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Do tráfico às urnas: como facções influenciam a política no Nordeste e no resto do Brasil
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Do tráfico às urnas: como facções influenciam a política no Nordeste e no resto do Brasil

| CRIME | Além do Ceará, investigações revelam esquema nacional de influência política comandado por facções. Investigações mostram compra de votos, intimidação e troca de cargos por apoio político
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GRUPO de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) atua no combate às organizações criminosas (Foto: Divulgação/MPCE)
Foto: Divulgação/MPCE GRUPO de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) atua no combate às organizações criminosas

O avanço das facções criminosas sobre a política local se consolidou em várias partes do Brasil. Em um dos primeiros trechos do documentário Guerra sem fim: facções e política, spinoff da série Guerra Sem Fim, da plataforma O POVO+, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é questionada sobre em qual estado a situação da violência relacionada às eleições de 2024 era mais grave. "Eu acho que talvez sejam hoje o Ceará e o Amazonas", respondeu ela, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura.

"O Amazonas porque nós temos a questão de crime organizado, mas também da estiagem. Então, tem também o apoio logístico", citou sobre dificuldades para viabilizar o processo eleitoral para além da criminalidade. "E o Ceará realmente apresenta um quadro muito preocupante", completou.

No Ceará, O POVO mostrou que houve ações contra a atuação de facções na política em pelo menos 12 municípios, resultando na prisão de dois prefeitos. Em entrevista às Páginas Azuis, o promotor Adriano Saraiva, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado no Ceará (Gaeco), afirmou haver investigações em andamento contra mais de 50 políticos no Estado que estariam envolvidos com facções criminosas.

Investigações e operações da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público (MP) apontam que o problema se espalha pela região. Um relatório sigiloso de promotores e da PF indica que cerca de 32% das cidades com suspeita de interferência direta de facções estão no Nordeste, revelando um desafio que ultrapassa fronteiras estaduais e ameaça o equilíbrio democrático.

Com estratégias que vão da compra de votos à intimidação direta de candidatos e eleitores, essas organizações ampliaram a presença em prefeituras e câmaras municipais, transformando territórios sob domínio delas em palanques exclusivos.

O avanço das facções no Nordeste reflete tendência nacional. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), de abril de 2025, das 88 facções ativas no Brasil, 46 operam nos nove estados nordestinos — um salto em relação às 30 identificadas no ano anterior.

O crescimento de PCC e Comando Vermelho estimulou o surgimento de facções regionais, como a Guardiões do Estado (GDE), no Ceará. Segundo o MPCE, 200 integrantes do CV cearense estão hoje no Rio de Janeiro, e mais de 50 políticos do estado têm ligação com facções.

A infiltração criminosa não se restringe a áreas de vulnerabilidade social. Ao conquistar espaço na política, facções asseguram proteção para atividades ilícitas, influenciam decisões de governo e direcionam recursos públicos.

Para a presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, trata-se de um risco “bastante grave” e que “não pode ser subestimado”. “O crime quer ser o formulador de leis”, alertou. 

 

Paraíba: tensão eleitoral e infiltração na capital e no interior

Na Paraíba, a influência do crime organizado mobilizou até adversários políticos históricos. Em João Pessoa, Luciano Cartaxo (PT), Marcelo Queiroga (PL) e Ruy Carneiro (Podemos) uniram forças em apelo conjunto ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) pela presença de tropas federais, alegando risco à lisura do pleito.

Eles acusavam o prefeito e candidato à reeleição, Cícero Lucena (PP), de contratar facções para impedir atos de campanha e intimidar eleitores em áreas controladas pelo crime. Lucena negou as acusações, chamando-as de “festival de preconceito, mentiras e ataques às instituições”, tendo sido reeleito em segundo turno contra Queiroga.

A PF já investigava a possível relação da Prefeitura com facções locais. Em maio de 2024, a Operação Mandare apurou que um líder do tráfico teria negociado cargos no Executivo municipal em troca de acesso livre a comunidades. Houve buscas em secretarias e na casa da secretária-executiva de Saúde, Janine Lucena, filha do prefeito, também alvo de outra operação, por suspeita de intermediar apoio eleitoral da facção Nova Okaida em troca de cargos.

Menos de um mês antes da eleição, a primeira-dama de João Pessoa, Lauremília Lucena, foi presa pela Polícia Federal, acusada de aliciamento violento de eleitores e suspeita de atuação em organização criminosa, ligada às eleições municipais. A prisão ocorreu no âmbito da terceira fase da Operação Território Livre, que contou com o apoio do Grupo Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco).

Em outubro, dias antes da eleição, a Operação Território Livre apurou coação e aliciamento violento de eleitores no bairro São José. Foram apreendidos R$ 35 mil, celulares e documentos com dados pessoais. Entre os relatos, ameaças a famílias — como a de uma menina cadeirante de 9 anos, caso gravasse material de campanha — e ordens para cancelar eventos eleitorais.

A Justiça Eleitoral autorizou forças federais em quatro cidades paraibanas: Cabedelo, Bayeux, Fagundes e Itabaiana. Nesta última, um relatório da Polícia Civil apontou que uma facção que domina o tráfico local buscava se inserir na política, financiando pré-candidaturas com recursos ilícitos. Um dos postulantes chegou a receber escolta policial.

Em Cabedelo, a única candidata mulher à Prefeitura, Jacqueline Monteiro França (Podemos), relatou que o medo de “bala perdida” afastava eleitores de atos de campanha. Outros candidatos citaram ameaças de “metralhamento” e restrições de acesso a bairros.

 

Rio Grande do Norte: caso extremo

No Rio Grande do Norte, relatórios do TRE apontaram ligações entre facções e políticos em Jardim de Piranhas e Serra Negra do Norte. O estado é base do Sindicato do Crime (SDC), dissidência do PCC, em disputa com o próprio PCC e o Comando Vermelho.

Um caso extremo ocorreu em João Dias (RN), município de pouco mais de dois mil habitantes. O prefeito Francisco Damião de Oliveira, conhecido como Marcelo, foi assassinado junto ao pai em agosto de 2024, durante a campanha de reeleição. O crime foi consequência de uma disputa interna com a família Jácome, ligada ao PCC.

Em 2020, Marcelo foi eleito com Damária Jácome, irmã de traficantes internacionais, como vice-prefeita. Áudios revelaram que Francisco Deusamor Jácome, traficante ligado a Marcola, ofereceu R$ 500 mil para que o prefeito renunciasse e deixasse o cargo para Damária.

O prefeito renunciou em 2021, mas Damária perdeu o cargo em 2022, após a Justiça revogar a renúncia. Após reassumir o posto, sentindo-se ameaçado, Marcelo teria passado a colaborar com investigações contra a família Jácome, o que pode ter motivado sua morte.

Investigações apontam que a campanha no município teria movimentado R$ 5 milhões, valor desproporcional à realidade local. A ex-prefeita segue foragida.

 

Bahia: Comando Vermelho e milícias em disputa territorial e política

Na Bahia, o Comando Vermelho (CV) teria impedido a campanha do candidato do União Brasil à Prefeitura de Camaçari, Flávio Matos, em bairros da cidade. O partido pediu apoio da Força Nacional para garantir a circulação de seus representantes.

Em Feira de Santana e Milagres, a operação “El Patron”, do Ministério Público estadual, denunciou 21 pessoas — incluindo o deputado estadual Binho Galinha (Patriota) — acusadas de integrar um grupo miliciano ligado a lavagem de dinheiro do jogo do bicho, agiotagem e receptação. A Justiça bloqueou R$ 200 milhões e sequestrou 26 imóveis e 14 veículos. Relatório da PF de 2024 aponta a Bahia como o estado com mais organizações criminosas no Nordeste: 21 facções identificadas.

 

Piauí e Pernambuco

No Piauí, a operação “Escudo Eleitoral” prendeu a vereadora Tatiana Medeiros (PSB) e o marido, Alandilson Cardoso Passos, acusados de comprar votos com dinheiro de facção criminosa. A ação cumpriu mandados de prisão, afastamento de função pública e buscas em órgãos da Câmara Municipal de Teresina, Assembleia Legislativa e Secretaria de Saúde estadual.

Em Pernambuco, a PF identifica atuação de grupos como Okaida e Estados Unidos, além da presença do PCC em áreas estratégicas.

Facções ampliaram a influência sobre a política nas eleições de 2024

A influência de facções criminosas nas eleições municipais brasileiras deixou de ser uma suspeita isolada e passou a ser um fenômeno nacional documentado por órgãos de inteligência, promotores e forças de segurança. Uma série de investigações revelou como organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV) utilizam a política para expandir seus interesses econômicos e consolidar domínio territorial, especialmente em cidades pequenas e periferias urbanas.

Um relatório sigiloso da Polícia Federal e de promotores aponta que facções interferiram nas campanhas em pelo menos 42 municípios brasileiros nas eleições de 2024, com estratégias que vão de financiamento de campanhas com dinheiro do tráfico até execuções de adversários políticos.

O uso do poder político como meio de lavagem de dinheiro e obtenção de contratos públicos revela uma nova etapa da atuação de facções criminosas no Brasil. A estratégia já não é apenas o domínio territorial armado, mas a transformação do Estado em extensão dos interesses do crime, com prefeitos, vereadores e empresários alinhados aos comandos das organizações.

Inteligência aponta suspeitos eleitos em São Paulo

No Estado de São Paulo, 70 candidatos investigados por ligações com o crime organizado concorreram nas eleições de 2024. Destes, 12 foram eleitos – dois prefeitos e dez vereadores. Os nomes e municípios seguem sob sigilo por determinação do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP), que encaminhou os dados ao Ministério Público para apuração de possíveis irregularidades, como abuso de poder econômico ou uso de recursos ilícitos.

O coronel Pedro Luís de Souza Lopes, chefe do Centro de Inteligência da Polícia Militar paulista, declarou que a influência do PCC nas eleições foi "muito maior do que se imaginava". Ele cita o exemplo do financiamento de campanhas por meio do tráfico de drogas, especialmente em cidades menores, com menor estrutura institucional.

Capital paulista: facção virou tema eleitoral

Na cidade de São Paulo, a presença do PCC dominou o debate público durante a campanha. O candidato Pablo Marçal (PRTB) viu a campanha abalada por denúncias de vínculos partidários com traficantes, incluindo o presidente nacional da sigla, Leonardo Avalanche, suspeito de interceder na soltura de André do Rap, um dos chefes do PCC.

Já o prefeito Ricardo Nunes (MDB) teve que se explicar após a prisão de dirigentes das empresas de ônibus Transwolff e Upbus, acusadas de lavagem de dinheiro para o PCC. Ambas são ligadas a Milton Leite (União), presidente da Câmara Municipal e aliado de Nunes.

Guilherme Boulos (Psol) também foi alvo, por causa da ligação de um aliado, o vereador Senival Moura (PT), com a facção. Em meio ao embate, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que a inteligência estadual interceptou mensagens do PCC recomendando voto em Boulos. O Ministério da Justiça, no entanto, disse não ter detectado qualquer orientação de facções sobre esse tema.

Interior paulista: vereadores presos e bilhões bloqueados

No interior de São Paulo, operações da Polícia Federal, como a Munditia e a Decurio, desarticularam tentativas de infiltração direta do PCC em prefeituras e câmaras. Três vereadores de diferentes cidades foram presos por favorecer empresas de fachada ligadas à facção.

A operação Decurio revelou a existência de um "núcleo político" do PCC, liderado por João Gabriel Yamawaki, que ordenava o financiamento de campanhas em cidades como Ubatuba e Mogi das Cruzes. Foram bloqueados R$ 8,1 bilhões em bens dos investigados.

Rio de Janeiro: votos sob ameaça

No estado do Rio de Janeiro, onde atuam o Comando Vermelho e milícias, a violência direta se tornou ferramenta eleitoral. Somente na Baixada Fluminense, 60 assassinatos de pessoas ligadas à política foram registrados entre 2015 e 2024.

Por questões de segurança, o TRE-RJ alterou 53 locais de votação em 2024, afetando 171 mil eleitores em 10 municípios. A proibição de celulares nas urnas, transformada em regra nacional pelo TSE, teve origem no Rio após relatos de facções obrigando eleitores a comprovar o voto com fotos. A Força Nacional foi enviada ao RJ para atuar durante a campanha.

Segundo o Observatório das Metrópoles da UFRJ, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o governador Cláudio Castro (PL) tiveram votações mais altas em áreas dominadas por milícias, em 2022. Para Feltran, isso se deve à penetração de políticos conservadores e ligados à polícia nesses territórios.

Assista

O POVO lançou o documentário Guerra sem Fim: Facção e Política. A produção aborda a crescente influência do crime organizado na política do Ceará, explorando as conexões perigosas entre facções e o poder político

Cinco frentes de atuação das facções

Os órgãos de segurança traçam cinco eixos de atuação das facções no processo político:

  1. Imposição normativa: definição, pelas facções, de quem pode ou não se candidatar
  2. Controle financeiro: financiamento de campanhas com dinheiro ilícito
  3. Zona de silêncio: proibição, em certas áreas, de manifestações públicas de apoio a candidatos
  4. Redefinição cultural: patrocínio de eventos culturais para ganhar apoio social
  5. Domínio territorial: cobrança de taxas de campanhas e candidatos para atuar em comunidades dominadas.

Dinheiro do crime e estratégias de poder

Estima-se que o PCC movimente cerca de R$ 1 bilhão ao ano com tráfico internacional. Algumas investigações apontam, no entanto, que a facção teria investido até R$ 8 bilhões em campanhas políticas. Para o sociólogo Gabriel Feltran, especialista no tema, essa estimativa pode ser exagerada e reflete uma compreensão distorcida da relação entre política e crime.

Segundo ele, em entrevista à BBC News Brasil, o PCC age como uma "sociedade secreta de empresários", operando por meio de lobby para moldar leis e contratos públicos em benefício de suas empresas. O dinheiro ilegal é misturado a capital legal, em áreas como transporte, hotelaria e serviços públicos.

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