Uma descoberta nascida em um laboratório da Universidade Federal do Ceará (UFC) tem revolucionado o tratamento de lesões causadas pela hanseníase. Ferimentos abertos há mais de 20 anos atingiram a cicatrização após aplicação de uma biomembrana desenvolvida a partir de proteínas vegetais. A evidência impacta positivamente a vida daqueles que convivem com a enfermidade e poderia diminuir em até 70% os custos de tratamento em relação à terapia disponível no mercado.
O achado soma-se a tantos outros que justificam a 13ª posição nacional ocupada pela UFC no Times Higher Education, um dos rankings internacionais mais prestigiados no mundo. Acontece que descobertas futuras, relevantes como a biomembrana, correm um sério risco de não se tornarem realidade. A pesquisa realizada na Federal do Ceará e em tantas outras universidades Brasil está sob ameaça com os anúncios de contingenciamento feitos pelo Governo Federal desde o início do ano.
Na última quarta-feira (11/09), o Ministério da Educação (MEC) comunicou o desbloqueio de 3.182 bolsas (para cursos com notas 5, 6 e 7) de um total de 11.811 que estavam bloqueadas. 8.692 permanecem contingenciadas. O congelamento mais recente, anunciado em dois de setembro, veio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes), ligada ao MEC. O órgão comunicou a paralisação de 5.613 bolsas que ficariam ociosas ainda neste mês. A medida representa uma economia que pode chegar a R$ 544 milhões nos próximos quatro anos.
Já o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), precisou remanejar, no início do mês, R$ 82 milhões dentro do órgão para o pagamento de bolsas relativas ao mês vigente. Em julho, o órgão chegou a suspender edital para bolsas de pesquisas por falta de recursos.
Ainda que as bolsas em vigor não tenham sido afetadas, a continuidade de estudos como o da biomembrana permanece no limbo da incerteza. O auxílio financeiro do Estado para pesquisas assim é fundamental. "São estudantes que a família não tem condição de prover", esclarece Nylane Nunes, professora do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da UFC e coordenadora da pesquisa.
A incerteza frustra expectativas daqueles que veem na contribuição científica uma missão de vida. É o caso de Luiz Daniel Rios, de 33 anos, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Física da UFC. Ele pesquisa, a partir da análise da luz de estrelas, a determinação de propriedades desses corpos celestes. O estudo pode apresentar caminhos para a determinação de moléculas que podem sugerir vida fora da Terra.
Luiz esperava continuar a pesquisa na área de astrofísica em um pós-doutorado, mas já começa a repensar o sonho. "Para você ter dedicação exclusiva a uma pesquisa, você precisa de uma bolsa para se manter", observa.
Membro titular da Academia Brasileira de Ciências, Antônio Gomes avalia que uma das principais consequências do contingenciamento de bolsas é exatamente o desestímulo à produção científica. "Esses jovens, que encaram a pós-graduação, passam a vida estudando e, de repente, todo esse investimento na busca pelo conhecimento, ao não ser acolhido no ambiente da sociedade, causa uma frustração muito grande", reflete.
O docente, que deixou, recentemente, o posto de Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará (UFC), acredita que a instituição não será tão afetada, por conta da alta taxa de ocupação das bolsas de pós-graduação ainda vigentes. Porém, ele lembra que outros importantes programas, como o de Iniciação Científica, voltado a estudantes de graduação, já vêm sofrendo com cortes há mais tempo. "Foram descontinuadas em torno de 70 bolsas", destaca.
Uma delas era a de Liviane Rabelo, estudante do sétimo semestre do curso de Farmácia. Pesquisadora desde o início da caminhada acadêmica no Laboratório de Farmacologia e Bioquímica, coordenado pela professora Nylane, a estudante teve a bolsa de R$ 400 suspensa inesperadamente, durante o período de renovação do auxílio. "Essa bolsa ajudou a desafogar muito as despesas aqui em casa. Sou a responsável por pagar o meu ônibus, o meu almoço, os meus lanches na faculdade e as minhas xerox", elenca.
A permanência da estudante na universidade só está sendo possível graças à ajuda de Nylane. Como bolsista de produtividade nível 1 do CNPq, a docente recebe uma bolsa de R$ 1 mil mensais, que tem sido usada para custear a bolsa de Liviane, a compra de insumos e o pagamento de emergências. "Para manter o laboratório, caso uma geladeira quebre, quem conserta somos nós", desabafa a professora.
| LEIA TAMBÉM |
Milhares protestam nas ruas de todo país contra cortes na educação
Podcast Recorte discute os cortes nas universidades federais; ouça
Protesto contra cortes na Educação em Fortaleza sai do Centro e segue rumo ao Benfica