O julgamento da ação penal 2668, sobre a denúncia do plano de golpe de Estado, será retomada na terça-feira, 9, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Terá início a fase decisiva, com o voto dos ministros, a começar pelo relator, Alexandre de Moraes. Na terça-feira e na quarta-feira da semana passada, houve as etapas de sustentação oral da acusação pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, e pelas defesas dos oitos réus que integram o núcleo crucial do processo que apura a tentativa de golpe de Estado. Os discursos das partes ofereceram elementos importantes para o processo.
Os advogados de defesa, na quase totalidade, adotaram o caminho de negar o envolvimento dos acusados na trama golpista, mas não rebater a existência do plano em si. Eles rebateram as denúncias apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e questionaram a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid.
No geral, para o advogado criminalista Nestor Santiago, professor da UFC e da Unifor e integrante do Conselho de Leitores do O POVO, os advogados das defesas dos reús tiveram bom desempenho, com destaque para a sustentação do advogado Matheus Milanez, que fez a defesa do general Augusto Heleno.
“No geral, os colegas foram muito bem. É uma defesa difícil, a gente sabe que é um caso em que existe o apelo por uma condenação, mas os advogados trazem, às vezes, perspectivas diferentes [...] Alguns advogados, digamos assim, com uma oratória um pouco mais complicada, outros foram mais eficientes, por exemplo o advogado Matheus Milanez. Ele foi muito bem, incisivo, direto e é importante dizer que é direito do advogado fazer a crítica, mas aquela crítica respeitosa, dentro das condições do processo. Não é ofender”, analisou.
Manifestações das defesas de alguns réus pode se revelar complicadora para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Principalmente o advogado cearense Andrew Farias, que repetiu várias vezes que o ex-ministro Paulo Sergio Nogueira, também cearense, teria atuado “ativamente” para demover Bolsonaro. Foi então interpelado pela ministra Cármem Lúcia: "Demover de quê? Por que, até agora, todo mundo disse que ninguém pensou nada". Em seguida, Farias respondeu que o réu impediu a adoção de "qualquer medida de exceção".
Também chamou atenção quando o advogado Matheus Milanez argumentou ter havido afastamento entre o cliente dele, o general Augusto Heleno, e Bolsonaro, depois de ter sido um dos conselheiros mais próximos do ex-presidente. O distanciamento teria se acentuado após a aproximação do então mandatário com partidos do centrão nos dois últimos anos de governo, indicando que o seu cliente já não teria tanta influência nas decisões.
“Quando o presidente Bolsonaro se aproxima dos partidos ditos centrão e tem sua filiação ao PL, inicia-se sim um afastamento no sentido da cúpula do poder”. Milanez chegou a mostrar uma anotação feita por Heleno em uma caderneta pessoal sobre a vacinação de Bolsonaro: “Presidente tem que se vacinar”. Para a defesa, isso representa a divergência e comprova o afastamento entre os dois.
A defesa do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), por sua vez, negou responsabilidade por orientar e municiar o então presidente de informações e dados. Segundo o advogado Paulo Renato Cintra, as opiniões enviadas não eram do hoje parlamentar, mas do próprio Bolsonaro, e apenas organizadas pelo cliente.
"Ramagem não atuou para orientar o presidente da República, não era um ensaísta de Jair Bolsonaro. Ramagem compilava pensamentos do presidente da República", disse.
Ramagem responde por três dos cinco crimes apresentados na denúncia da PGR, após suspensão da tramitação de dois deles pelo fato de terem ocorrido após a diplomação do deputado.
Cintra também chegou a falar em “erros graves” por parte da PGR e explicou que a defesa do voto impresso por parte de Ramagem não eram orientações a Bolsonaro.
“Havia várias postagens de Ramagem em defesa do voto auditável ou voto impresso à época. Essa mensagem não era exatamente uma orientação a Jair Bolsonaro. Não, era uma defesa de uma pauta que Alexandre Ramagem, certo ou errado", defendeu. Ao final da sustentação, a ministra Cármem Lúcia chamou a atenção de Cintra e o corrigiu, explicando a diferença entre voto impresso e auditável.
A defesa de Bolsonaro foi a que mais procurou desmontar a ideia do plano de golpe. Não chega a negar a trama, mas minimiza. Paulo Cunha Bueno argumentou que, ainda que, eventualmente, Bolsonaro tenha discutido com o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas a possível assinatura de uma minuta de decreto golpista, essa cogitação, por si só, não seria crime. Isso porque, segundo ele, o legislador não criminalizou atos meramente preparatórios.
O advogado argumentou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) busca condenar o cliente por "tentativa da tentativa" de golpe e ressaltou não ter sido apresentado nenhum ato de Bolsonaro que tenha contribuído para ruptura institucional.
Finalizada a fase de defesas dos réus, o julgamento será retomado na terça-feira, 9, com os votos dos ministros da Primeira Turma. O relator da ação penal Alexandre de Moraes será o primeiro e a votação seguirá com Cármem Lúcia, Flávio Dino, Luiz Fux e Cristiano Zanin. A decisão de absolvição ou condenação dos réus está prevista para ocorrer até a próxima sexta-feira, 12.
Narrativas das defesas não se alinham
Um aspecto das sustentações orais dos advogados dos oito réus da ação penal 2668 no Supremo Tribunal Federal (STF) foi a ausência de narrativa linear entre as defesas, apontou Mariana Dionísio, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e mestre em Direito Constitucional pela Unifor. Ela foi entrevistada pelo O POVO News na quarta-feira, 3.
"Eu não sei se eles estão se esforçando para virar meme, sair do processo, porque ganhar no grito, isso não acontece no STF. Ganhar no grito, tentar registrar força de argumento sem ter uma linearidade lógica".
Ela avaliou as críticas dos advogados dos réus ao trâmite do processo no Supremo como "estratégia de defesa preguiçosa". "Fica muito complicado concordar com algumas dessas alegações na medida em que, processualmente, o rito está seguindo toda a dinâmica mais adequada possível dentro dos rigores da lei".
Para ela, os argumentos não se sustentam processualmente. Mariana também destaca que o conteúdo foi disponibilizado com bastante antecedência, inclusive para evitar um eventual pedido de vistas por outro ministro.
"Desses argumentos, não há um que se sustente, pelo menos processualmente. A ideia é insistir na narrativa da perseguição, insistir que os atos processuais não estão sendo realizadas de maneira adequada, mas é uma narrativa que é muito frágil, sobretudo em um julgamento que tem uma importância tão ímpar para a democracia brasileira", pontuou.
Delação de Mauro Cid na mira
Ataques à delação premiada e pedidos de rescisão da colaboração do ex-ajudante de ordens Mauro Cid estiveram entre as principais estratégias das defesas dos réus por tentativa de golpe de Estado. Ainda que a acusação sustente que as alegações foram corroboradas por outros elementos nas investigações, a colaboração premiada do tenente-coronel foi o ponto de partida.
José Luis Mendes de Oliveira Lima, advogado do general Braga Netto, considerou a colaboração de Cid como "delação mentirosa" e disse que não há provas contra o general, mas narrativas.
Além de afirmar que não há provas envolvendo o ex-presidente Bolsonaro na trama golpista, o advogado Celso Vilardi seguiu pelo mesmo caminho e criticou a delação do ex-ajudante de ordens. Ele indica que há contradições nas falas e diz que o tenente-coronel teria mudado as versões: "Esse homem não é confiável".
O advogado criminalista Nestor Santiago afirmou que a delação de Cid deveria ser analisada e enfatiza que todos os argumentos apresentados serão apreciados pelos ministros na votação.
"É bem possível que haja aí alguma interferência dessa delação do Mauro Cid nas situações processuais dos outros acusados [...] Ela foi homologada, porque tinha uma razão de ser, mas pode ser que, no decorrer do processo, já que todos foram ouvidos depois, alguma daquelas informações que ele tenha trazido não seja verídica. Nesse caso, cabe ao Ministério Público também fazer uma modulação na negociação do benefício. Tem que analisar sempre a situação do caso concreto", disse.
Pelo fato do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro ser delator e colaborador no processo, a defesa de Mauro Cid abriu os trabalhos de sustentação oral na segunda sessão do julgamento na terça-feira, 2.
O advogado Jair Alves Ferreira destacou a validade da delação de Cid e afirmou que o tenente não foi coagido durante o processo. A reportagem da revista Veja que divulgou áudios em que Cid dizia estar sendo pressionado também foi abordada pela defesa.
"Isso não é coação. O Mauro Cid está reclamando da posição do delegado. Isso é direito [...] Eu posso não concordar com o relatório e com o indiciamento do delegado e de fato não concordo. Agora, nem por isso eu posso dizer que ele coagiu o meu cliente ou que ele cometeu uma ilegalidade", disse. O advogado também pediu a manutenção do acordo da delação premiada "com todos os benefícios ajustados nos termos das alegações finais".
Acesso às provas
Críticas envolvendo a quantidade de material, a falta de tempo e o acesso às provas foram feitas pelos advogados dos réus. Matheus Milanez, que representa o general Augusto Heleno, e Celso Vilardi, que lidera a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), falaram sobre o curto tempo disponibilizado para análise das defesas.
"Nós não tivemos o tempo que o Ministério Público e a Polícia Federal tiveram e nós não tivemos acesso às provas durante a instrução. Com 34 anos, é a primeira vez que eu venho à tribuna, com toda humildade, para dizer o seguinte: eu não conheço a íntegra desse processo. O conjunto das provas, eu não conheço. São bilhões de documentos, uma instrução de menos de 15 dias, seguida de interrogatório", disse Vilardi.
"Isso é uma situação muito grave, que envolve inclusive quebra da paridade de armas dentro do processo penal. A defesa não tem os mesmo direitos que teria a acusação. É realmente algo a se pensar, mas, independentemente disso, o processo está rolando e começarão os votos dos ministros", disse Nestor Santiago.
Fatos
O advogado de Almir Garnier, Demóstenes Torres, alegou que a PGR teria incluído dois fatos que não estariam na denúncia: o desfile da Marinha em agosto de 2021 e a ausência do almirante na passagem de comando da Marinha em 2023
Minuta
A defesa de Anderson Torres, representada pelo advogado Eumar Novacki, considerou a minuta do golpe encontrada pela Polícia Federal (PF) na casa do ex-ministro como "minuta do Google", afirmando que o documento está disponível na internet e não tem valor jurídico