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Do cárcere ao santuário: a última voz entre os deputados cearenses cassados em 1964
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Do cárcere ao santuário: a última voz entre os deputados cearenses cassados em 1964

Perto dos 101 anos, Amadeu Arrais é o único deputado cearense cassado pela ditadura em 1964 que está vivo e relembra os tempos de perseguição
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Amadeu Arrais, ex-deputado cearense cassado pela ditadura militar (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Amadeu Arrais, ex-deputado cearense cassado pela ditadura militar

O timbre de voz firme denuncia os anos de luta pelo direito do trabalhador. Centenário, Amadeu Arrais fala pausadamente, como quem revisita o passado com a cautela de ter sobrevivido a ele. “Eu me senti, assim, esmagado, porque é a força contra o direito”, recorda. “Eles tinham a maioria da Assembleia e escolheram os nomes que deveriam ser cassados. Entre eles, estava o meu. E não apontavam nenhum fato concreto contra mim”.

Em 10 de abril de 1964, em votação realizada de madrugada e sem direito à defesa, Amadeu foi um dos seis deputados estaduais do Ceará considerados subversivos e cassados pela ditadura. Acusados de decoro parlamentar, além dele, foram alvos da repressão naquele momento os então parlamentares Raimundo Ivan, José Pontes Neto, José Fiúza Gomes, Aníbal Bonavides e Blanchard Girão.

Parte do grupo se apresentou ao Comando da 10ª Região Militar do Exército Brasileiro, em Fortaleza. Depois, todos foram levados ao 23º Batalhão de Caçadores (23º BC), também na Capital, onde passaram à condição de presos políticos. No local, Amadeu conta não ter sofrido tortura, mas a pressão de um regime autoritário que acabara de se instalar e perduraria por mais de 20 anos.

"Eles fizeram um tipo de pressão, sabe? A pressão se exerce indiretamente. Nós combinamos, por exemplo, de fazer a limpeza das nossas instalações porque assim podíamos conversar sem soldados no nosso meio, porque a gente não podia conversar, não podia expandir nossas lágrimas nem queixas".

Com uma pausa em maio daquele ano, Amadeu, ao todo, ficou preso por pouco mais de nove meses. Às vésperas do Natal, conheceu uma liberdade vigiada. Nesse período, em 17 de outubro, também foram destituídos do Parlamento cearense Cândido Ribeiro Neto, Aurimar Pontes, Amadeu Ferreira Gomes e Francisco Vasconcelos de Arruda.

Do grupo que perdeu o mandato de deputado estadual em 1964, Amadeu Arrais é o único vivo, conforme informou o historiador Carlos Pontes, do Memorial Deputado Pontes Neto (Malce), da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece).

Natural de São Domingos, então distrito de Campos Sales, ele é filho de Eneas de Araújo Arrais, que governou o município por três mandatos. “Meu pai foi político e eu segui aquele caminho de defesa do mais fraco. Sempre o mais fraco é quem perde na questão. Quando ele encontra apoio, ele cresce”.

Dedicado aos estudos, chegou a morar em Recife, mas retornou ao Ceará e fincou raízes em Fortaleza, formando-se em Direito e em Filosofia, Ciências e Letras. O esforço lhe fez fundar em 1950 um cursinho preparatório para entrada no Liceu do Ceará, oportunidade em que conhecera dois jovens que posteriormente se tornariam símbolos de resistência ao período de exceção.

Conforme documenta o livro Amadeu: do Alvorecer ao Crepúsculo, do escritor, jornalista e ex-repórter do O POVO Raimundo Madeira, estavam entre os primeiros alunos do cursinho aprovados na escola Bergson Gurjão, morto na Guerrilha do Araguaia em 1972, e Tito de Alencar, frade dominicano preso, torturado e encontrado morto no exílio. 

Da vida escolar, o campossalense partiu para a Delegacia Regional do Trabalho (DRT) — atual Superintendência Regional do Trabalho (SRT) — onde ganhou notoriedade e o apreço do movimento sindical. “O meu trabalho despertou muito interesse na classe operária que via em mim um defensor dos seus interesses legítimos. Não era interesse de bacana, não”, assegura.

Lançou-se candidato em 1962 pelo Partido Democrata Cristão (PDC). Apoiou e foi apoiado por Moisés Pimentel e Adahil Barreto Cavalcante, que disputavam, respectivamente, a deputado federal e governador pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

“Quando eu fiz o meu discurso de posse, eu disse: ‘Estou aqui para cumprir a lei. Não esperem os senhores patrões que eu vá perseguir empregado para lhes atender os interesses. Da mesma forma, não pensem os empregados que eu vá perseguir patrão’”.

Após sair do 23º BC, deparou-se com outras humilhações como a impossibilidade de advogar ou atuar como fiscal do Trabalho, cargo conquistado por concurso público. Voltou a lecionar no cursinho preparatório que se tornará escola. A partir de dezembro de 1968, com a decretação do Ato Institucional nº 5, a pressão sobre ele aumentou. Foi chamado diversas vezes à sede da Polícia Federal.

Em 1969, também perderam o mandato os deputados estaduais Murilo Aguiar, Dorian Sampaio, Mosslair Cordeiro Leite, Ernani Viana, Firmo de Aguiar, Ximenes Neto, Haroldo Martins, Brasilino de Freitas e Luciano Magalhães. Dos quais apenas Mosslair e Ernani estão vivos.

A anistia política chegou apenas 10 anos depois. No ano seguinte, o campossalense voltou à DRT. Em 1982, tentou retomar posto na Assembleia, ficando na suplência. No último ano do regime, 1984, ocupou a vaga por quatro meses. Chegou ainda a disputar a Prefeitura de Campos Sales antes de todo esse imbróglio, contudo, não alcançou vitória. Já depois dos anos de chumbo, chefiou o Instituto de Pesos e Medidas (Ipem).

Prestes a completar 101 anos, Amadeu tem um sítio em Maranguape e mantém um santuário que construiu em São Domingos como agradecimento a São Pedro por ter resistido à ditadura. São parte da alegria dos seus dias, hoje compartilhados com a segunda esposa, Francileide Arrais.

“Subo ao morro, canto: ‘Tu te abeiraste da praia. Não procuraste nem ouro, nem prata. Somente queres que eu te siga, Senhor’. O pessoal canta comigo lá no santuário. É bom. É uma maneira de liberar as tensões que existem em todo canto”.

Com a memória de quem percorreu um grande caminho, Amadeu tem fé no "equilíbrio" e diz acreditar que “a verdade está no meio". "Nem está para a esquerda, nem para a direita. Está no meio. E esse meio há de chegar”.

Apesar de cassado pelo regime militar, critica a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que já defendeu torturador e foi condenado, entre outros crimes, por tentativa de abolição violenta do Estado Democrática de Direito.

"O caminho reto é aquele que leva às duas partes. Não é o que leva um e abandona o outro. Os dois de mãos dadas: ‘Vamos construir o Brasil. Vamos, Bolsonaro e o povo, eu e você, e todo mundo. Não essa história de querer massacrar um contra os outros, aí o País não avança”, desacredita.

Música

Além de gostar de cantar, Amadeu Arrais toca realejo e teclado. Ele contou que, quando criança, usava os intervalos da escola para aprender o manuseio dos instrumentos.

Homenagem

Em dezembro de 2024, por ocasião dos 100 anos de Amadeu, a Alece realizou sessão solene para homenageá-lo com a entrega da Medalha de Mérito Parlamentar no Plenário 13 de Maio.

Cearenses cassados

Também foram cassados na ditadura os deputados federais cearenses Adahil Barreto, Expedito Machado, Moisés Pimentel, Padre Palhano, Martins Rodrigues e Padre Vieira e os vereadores Tarcísio Leitão, Manoel Aguiar de Arruda
e Luciano Barreira.

 

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