Jessé Souza conhece bem a sociedade brasileira. Como age, o que deseja e o que defende. Sociólogo, professor universitário, escritor e pesquisador brasileiro, ele vem estudando, há anos, no campos do pensamento social brasileiro e de estudos sobre a desigualdade no Brasil.
Elite do atraso, A ralé brasileira, Como o racismo criou o Brasil e A classe média no espelho são algumas das obras publicadas por ele com profundas reflexões sobre o brasileiro e a construção social que levou a sociedade brasileira ser como é.
O escritor é graduado em Direito e mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, com pós-doutorado em Psicanálise e Filosofia na The New School for Social Research, em Nova York.
Em Fortaleza, no fim de novembro, ele veio para o lançamento de sua nova obra: O pobre de direita. O texto mergulha do fenômeno do nascimento do que conhecemos como classe média, um grupo que ainda é pobre, dentro da teoria do autor, mas que não se entende dentro da denominação e até rejeita fazer parte.
O grupo, na extensa análise, se aproxima do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por questões emocionais. A classe, para Jessé, também é mais facilmente atraída pela extrema-direita, que tem se expandido no mundo. As igrejas evangélicas também tem seu papel nessa dimânica, como conta
Ao O POVO, Jessé comenta sobre sua nova obra e como chegou a conclusões para perguntas urgentes como a disseminação de apostas em bets e o adoecimento da parcela mais pobre do Brasil.
O pequisador também aborda sobre os erros da esquerda e os acertos da direita quando se fala de comunicação com o eleitorado, em meio ao resultado favorável para a direita e o centro nas eleições municipais de 2024.
O POVO - Existe um momento que marca o nascimento desse pobre de direita? Tem um momento ou são vários?
Jessé Souza - Tem um momento. O momento para mim é uma contraposição importante. Esse pessoal, os pobres que estou analisando é a classe que o pessoal está chamando de nova classe média — no modo extremamente errôneo, porque quem tem a renda média em uma sociedade de pobre é pobre, remediadamente pobre, mas é pobre. Essa classe ganha de dois a cinco salários mínimos, você tem que batalhar.
Esse pessoal teve 70% de aumento de salário mínimo na era Lula. Isso impacta em todos os salários. Por conta disso, vendia muito carro, pessoal comprando iogurte, botando filho na escola, podendo articular um futuro racionalmente. E o golpe (impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff) veio para acabar com isso.
Um dos motivos do golpe foi exatamente restituir essa massa de dinheiro e recurso, que estava com a população e com as classes populares, de volta para os bancos e para os especuladores, via uma dívida pública, que é uma fraude.
Ninguém audita, obviamente, se você não audita é porque tem fraude, ninguém é imbecil. Então, quer dizer, juros escorchantes de dois dígitos, tudo que a gente compra está embutido juros, significa a transferência de recurso para meia dúzia de especuladores que deixou o povo pobre como era antes da era Lula.
Só que ninguém explicou para essas pessoas quem os deixou pobres. Ele (o povo pobre) tá com raiva. Ele tá com raiva, se sente humilhado. Imagina, de uma hora para outra, você não consegue mais fazer as coisas que você fazia antes e você fica com raiva disso obviamente. É uma humilhação se você tende a experienciar isso como um fracasso pessoal, e ninguém explicou para ele.
A imprensa, por exemplo, não explicou nada disso. Pelo contrário, ficou dizendo que tinha sido a roubalheira do PT a causa da sua pobreza, e não esse assalto financeiro na Faria Lima (avenida em São Paulo com grande concentração de bancos e empresas de capital, sendo considerada o maior centro financeiro do Brasil).
O real inimigo desse cara é a Faria Lima, ou seja, os bancos e os espectadores que assaltam o povo sem produzir um parafuso, simplesmente porque tem o poder, tem a imprensa, tem tudo com eles.
Esse cara, portanto, não poder transformar a raiva dele em indignação, que é quando você sabe quem é o seu inimigo que está roubando você, você vai lutar quando contra. Então você se indigna, você não tá com raiva, você está indignado.
Você tem uma direção, tem uma orientação, é uma atitude política. A raiva é uma atitude pré-política. Ela (a raiva) não leva a nenhuma mudança política, a indignação leva. Como esse cara não pode se indignar, ele continua com raiva.
OP - Isso resulta em quê?
Jessé - Ele tem duas opções. Ou ele pega essa faca e enfia no peito próprio, vai ter de terminar na depressão, no álcool, duas grandes doenças das classes populares hoje em dia e não por acaso, ou então ele vai ser assediado tanto pela pregação evangélica, quanto pela extrema-direita.
Elas vão invisibilizar o seu real inimigo, ninguém vai para falar de Deus, mas vão dizer “tira essa faca envenenada do seu peito que aqui a gente já tem grupos estigmatizados, vulneráveis e frágeis para você se sentir superior e melhor”.
Que são mulheres, LGBT, especialmente o negro. São grupo montados para serem estigmatizados e oprimido.
O que a pregação evangélica faz? Ela separa o pobre honesto do pobre tornado, porque o cara negro que vai vender uma trouxinha de maconha, porque não tem nenhuma opção e vira o criminoso para ser morto na mão da polícia.
O cara das Lojas Americanas rouba 40 bilhões e quem vai pagar somos nós. O criminoso é ele (o pobre) e não esse cara (das Lojas Americanas). Isso nunca é mostrado ao povo, nunca mostraram às pessoas. O cara termina achando que o inimigo dele é o nordestino.
OP - Esse eleitor se identifica com Bolsonaro?
Jessé - Por exemplo, eu peguei esse pessoal que ganha entre dois e cinco salários. Primeiro, esses dois grandes grupos, porque Bolsonaro teve voto em todas as classes, óbvio, se não teria sido presidente, mas a classe que o apoiou, foi o suporte dele, foi exatamente essa classe entre dois e cinco salários mínimos.
É o branco pobre do Sul e de São Paulo que se identifica com o Bolsonaro de um modo emocional. O Bolsonaro é um branco pobre, ele se tornou rico, depois, mas ele é pobre. Ele nasceu pobre. Então, a origem social é que determina.
O Bolsonaro tem a raiva, tem a misoginia, o racismo e todas as coisas canalhas e absurdos que a raiva provoca.
O cara se sente que representado no poder como um “eu estou na presidência, em um cara lá tão canalha, quanto eu”. Isso faz o branco pobre se sentir participando do instante político, evolucionário. Foram pessoas que sempre viveram a vida nas sombras.
Ninguém nunca se importou com ele, ninguém nunca ouviu a opinião dele, eventualmente também, nem a mulher dele quer ouvir a opinião dele. De repente, uma hora para outra, ele passa a ser visto como o cara como esse maluco que jogou bomba no STF.
É um ato heroico para uma vida totalmente apagada nas sombras. E é isso que a extrema-direita dá. O que a pregação evangélica dá é essa sensação de superioridade moral, ao pegar o negro evangélico, eles embranquecem, não é deixar a pele branca, mas é você aderir valores de quem o oprime.
E começar a achar o seu vizinho ou seu irmão "porque ele usa droga porque é bandido e deve morrer". É como se o negro tivesse com a cabeça toda embaixo da água e, com a pregação evangélica, sai de lá e ele pode respirar.
Essa relação entre as classes entre nós, que funcionou um pouquinho como o sistema de castas na Índia, uma coisa que dura é três mil anos sem quase nenhuma diferença. Por quê? Porque é muito eficaz quando você constrói um grupo para ser estigmatizado.
No sistema de castas, são os intocáveis, se você tocar na pessoa você se contaminou, vira um dalit, como eles são os chamados lá. Isso faz com que não só as classes do privilégio se sentem superiores, mas as parece que as classes intermediárias também. É exatamente o que acontece entre nós com o branco pobre ou com o negro evangélico.
OP - O discurso mobiliza esses públicos?
Jessé - Eles se sentem superiores na medida em que se criam bodes expiatórios para ele culpar. O cara no Sul 100%, todo mundo, acha que quem roubou o dinheiro dele foi o nordestino do Bolsa Família, que fica fazendo filho e vivendo às custas dos idosos, o que é racismo isso também.
Ninguém tem ódio de alguém porque nasceu em uma latitude diferente da sua. É porque o nordestino é, como nós dois, ou mestiço, ou preto, 80%.
Então é racismo, são máscaras do racismo que foram extremamente bem aproveitadas pela extrema-direita e pela pregação evangélica, especialmente, neopentecostal, que pega a religiosidade africana, a influência dos espíritos, e dá uma capa judaica-cristã para embranquecer a religião.
O racismo está na base dessa coisa desse branco pobre que precisa ter alguém para ele pisar, porque numa sociedade porque não universaliza o respeito. Na Alemanha, Suécia, e outros, você não deixa ninguém na mão, você não humilha ninguém, portanto.
A humilhação, especialmente quando tem o racismo junto, como nos Estados Unidos e aqui, o reconhecimento, essa sensação de que você é respeitado, é alguém, para você montar uma imagem positiva de você mesmo, você consegue isso às custas dos outros e não com os outros, como nesses outros países que são moral e politicamente mais desenvolvido. Eu acho que a problemática do pobre de direita é essa.
OP - Se fala que a esquerda perdeu esse poder de comunicação, de diálogo e encontrar formas de volatizar esse sentimento. Qual o ponto da virada de chave que esquerda deixou e direita tomou e se apoderou?
Jessé - Tem as contradições da própria formação da esquerda. Onde o bom trabalho que Getúlio Vargas fez de afirmação do negro, da cultura africana, extremamente importante. Foi descontinuado.
O PT, no fundo, é um partido que é um filho bastardo da elite paulista, assim como o PSDB. Começou como um partido ético, toda essa mentira da corrupção e da ética, que explico no livro, não posso explicar agora que é muito complexo, mas toda essa questão da corrupção é mentira.
Mentira para você desmoralizar o voto do eleitor pobre, negro e mestiço visto como corrupto. O eleito branquinho que sai às ruas no fundo, tá saindo às ruas, como eu saí lá em São Paulo, vi só branco, um milhão e meio de branco bem-vestido gritando historicamente contra a corrupção. Eles não têm nada contra a corrupção.
Michel Temer e Aécio foram filmados com mala, não saiu nenhum branquinho histérico em lugar nenhum. Não é a corrupção, nunca foi.
É porque agora estavam botando o negro para estudar com o filho dele nas universidades públicas, mas pega mal você dizer, eu acho que os negros não devem ter chance. "Eu não sou racista, estou defendendo a moralidade pública".
OP - O discurso contra a corrupção é aproveitado com esse propósito?
Jessé - Esse tema da corrupção, serve que para as classes superiores continuarem oprimindo quem ela oprimia, o racismo racial anterior até 1930, e agora vai procurando máscaras para que isso continue.
O nordestino, que, no fundo, é um negro mestiço. O bandido que é preto, ou seja, o cara que vende uma trouxinha de maconha porque não tem mais nada para fazer, não tem mais nenhuma chance, é visto como um grande criminoso a ser morto.
Isenção fiscal de empresas, isso é o que deixa o povo pobre. Quem deixa o povo pobre é a elite de propriedade, a elite financeira e a elite rural. Esses são os reais inimigos do povo, mas ninguém nunca conta isso. A imprensa toda está na mão desse pessoal. Como as pessoas vão saber?
OP - O que a esquerda pode fazer?
Jessé - A esquerda fez uma coisa que é muito pouco inteligente. Ela tem uma espécie de economicista de marxismo vulgar e pensa que "se eu melhorasse a vida economicamente das pessoas, as pessoas vão espontaneamente perceber que nós somos a causa (dessa melhora)".
É de uma ingenuidade. Isso é infantil. Eu fiz alguma pesquisa em 2010 com essas pessoas que estavam ascendendo e eu perguntava para ela, qual é a causa dessa sua melhora de vida. A resposta era Jesus, 80%. É o que ela ouve na igreja dela, se você não disputar as ideias dominantes. Me assusta isso.
É falta de inteligência, como é que a pessoa acha que não tem que disputar as ideias dominantes, criar, formular uma imprensa plural, que é outras fontes dessa verdade, precisa chegar na periferia que nunca ouviu uma verdade em 500 anos, só metem para eles.
Quando você tiver pluralidade, como essa explicação que eu estou lhe dando aqui, ela chegando para milhões e milhões, isso vai mudar a vida das pessoas, mas nunca chega.
Educação por um lado, a educação de qualidade integral com comida pros pobres e imprensa plural muda esse país em 20 anos. Eu vi isso acontecer na Alemanha. Era um país nazista. Em 20 anos, ela mudou.
Eles mudaram e se transformaram em uma sociedade democrática. Nós somos racistas até a medula do osso, mas se a gente agir enquanto contra isso, em 20 anos, a gente muda e vai ser bem menos (racista).
OP - Nas eleições municipais, houve essa discussão de onde a esquerda perdeu, onde e quais os erros que aconteceram e o centrão que cresce cada vez mais, mas que também é muito ligado a alguns partidos da direita. Qual sua avaliação desse resultado das eleições? Os prefeitos são aquelas pessoas na ponta. Como que fica esse cenário, pensando que a gente tem eleição presidencial em dois anos?
Jessé - Foi uma derrota que é inegável. Vamos pegar o caso do Pablo Marçal. O que o Pablo Marçal vendia para as pessoas? Ele é um pastor da igreja neopentecostal, ele vende a mesma coisa que um pastor da Universal vende, prosperidade de um modo mágico.
Não é: "Olha se você fizer isso tem um estudo, você vai ganhar um salário melhor, você vai chegar nisso", porque é assim que você articula um futuro racionalmente. Essas pessoas pobres não têm futuro e o que a gente nunca pensa é que o pobre sonha, tem projeto, quer mudar de vida. Quer, antes de tudo, deixar de ser pobre.
Só que ele não vê como. Se ele não vê como, ele pega uma parte do Bolsa Família e joga em bets. É claro, nós faríamos a mesma coisa. Como ele pode mudar a vida dele, se ele recebe um auxílio minúsculo? Zero chance, mas (o pensamento) é que se eu acertar na bets, eu posso. Ele sonha ele quer isso.
Pablo é exatamente isso. Pablo é uma bet. "Olha eu vou deixar você próspero". Para quem não tem nada, isso é magia, isso é manipulação mágica, vou fazer um milagre. Você fica dependente de milagres e de milagreiros falsos.
De novo, é a pobreza, é a falta de perspectiva, a falta de futuro e não saber quem é o seu inimigo. É não saber que a Faria Lima, os bancos e os especuladores roubam o futuro dessa nação, que é uma nação rica com um povo pobre.
Pobre porque tem meia dúzia que rouba de todo mundo. Tem o Banco Central junto, você quer ter todos os mecanismos de poder e tem um acesso ao Estado. E a imprensa privatizada nunca denuncia isso e diz que o juro alto é bom porque protege o trabalhador da inflação.
Todas as televisões dizem isso, repetem essa bobagem, essa mente mentira. É um povo desorientado, portanto, sem orientação não vê orientação de sindicato, que tá acabando, o partido não faz essa luta. Ele vai aprender como? Onde?
OP - E a extrema-direita vai crescendo.
Jessé - Obviamente. A extrema-direita vive disso. Vive dessa associação de raiva e empobrecimento.
A extrema-direita está a serviço do capital financeiro que quer que a exploração continue. Que o planeta inteiro vai vá ser dependente de um idiota como o Elon Musk.
Ele tem todo o dinheiro do banco, seis bilionários tem mais dinheiro do que metade do planeta inteiro. Mais do que quatro bilhões de pessoas.
É pornográfico, é uma desigualdade pornográfica, mas ninguém denuncia. Esses caras compraram a empresa, compraram tudo, compraram as redes sociais. Como as pessoas vão saber. As pessoas foram imbecilizadas pelo capitalismo. E o resultado é a ascensão da extrema-direita.
Lançamento
Jessé esteve em Fortaleza no dia 29 de novembro quando participou de lançamento do livro O pobre de direita. O evento aconteceu na Livraria Leitura do Iguatemi Bosque. Ele conversou com O POVO antes do lançamento.
Leitores
Para conversar com O POVO, Jessé precisou ser afastado da área do evento porque leitores queriam tirar fotos com ele. Um dos espectadores disse estar ansioso para ler a entrevista com o sociólogo nas Páginas Azuis.
Livro
O livro O pobre de direita chegou ao 1º dos mais vendido na categoria Política e Ciências Sociais da Amazon.
Grandes entrevistas