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Plano para resgatar Napoleão envolveu movimento nordestino do qual Ceará fez parte
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Plano para resgatar Napoleão envolveu movimento nordestino do qual Ceará fez parte

Revolução Pernambucana de 1817 foi único movimento de libertação a de fato tomar o poder na história do império colonial português. Foram 75 dias de uma República no Nordeste brasileiro, com participação do Cariri cearense. Movimento enviou representante aos Estados Unidos e se envolveu em um mirabolante plano para resgatar Napoleão Bonaparte
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Napoleão Bonaparte está em evidência mais de 200 anos após a morte, com o lançamento nos cinemas da superprodução de Ridley Scott, com Joaquin Phoenix como o imperador da França e Vanessa Kirby como a imperatriz Josefina. A história do líder militar que conquistou a Europa influenciou o Brasil desde a ascensão até depois da queda. Um dos episódios mais curiosos se referiu ao plano de resgatar Napoleão do exílio na ilha de Santa Helena e levá-lo ao Brasil, em meio ao levante republicano da Revolução Pernambucana de 1817, na qual o Ceará teve papel destacado.

"1817 foi a mais linda, inesquecível, arrebatadora e inútil das revoluções brasileiras. Nenhuma nos emociona tanto, nem há figuras maiores em tranquila coragem, serenidade e compostura, suprema decisão de saber morrer, convencidos da missão histórica, assumida e desempenhada", escreveu Luís da Câmara Cascudo em História do Rio Grande do Norte.

Embora leve o nome de Pernambuco, o movimento envolveu também Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. De certa maneira, Napoleão está na raiz da origem do movimento nordestino.

Causas da Revolução Pernambucana

A revolução foi resultado das insatisfações nas capitanias nordestinas das transformações introduzidas pela chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. A rainha, dona Maria I, o príncipe regente dom João, a princesa Carlota Joaquina e a corte lusitana deixaram Lisboa com destino ao Rio de Janeiro justamente para fugir da invasão das tropas napoleônicas. Nas memórias, no exílio em Santa Helena, Napoleão escreveu sobre dom João VI: "Foi o único que me enganou".

A chegada da família real — caso sem precedentes de uma corte europeia que desembarcou em colônia na América — mudou a história do Brasil de forma radical. Houve abertura dos portos coloniais às nações amigas. Na época, referia-se basicamente ao Império Britânico. Foram feitas melhorias urbanas e embelezamento do Rio de Janeiro, a nova capital do império colonial português. Foi criada a Imprensa Régia, o Banco do Brasil, a Real Fábrica de Pólvora, a Real Academia Militar, o Jardim Botânico. Tudo isso no Rio de Janeiro.

Insatisfação do Nordeste açucareiro

As atenções voltadas para a corte aceleraram o processo de decadência do antigo Nordeste açucareiro, cujo coração era Pernambuco. A perda de espaço começara ainda no século XVII, mas se aprofundou com as transformações ocorridas no começo do século XIX. Em particular, porque o novo aparato administrativo foi financiado por mais impostos, que pesaram sobre toda a colônia para beneficiar basicamente o Rio. As capitanias contribuíam até para pagar a iluminação pública carioca, enquanto as cidades espalhadas pela colônia permaneciam na penumbra.

Pernambuco deixara para trás o auge da prosperidade da cana-de-açúcar. No começo do século XIX, o algodão se destacava como produto de exportação. Havia grave crise econômica, agravada pela seca de 1816.

O contexto ofereceu as causas objetivas e o pensamento que orientou a revolta foi inspirado no pensamento liberal e republicano da Revolução Francesa, da qual Napoleão foi herdeiro, de certa forma, e sucessor. As ideias eram propagadas pela maçonaria e por sociedades secretas.

A América espanhola já era varrida por movimentos emancipatórios que instalaram repúblicas. Também viabilizados pelo enfraquecimento da Espanha, cujo rei se tornou prisioneiro de Napoleão por seis anos. A realidade vizinha também inspirava os pernambucanos.

A Revolução

O movimento tinha natureza anticolonial. O objetivo era se emancipar de Portugal e instalar no Nordeste uma República, organizada em torno de uma Constituição liberal, baseada nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Porém, como o movimento dependia do apoio e do dinheiro dos donos de engenho, não pretendia mexer no regime de escravização de negros. Pelo contrário, a pressão inglesa pelo fim da escravidão encarecia a aquisição de mão de obra cativa de origem africana, motor da produção de açúcar, e agravava a crise econômica.

A Revolução Pernambucana de 1817 eclodiu em Recife em 6 de março daquele ano. Foi o único movimento revoltoso, na história do império colonial português, que foi além da fase conspiratória e chegou a efetivamente tomar o poder. Uma República com sede em Recife foi instalada durante 75 dias. Foi nesse período que o Nordeste se tornou a base de um plano para resgatar Napoleão.

O Ceará na Revolução

O Ceará participou do movimento, mais especificamente o Cariri, sob liderança da influente família Alencar, que liderava a região e, na época, expandia a influência para além da esfera local. À frente estava a matriarca, Bárbara Pereira de Alencar, natural de Pernambuco, e os filhos Tristão Gonçalves e José Martiniano, diácono, pai do romancista José de Alencar e, na época, estudante de retórica no Seminário de Olinda.

Em 3 de maio de 1817, depois da missa celebrada pelo padre Vicente José Pereira, José Martiniano de Alencar, na condição de emissário do Governo Revolucionário de Pernambuco, subiu ao púlpito da Matriz de Nossa Senhora da Penha, em Crato. De batina e roquete — adorno eclesiástico colocado sobre a batina e que confere pompa adicional — o jovem de 22 anos proclamou a independência e a república. Falou a uma plateia de pequenos agricultores e comerciantes, gente simples e, na maioria, semianalfabeta. Uma guarda foi colocada na entrada para proteger os líderes do movimento de uma possível reação legalista.

O movimento em Recife já havia eclodido havia quase dois meses. Àquela altura, tentativas de sublevação em Aracati e Fortaleza haviam sido frustradas, por atuação enérgica de Manuel Inácio de Sampaio e Pina Freire, o governador Sampaio.

Com parentes e aliados, Martiniano de Alencar foi à Câmara com a bandeira revolucionária. Novas autoridades foram nomeadas, como juízes e serventurários, para dar sustentação ao movimento. A Vila de Jardim também aderiu, sob liderança de Leonel Pereira de Alencar. Foi nomeado como comandante militar da revolução no Ceará o capitão-mor de Crato, José Pereira Filgueiras, apelidado "o Napoleão dos sertões", que dava apoio velado ao levante. Ao final do dia, houve um banquete.

O objetivo era estender o movimento até a importante Vila de Icó. No horizonte, estava a derrubada do governador Sampaio.

Mas, Pereira era homem simples, que pouco entendia das ideias de República que motivavam o levante. Foi convencido pelo padre Francisco Gonçalves Martins a mudar de lado e defender a ordem estabelecida.  Em 11 de maio, a Vila do Crato foi cercada pelas tropas e Filgueiras tomou o alto do Barro Vermelho e ali hasteou a bandeira real portuguesa. A República do Crato durou oito dias.

Martiniano de Alencar e Tristão Gonçalves foram imediatamente presos, ao lado de outros dos líderes do movimento.

"O movimento de 17 no Ceará foi obra de uma família, não interessou às diversas classes sociais, não foi produto da opinião pública", escreveu o Barão de Studart.

Nas semanas seguintes, tropas cearenses foram ajudaram a reprimir o levante em Rio Grande do Norte e Paraíba, inclusive com recrutamento de indígenas, como aponta João Paulo Peixoto Costa.

Após os legalistas tomarem também o Rio Grande do Norte e a Paraíba, as tropas sob autoridade real invadiram o Recife em 19 de maio de 1817. O governo provisório se rendeu no dia seguinte, após 75 dias de experiência republicana.

Primeira presa política

A repressão prosseguiu. Em 13 de junho daquele ano, Bárbara de Alencar foi presa. É considerada a primeira presa política do Brasil. Foi perdoada e libertada em 17 de novembro de 1820.

Sete anos mais tarde, em 1824, Bárbara estaria ao lado dos filhos Martiniano de Alencar e Tristão Gonçalves, e também de Pereira Filgueiras, em outro levante contra o poder. Novamente sob a liderança de Pernambuco, desta vez contra dom Pedro I e com envolvimento mais amplo do Ceará, na Confederação do Equador.

Onde entra Napoleão

Fundar um novo país, como pretendiam os revolucionários, exige não apenas apoio interno, mas também respaldo externo. Foi isso que Antônio Gonçalvez Cruz, o "Cabugá", foi buscar nos Estados Unidos. Junto dele estava o secretário, Domingues Malaquias.

O país do norte dava os primeiros passos no sentido de se tornar uma potência continental e, depois, mundial. Havia implantado uma república democrática liberal após se tornar independente do poderoso Império Britânico. Era a inspiração para movimentos liberais por todo a América.

Cabugá chegou à Filadélfia com 800 mil dólares e a missão de obter apoio do governo, comprar armas e recrutar antigos oficiais napoleônicos para treinar e liderar revoltosos no Recife. Desde a queda definitiva do império de Napoleão, em 1814, havia muitos aliados dele exilados em vários pontos da América, alguns poucos até no Brasil. A maioria nos Estados Unidos. Em troca de que apoiariam o movimento brasileiro? Havia dinheiro, convergência de ideais e Cabugá usou como trunfo definitivo o apoio a um plano para resgatar Napoleão.

O imperador estava exilado desde 1815 na ilha de Santa Helena, um rochedo de origem vulcânica, com 17 km de comprimento e 10 de largura. Na época uma possessão britânica, fica a 1.860 km da costa sudoeste da África e a 2.900 km do litoral brasileiro. O pedaço de terra mais próximo é a pequena Ilha de Ascensão, a 1.125 km.

O governo não deu muita trela ao emissário nordestino, mas o intento de tirar Bonaparte de Santa Helena já era alimentado pelos antigos auxiliares. Bonapartistas na Filadélfia aceitaram apoiar o plano de Cabugá. Inclusive José Bonaparte, irmão que o general corso chegou a colocar no trono espanhol.

Napoleão corso havia sido exilado uma vez, em Elba, no Mediterrâneo, conseguiu fugir e retomar o poder por 100 dias na França. Havia o sonho de repetir a empreitada e usar o Brasil como base de operações soava um dos caminhos menos inviáveis, ainda que difícil.

O ponto de concentração seria a ilha de Fernando de Noronha. De lá seriam feitas duas investidas contra Santa Helena. Uma delas com intenção para desviar as atenções da invasão que resgataria Bonaparte. Existe certa controvérsia sobre o que ocorreria dali em diante.

Há diversas versões sobre os detalhes do plano. Existe o imaginário de que Napoleão seria levado ao Recife para liderar os revolucionários. Quem sabe, governar uma República tropical no Nordeste. Não há elementos para afirmar que havia intenção de mantê-lo em Pernambuco. O destino seria Nova Orleans, nos Estados Unidos. Não há clareza nem mesmo se passaria por terras brasileiras. O sonho era, da América, retornar um dia para tomar a França.

Cabugá conseguiu recrutar quatro veteranos das tropas napoleônicas: conde Pontelécoulant, coronel Latapie, o ordenança Artong e o soldado Roulet. Chegaram ao Nordeste com dois navios, armas e suprimentos. Ao desembarcarem no Brasil, o movimento já tinha sido derrotado havia aproximadamente três meses. Acabaram sendo presos.

Não eram os únicos franceses a desembarcar no Nordeste. Chegaram à França notícias da Revolução Pernambucana. Opositores da monarquia dos Bourbon, que antes tinham como destino principal os Estados Unidos, dirigiram-se para a costa brasileira. Alguns deles chegaram ao norte do Ceará, em dezembro de 1817, na fragata Les Trois Frères. 

Os planos mirabolantes de resgatar Napoleão tinham reduzidas chances de sucesso e nunca chegaram a ser colocados em prática. Napoleão morreu em Santa Helena, em 5 de maio de 1821. No ano seguinte, parte do projeto dos revolucionários pernambucanos se tornou realidade, de forma muito menos ambiciosa, com a independência de Portugal.

Mas, as ideias de 1817 seguiam vivas no Nordeste. Em 1824, novamente a partir de Pernambuco, houve um novo movimento liberal e republicano que queria criar um novo país nos trópicos. Era a Confederação do Equador. Novamente, os Alencar estavam envolvidos, e a participação do Ceará foi ainda mais destacada e trágica.

Referências

Acervo O POVO

COSTA, L., & Silva, F. A independência do Crato, no contexto da revolução pernambucana de 1817, e o episódio de sua oficialização na Casa de Câmara. Revista De História Da UEG, 2019.

JPP Costa. Os índios do Ceará na Revolução Pernambucana de 1817. Diálogos, v.21, n.3, (2017), 39 -50

MOURA, Maísa Carla Ramos de. Imaginário napoleônico e tentativa de sedição no Pernambuco de 1817. V Colóquio de História, 2011.

STUDART FILHO, Carlos. A revolução de 1817 no Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo LXXIV, 1960 [1961].

VIEIRA, Jofre Teófilo. Os "Samangolês": africanos livres no Ceará (1835-1865). Tese (doutorado) - Universidade Federal do Ceará. Centro de Humanidades. Programa de Pós-Graduação em História. Fortaleza, 2017.

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