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Que Brasil é esse que naturaliza, e até comemora, mortes?
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Que Brasil é esse que naturaliza, e até comemora, mortes?

De operações que deixam centenas de corpos no chão à retórica que atribui sangue à vitória, avança uma cultura que banaliza o extermínio
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CORPOS enfileirados na Praça São Lucas, na favela Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 2025 (Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP)
Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP CORPOS enfileirados na Praça São Lucas, na favela Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 2025

Dias após operação policial no Rio de Janeiro matar mais de 120 pessoas, no que o governo estadual chamou de "megaoperação", o Poder Executivo do Ceará deu os parabéns à Polícia Militar pela morte de sete suspeitos de envolvimento com facção criminosa em Canindé, município distante 117 quilômetros de Fortaleza. 

De partidos que rivalizam diretamente, um gestor cumprimentou o outro. Cláudio Castro, do PL de Jair Bolsonaro, saudou Elmano de Freitas, do PT de Lula. "O episódio de hoje mostra, mais uma vez, que essa é uma guerra que não tem fronteiras e exige união entre os estados. No Rio de Janeiro, temos agido com a mesma firmeza, colocando o estado nas ruas, retomando territórios e enfrentando o narcoterrorismo de frente", disse.

O resultado disso foi a condenação sem julgamento ou defesa de, somente na semana passada, centenas de pessoas mortas. Enquanto familiares choravam a impotência acarretada pela crise na segurança pública brasileira, políticos e internautas celebravam, e até pediam mais mortes.

Para a socióloga Clara Polycarpo, doutora pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), "insistir na mesma lógica falida que há décadas realiza incursões policiais nas favelas e periferias, promovendo mortes e colocando sob risco milhões de moradores, serve apenas a interesses eleitoreiros".

Pesquisadora no Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), ela lembra que essa é a terceira operação realizada na gestão Cláudio Castro a estar na lista das mais letais: Jacarezinho, em 2021, teve 28 mortos; e Penha, em 2022, 25. “E os moradores ainda não se sentem mais seguros”, nota Polycarpo.

A socióloga observa que esse ciclo se alimenta de uma “agenda de guerra urbana” coordenada pelo Estado, onde se vê a intensificação de "uma política que constrói inimigos territorializados e racializados". "Dessa forma, sitia a cidade e promove o medo e o terror, e não combate efetivamente nem o crime nem a violência urbana”, explica.

Jânia Perla Aquino, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV-UFC), aponta que o discurso que transforma a violência em espetáculo não apenas desumaniza, mas corrói os fundamentos do Estado democrático de direito.

"Quando vemos a defesa da matança generalizada, o sangue como ativo eleitoral, estamos diante de um fracasso dos ideais que sustentam uma sociedade democrática. É a falência dos pilares civilizacionais em muitos aspectos; e, disseminada nas redes sociais, não contribui para enriquecer o debate público".

A banalização da letalidade, dessa forma, é parte de um projeto político. “Você identifica o político comprometido com o País quando ele pensa em ações baseadas em investigação e desarticulação das facções, e não em espetáculos de derramamento de sangue. O problema é que a defesa da letalidade virou entretenimento e instrumento de regar um ódio social que já existe baseado em visões de que, por exemplo, 'bandido bom é bandido morto', mas geralmente ele é negro e periférico”, analisa Aquino.

A antropóloga diz ver na violência um reflexo da erosão de valores coletivos e da perda de empatia. "Quando se pensa em sociedade, em termos duradouros, não há nenhuma conquista que venha com a aniquilação de uma parte da sociedade, com a aniquilação do outro, mas vem exatamente a partir de soluções que visam o bem comum".

Difícil caminho até a saída

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a lei nº 15.245, que endurece o combate ao crime organizado e aumenta a proteção de autoridades. A decisão foi publicada depois das mais de 120 mortes registradas no Rio de Janeiro. Em paralelo a isso, o governo apresentou o projeto de Lei Antifacção, enquanto no Congresso tramita a proposta de emenda à Constituição da Segurança Pública.

Entre outros pontos, a PEC 18/2025 pretende padronizar protocolos e dar status constitucional ao Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criado por lei em 2018. Semelhante ao Sistema Único de Saúde (SUS), o modelo visa integrar dados, diretrizes e ações entre União e estados.

Por trás da promessa de integração, contudo, especialistas veem desafios. Doutora em Sociologia pelo Iesp-Uerj, Clara Polycarpo indica que esse caminho pode ter efeitos positivos, com os governos estaduais tendo maior facilidade para trabalhar em conjunto durante um planejamento ou investigação, aumentando, por exemplo, as capacidades de intervenção.

"Considerar uma prerrogativa nacional para orientar o combate à criminalidade, em especial, a que tem relação com o tráfico de drogas e de armas, pode tornar as próprias ações dos estados melhor coordenadas diante de um plano de segurança".

A pesquisadora, no entanto, afirma que, para superar a crise da segurança pública, não é necessário apenas maior atuação do governo federal. Segundo Polycarpo, a forma como as polícias atuam deve ser repensada, senão pode apenas reforçar desigualdades e violências.

"Um plano de segurança pública deve focar nos fluxos financeiros e nas entradas e saídas dos tráficos internacionais, não nos jovens negros e favelados", defende.

A antropóloga Jânia Perla Aquino, professora da UFC, também vê na PEC uma oportunidade de reorganizar o sistema, mas reconhece os impasses. "Uma PEC não tem como resolver o problema, mas traz possibilidades animadoras", pondera.

Para ela, a fragmentação atual impede respostas coordenadas à expansão das facções. "Hoje é impossível lidar com grupos que têm um raio de atuação nacional e internacional a partir dos limites das polícias de cada estado".

Jânia destaca que a proposta pode corrigir distorções e favorecer o trabalho conjunto entre os entes federados. "O Brasil precisa investir, como nunca antes se investiu, em identificar pessoas envolvidas na distribuição e na exportação. Esses atores é que são responsáveis pelas cifras milionárias, que a cada dia expandem o caixa e que tornam cada vez mais poderosas as facções", resume Jânia.

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