Se a demanda de transporte de pessoas por aplicativo é realidade crescente em Fortaleza, a entrega de mercadorias compradas via app também é. Por isso, da mesma forma que foi preciso estabelecer em lei regras para a primeira atividade perdurar, entra agora em discussão na Capital a necessidade de também regulamentar a profissão de entregador por aplicativo.
Há pelo menos duas motivações para isso. No aspecto trabalhista, o primeiro, o Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT-CE) diz ser preciso assegurar a esses entregadores direitos trabalhistas básicos. "Mesmo naqueles casos em que a Justiça não reconhecer vínculo empregatício", pontua o vice-procurador-chefe do órgão, Antonio de Oliveira Lima.
É que, de acordo com as principais empresas do ramo — iFood, Rappi e Uber Eats —, os entregadores vinculados a elas são independentes, ou seja, trabalham conforme as próprias regras. E o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no início deste mês, também considerou não haver relação empregatícia direta nesses casos. Mesmo assim, segundo Antonio Lima, as relações de trabalho em plataformas digitais "criam níveis de subordinação muito grandes".
Glauberto Barbosa de Almeida, presidente do Sindimotos-CE, categoria que representa motoboys, alega que nem todas as empresas tratam o entregador como empresário. "Se você não tem MEI (registro de Microempreendedor Individual) e está trabalhando (para as empresas de aplicativo), e existe penalização se recusar pedido, então é empregador e empregado. A categoria tá calada porque acha que tá ganhando bem", entende o sindicalista.
Em toda a Capital, pelo menos 10 mil profissionais trabalham como entregadores de mercadorias. Desses, segundo Glauberto, 60% estão vinculados a um ou mais aplicativos.
Trabalhando 12 horas por dia, de "domingo a domingo", Ricardo dos Santos, 29, consegue ter renda mensal de aproximadamente R$ 2 mil. Só pausa, basicamente, à noite, para estudar radiologia e dormir. "Eu era costureiro. Trabalhava numa fábrica. Passei três anos no ramo da confecção. Final do ano passado, a empresa fez corte de funcionário. E já tinha uma movimentação grande neste negócio de aplicativo. Então, me cadastrei no iFood", ele lembra.
Na época em que trabalhava para a empresa de confecção, Ricardo era pago com um salário mínimo por mês. Com a nova renda, proporcionada pelo emprego "independente", afirma que quitou dívidas e conseguiu consertar a própria moto, principal instrumento de trabalho atual. No entanto, admite, o ofício "é puxado". Por dia, tem de fazer no mínimo R$ 100 em entregas, o que corresponde a mais de 15 viagens.
O segundo aspecto que puxa a discussão da regulamentação diz respeito a segurança viária. Pressionados pela necessidade de fazer mais viagens para ganhar mais dinheiro, motociclistas e ciclistas que fazem entregas por aplicativo tendem a exceder velocidade, avançar semáforo vermelho, pular canteiro central, invadir ciclofaixas e cometer outras infrações de trânsito. E isso não é realidade somente de Fortaleza. Renato Campestrini, especialista em trânsito, mobilidade e segurança viária, assegura que a questão tem se tornado "tendência nacional".
"Quanto mais rápidos forem, mais ganham. Mas, nessa de ganhar agilidade, acabam deixando a segurança em segundo plano", afirmou o especialista. Segundo ele, muito embora as empresas ofereçam bonificações em algumas entregas, "a rapidez, quem acaba impondo, é ele mesmo (o entregador), que quer encerrar logo uma para começar outra".
No âmbito do Ministério Público do Trabalho, o procurador Antonio Lima afirmou que está sendo estudada uma forma de fazer com que as empresas não ofereçam bonificações que incentivem aceleração. "É um dos pontos mais importantes desse debate. A segurança deles (entregadores) é o mais grave", afirmou o representante. Essa medida, inclusive, já está prevista em lei. Desde 6 de julho de 2011, a lei 12.436 veda o emprego de práticas que estimulam o tráfego em velocidade excessiva por motociclistas profissionais.
Em contrapartida, Ricardo, entregador, não acredita que haja necessidade de regulamentar a profissão. "Isso só gera olho gordo dos governos que não permitem que o cidadão busque seus meios de ganhos sem precisar estar pagando um suposto tributo em cima disso. Aqui não existe guerra, como aconteceu com os taxistas (e os motoristas de transporte privado individual). Todos somos unidos, ninguém interfere no trabalho um do outro."
Segundo o procurador Antonio Lima, uma solução para onerar o menos possível os trabalhadores com uma possível regulamentação é também fazer com que as empresas coloquem no custo do serviço "a dignidade do trabalhador". "Promoções aumentam adesão, baixam preços dos produtos e acabam reduzindo, também, a remuneração dos trabalhadores."
Diálogo com parlamentares
Glauberto Almeida, presidente do Sindimotos-CE, afirmou que articula regulamentação estadual e municipal da atividade de entregador por aplicativo.
Mão de obra humana
“O princípio da valorização da atividade do trabalhador tem que ser observado em qualquer atividade econômica que demanda mão de obra humana”.
Antonio de Oliveira Lima, vice-procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT-CE)
Estacionamento rotativo
Um dos pontos da proposta de regulamentação, de acordo com o presidente do Sindimotos-CE, deve ser a negociação de vagas de estacionamento rotativo para os entregadores. "É um dos problemas que a categoria enfrenta, principalmente no Centro da Cidade", afirmou Glauberto Almeida.
RC sobre regulamentação
O prefeito Roberto Cláudio (PDT) admitiu, em entrevista exclusiva ao O POVO, que a Prefeitura não discute, ainda, a intenção de regulamentar a atividade. No entanto, devido à precarização do trabalho e aos impactos que pode causar no trânsito, disse levar em conta.
O que dizem as empresas
iFood
O iFood alegou que seus parceiros - mais de 72 mil no Brasil - atuam de forma "independente". Em nota, afirmou: "Nesse modelo, o entregador gerencia seu próprio tempo, fica disponível para entregar quando achar mais conveniente e pode atuar por outras plataformas. Tem, portanto, liberdade para compor carga horária e renda".
A empresa disse, também, que incentiva seus parceiros a seguirem as leis previstas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e que possibilita a eles acionarem o Samu em caso de colisão por meio do botão "Sofri um acidente".
O POVO ainda questionou qual havia sido o faturamento do iFood em 2018, quais documentos são exigidos para a parceirização de novos entregadores, se a empresa oferece bonificação por quantidade de entregas e o posicionamento dela a respeito de uma possível regulamentação da atividade. Sobre essas perguntas, não houve resposta.
Rappi
A Rappi defende que a flexibilidade da relação entre os entregadores e o aplicativo permite que os profissionais usem a plataforma "da maneira que quiserem e de acordo com suas necessidades". Não havendo, segundo a empresa, "relação de subordinação, exclusividade ou cumprimento de cargas horárias".
Também, em nota, afirmou que, em caso de acidente, a orientação dada aos entregadores é acionar o seguro Dpvat. E que um botão de emergência instalado dentro do aplicativo pode ser acionado caso eles "se deparem com situações relacionadas à saúde ou segurança". Quanto aos documentos exigidos para a parceirização, citou: ter mais de 18 anos de idade (independentemente do meio de transporte utilizado), RG, CPF e, caso utilize motocicleta, também, documento do veículo e Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
Por fim, disse que "não incentiva, em nenhuma ocasião, o aumento da velocidade e o descumprimento do Código de Trânsito Brasileiro". Ocasionalmente, continuou, "a Rappi oferece aos entregadores promoções com o objetivo de sinalizar horários e locais com maior número de pedidos, como em dias de chuva, por exemplo, para equilibrar oferta e demanda".
O POVO ainda questionou qual o posicionamento da Rappi a respeito de uma possível regulamentação da atividade. Sobre essa pergunta, não houve resposta.
Uber Eats
A Uber também considera autônomos os entregadores vinculados ao Uber Eats. E alegou que, além do valor das entregas, oferece a possibilidade de os profissionais receberem gorjetas dos clientes "como forma de parabenizar pela excelência no serviço prestado".
"O app aciona o entregador parceiro mais próximo. O sistema é feito para que o parceiro chegue ao restaurante para retirar o pedido no momento em que ele ficar pronto, de modo a evitar esperas. No Uber Eats não há um tempo máximo determinado. O nosso sistema irá definir o tempo estimado com base na distância e trânsito da cidade no momento do pedido".
Sobre ocorrências de trânsito, a empresa respondeu que possibilita seguro com cobertura de até R$ 100 mil em caso de acidentes pessoais que ocorram durante as entregas, e reembolso de até R$ 15 mil em despesas médicas. Além disso, disse que oferece o Vale Saúde Sempre, um cartão pré-pago que dá desconto em atendimentos médicos e exames laboratoriais.
O POVO ainda questionou qual havia sido o faturamento do Uber Eats em 2018, quais documentos são exigidos para a parceirização de novos entregadores, se a empresa oferece bonificação por quantidade de entregas e o posicionamento dela a respeito de uma possível regulamentação da atividade. Sobre essas perguntas, não houve resposta.
MAIS SOBRE O ASSUNTO
Videomonitoramento tem flagrado casos em que motociclistas excedendo velocidade tapam a visibilidade das placas das motos para evitar multas.
Desemprego no Brasil
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 38,6 milhões de pessoas trabalham, hoje, na informalidade. O dado é recorde no País.
Galeria de imagens
Entregadores por aplicativo em Fortaleza
O que diz a lei?
O serviço de entrega de mercadorias com o uso da motocicleta é regulamentado pela lei de número 12.009, de 29 de julho de 2009. Para poder exercer a profissão, é preciso:
Ter completado 21 anos de idade;
Ser habilitado há pelo menos dois anos na categoria;
Ser aprovado em curso especializado;
Estar vestido com colete de segurança dotado de dispositivos retrorrefletivos.
Dois anos depois, a lei de número 12.436, de 6 de julho de 2011, vetou o emprego de práticas que estimulam o tráfego em velocidade excessiva por motociclistas profissionais, como:
Oferecer prêmios por cumprimento de metas por números de entregas ou prestação de serviço;
Prometer dispensa de pagamento ao consumidor no caso de fornecimento de produto ou prestação de serviço fora do prazo ofertado para a sua entrega ou realização;
Estabelecer competição entre motociclistas, com o objetivo de elevar o número de entregas ou de prestação de serviço.
Segurança viária em Fortaleza