará, infelizmente, porque há pessoas demais defendendo esse tipo de situação que, acredito, é uma involução na história brasileira.
OP - Antes da eleição, o senhor deu uma entrevista em que dizia que poderia não haver golpe, mas Bolsonaro tentaria criar confusão em caso de derrota.
Cardozo - É exatamente o que está acontecendo. Eu acho que, se ele pudesse, ele teria dado o golpe. Ele não reuniu forças políticas nem apoio internacional para que pudesse fazê-lo. Então ele tenta tumultuar o processo, quer se legitimar como um líder da extrema direita e da negação da democracia no Brasil. É uma situação muito perversa que eu acredito que exige hoje a união de todas as forças democráticas, independentemente das divergências, para enfrentar esse processo. E acredito que o presidente Lula será o nosso grande timoneiro da formação dessa grande coalizão de forças e defesa do Estado de direito do Brasil.
OP - O que o senhor imagina desse novo governo Lula? O que ele precisa ser em relação ao que foi o primeiro e o segundo governo Lula, em relação ao novo momento?
Cardozo - Eu acredito que o governo Lula navegará orientado pelos mesmos princípios que orientaram o seu governo no passado, mas a conjuntura é diferente. A conjuntura mudou nesses anos, a conjuntura política, a conjuntura econômica, conjuntura internacional. Então, esses princípios vão ter de ser adequados ao momento histórico que nós vivemos. Primeiro, formando uma equipe que reúna forças políticas bem coesas, mas, ao mesmo tempo, plurais. Segundo, invertendo situações que vinham sendo seguidas por Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro fez um aparelhamento do Estado na perspectiva em que ele tentava utilizar os órgãos estatais como se fossem fruto de si mesmo. Era como se fosse um Luís XIV à brasileira. "O Estado sou eu". Esse tipo de coisa tem de ser revertida, o governo tem de reestruturar o Estado brasileiro naquilo que foi carcomido, vilipendiado e destruído pelo governo Jair Bolsonaro.
OP - O que Lula e o PT devem fazer para que daqui a quatro anos a gente não tenha o retorno do bolsonarismo?
Cardozo - Eu acredito que somar todas as forças que defendem a democracia, como foi feito na eleição. Eu acredito que esse extremismo que vai do negacionismo da ciência até a defesa de torturadores e até pedindo ditadura militar, ele tem de estar cada vez mais sendo desvelado aos olhos da população no quão nocivo ele é para todos os brasileiros e para todas as brasileiras. Acho que o governo Lula terá de cumprir o seu papel que é fazer um governo dentro dos seus princípios, mas sempre mantendo uma coesão muito forte nos setores que defendem a democracia do País.