Logo O POVO+
Onde a esquerda errou para permitir o avanço da extrema direita
Comentar
Politica

Onde a esquerda errou para permitir o avanço da extrema direita

Em sua obra mais recente "Por que a esquerda morreu?", lançada neste mês, o sociólogo analisa o atual cenário da esquerda no país e aborda o processo de enfraquecimento
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Comentar
Jessé Souza, sociólo e escritor (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Jessé Souza, sociólo e escritor

O escritor e sociólogo Jessé Souza lançou o livro Por que a esquerda morreu? Ele analisa de que forma as transformações ao longo do anos impactaram e resultaram no enfraquecimento da esquerda no Brasil. 

Jessé também é o autor de “A ralé brasileira”, de 2009, “A radiografia do golpe”, lançado em agosto de 2016 e que analisa os processos que resultaram no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), “A elite do atraso”, de 2019, e “O pobre de direita”, de 2024 e que detalha o conceito que dá título ao livro. A obra mais recente foi lançada em Fortaleza na quinta-feira, 6.

Ao O POVO, Jessé fala sobre o atual cenário da esquerda e avalia quais os principais problemas do bloco político, principalmente com o crescimento do bolsonarismo e da extrema direita nos últimos anos. 

O POVO - As suas obras anteriores já falaram da elite, do "pobre de direita", conceitos que não estão isolados. Dessa vez o senhor analisa o enfraquecimento da esquerda. Por que abordar essa temática?

Jessé Souza - Ótima pergunta. No fundo, esse livro sobre a esquerda é uma continuação do Pobre de direita. No Pobre de direita, eu queria compreender o que a extrema direita fez internacionalmente, mundialmente, para dominar o coração e a mente dos pobres. Como você vai fazer um pobre votar contra o seu... Uma barata votar votar no chinelo, no seu inimigo? No novo livro, a reflexão é outra. O que foi que a esquerda deixou de fazer para que a extrema direita pudesse conseguir convencer o cara que é o oprimido, miserável, humilhado, pobre, preto, gay, mulher etc. Eu acho que é inevitável uma autocrítica aí. Muita gente acha: "Lula é o presidente", "Lula vai ser eleito", ótimo que seja. Agora, o Lula é uma pessoa, não é um programa, não é uma ideia. Você tem aí uma esquerda que não tem nenhuma ideia do que é o país, para onde ele vai. Então, não tem uma leitura alternativa sobre o país e precisa ter.

OP - O senhor também traz um contexto de que várias coisas contribuíram para resultar nesse cenário. Quais seriam os principais problemas?

Jessé - Os principais problemas são: você não faz mais o enfrentamento simbólico, ou seja, das ideias. A interpretação elitista humilha o povo, diz que o povo é corrupto, o eleitor de corrupto, inconfiável, o voto dele, portanto, não vale. É isso que a elite diz e faz. E é isso que sai em todos os jornais, televisão e tudo. Meu principal problema é: a esquerda não tem uma alternativa a isso. Essa coisa de que "veio a corrupção de Portugal, depois vai ficar no Estado, e aí os políticos vão roubar e tal". É uma mentira isso. Os políticos roubam? Claro que roubam. Quem é que monta a corrupção inteira? É uma elite que fica completamente invisibilizada e que não é percebida como criminosa. O criminoso é o preto, que vende uma trouxinha de maconha. Enquanto o outro rouba lá 50 bilhões, o que deixa muita gente pobre, que poderia salvar o futuro de milhões, e ninguém acha isso ruim. O que falta é a esquerda dar uma uma resposta a isso.

OP - Quais seriam os pontos que colaboram para o enfraquecimento da esquerda?

Jessé - Várias coisas. Uma escola muito ruim para os pobres é fundamental. Quer dizer, o pobre não aprende sociologia, filosofia. Sai analfabeto funcional. Mas não apenas isso. O PT, por exemplo, nunca pôs como sua prioridade um sistema público de comunicação. Público, não é estatal, público. Todas as televisões, rádios, jornais são da elite, os mais importantes, os que chegam ao país inteiro, e, obviamente, vão veicular essa visão de mundo. Então, você teria que ter uma infraestrutura. A gente tem que ter outra voz que não seja do dinheiro. Isso é democrático, isso é compreensível se você faz do enfrentamento. Se você quer convencer as pessoas de que elas devem votar no partido que está afirmando, popular, você tem que explicar para as pessoas de que modo isso vai se dar. Isso não é um negócio óbvio. Acho que, antes de tudo, [a esquerda] não explica para o povo porque ele é pobre em um país rico. Não explica quem é o inimigo dele. O inimigo do povo é o agronegócio e as finanças dos bancos, da Faria Lima. É esse o pessoal que rouba todo mundo. Então, o povo precisa aprender a ter o saudável ódio dessa elite canalha que está aí há 500 anos e que não é só indiferente ao povo, ela menospreza o povo. É uma elite desterrada, sem nenhum vínculo orgânico com o próprio país. Não tem uma tradição de montar um projeto. Isso precisa estar na consciência popular. O povo precisa odiar quem é o seu real inimigo e você precisa de um partido de esquerda para isso, mas isso não é feito.

OP - O senhor acredita que a tecnologia tem papel importante nessa mudança?

Jessé - A rede social é casada com a extrema direita desde o começo. Por que isso? Até pelo modo de negócio, que depende do engajamento para poder depois vender produto. O que é que dá mais engajamento? Ódio, agressão, tem várias coisas que mostram isso. Você vai criando, com o tempo, bolhas que são autorreferidas e não têm nenhuma contraposição. Você não tem mais um pano de fundo comum. Hoje em dia essas bolhas não falam da mesma coisa. E, obviamente, isso é o principal perigo. As redes sociais são o principal perigo para a política, precisam ser obviamente reguladas, porque é um domínio absurdo, autoritário, antidemocrático, totalitário, venal.

OP - Em relação a esse enfraquecimento da esquerda, o bolsonarismo e o crescimento da extrema direita têm relação direta com isso?

Jessé - Claro. Obviamente, ele vai ocupar um vazio. É só porque o povo não sabe quem é o seu inimigo que ele pode dizer que o inimigo é o PT, é petralha, é o [Alexandre de] Moraes. Você reduz a inteligência popular, você reduz a inteligência pública e fica jogando os ódios, que é o que dá engajamento e a pessoa se sente participando de um processo político. Ele está sendo completamente idiotizado, usado como massa de manobra, mas, na cabeça dele, está participando de uma revolução nacional. Ele está no poder, está mudando o país. Isso é algo extremamente importante que a extrema direita nada de braçada nessas necessidades. A extrema direita aprendeu a aproveitar as vulnerabilidades do pobre.

OP - E isso pode refletir nas eleições em 2026?

Jessé - Eu estou muito mais preocupado com as redes sociais. É veneno puro. Mas obviamente eu acho que o Lula, pelo menos ao que tudo indica, vai ganhar. Agora, o Lula ganhar não significa que a esquerda esteja dando as cartas. Ela não está dando cartas. Está tentando minimamente ter algum raio de ação. E vai ser sempre pressionada de fora, se não tiver a opinião pública ao lado dela. Ela só vai poder ter a opinião pública ao lado dela quando ela explicar esse mundo todo para essas pessoas, de um outro modo. Explicar porque você é pobre em um país rico. É isso que precisa ser explicado.

OP - É possível a esquerda reverter esse enfraquecimento?

Jessé - É sempre possível. Tudo que foi feito pelo homem pode ser refeito e reconstruído pelo homem. Então, obviamente, o que se precisa saber é para onde se está indo. A esquerda não tem a menor ideia de onde ela está indo, para onde ela vai, como ela vai conquistar as pessoas para isso. Não chega sequer na comunicação real. Se você não tem o Lula, você vai ter muito pouca gente no Congresso, por exemplo. Você tem um cara que é um grande líder por conta da história dele. Esse cara está com 80 anos e os seres humanos têm essa mania de morrer, né? Não é um negócio legal, mas existe essa mania. Então, você não pode depender de uma figura, de uma pessoa. É uma coisa que a gente tem que ficar muito atento e tem que ter uma transformação importante, ter uma autocrítica profunda, real da esquerda, porque ela é, hoje em dia, inoperante. Ela é dominada no debate público e está regredindo, está se apequenando, se amesquinhando.

O que você achou desse conteúdo?