Peronista de centro-esquerda, Alberto Fernández assume hoje a Presidência da Argentina. Mesmo tendo em Cristina Kirchner uma vice-presidente ainda detentora de grande capital político, a gestão deve agora enfrentar a recessão severa por qual o país passa desde o ano passado, a pressão dos mercados e as perspectivas de terminar o ano com inflação na casa dos 55%, desemprego de 10,4% e pobreza de quase 40%.
Com propostas antagônicas às políticas liberais do governo de Mauricio Macri (2015-2019), Fernández desagrada ainda ao homólogo brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido), o qual se negou a comparecer à posse, hoje.
Bolsonaro cogitou enviar — e desistiu posteriormente — o ministro da Cidadania, Osmar Terra, e o das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o qual comparou Fernández a uma matrioska (boneca russa), com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dentro.
O imbróglio dos últimos dias foi decidido apenas durante a tarde, com o anúncio de que o vice-presidente, Hamilton Mourão, representará oficialmente o Brasil na posse.
Assessores presidenciais contam que foi necessária intermediação de diplomatas e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), para que Bolsonaro fosse convencido a mudar de decisão e fazer um gesto diplomático em direção à Argentina.
Ainda assim, Bolsonaro romperá uma tradição: esta será a primeira vez em 17 anos que um presidente brasileiro não participará da cerimônia no país vizinho, principal parceiro comercial do Brasil na América Latina.
Antes das eleições, Bolsonaro chegou a dizer que a Argentina se transformaria em uma Venezuela, caso Fernández vencesse. A postura divergiu até de outros presidentes de direita, como o americano Donald Trump e o chileno Sebastián Piñera.
Ao contrário destes, após o resultado das urnas, o presidente brasileiro decidiu não cumprimentar Fernández pela vitória, não obstante dirigiu a ele série de críticas pelo apoio da chapa à liberdade de Lula, preso na época. O próprio Fernández visitou o petista na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba.
"O nosso comércio com a Argentina continua sendo da mesma forma. Sem problema nenhum. Não vai interferir em nada", disse Bolsonaro. Na semana passada, reforçou relação pragmática com a Argentina. "Nós temos de honrar contratos. Não podemos rasgar acordos, porque perdemos credibilidade".
Manuel da Furriela, reitor do Centro Universitário FMU e especialista em Relações Internacionais, avalia que não há hostilidade, mas sim reações incomuns por parte do chefe do Executivo brasileiro. "Mourão é uma solução intermediária, mesmo fora da praxe. Também tem opinião forte, de direita, mas percebe-se que é mais polido e diplomático no trato pessoal. Por ser general, teve esta formação. Foi uma boa escolha e vai agir com o protocolo necessário", pontua.
O cientista político Magno Karl destaca que a visita prévia da delegação de Rodrigo Maia foi sinal de cortejo à nova gestão argentina, buscando entendimento e parceria. Por ter parlamentares de esquerda na delegação, Bolsonaro demonstrou descontentamento. "É necessário sentar à mesa e transcender a ideologia para benefício da América do Sul. Os dois se elegeram com componentes ideológicos muito fortes. Bolsonaro aproveitou-se do antipetismo e Fernández, da rejeição interna a Macri. Isso gera tensão porque ambos precisam dar satisfação às suas bases".
O economista Alcântara Macedo concorda que o "viés doutrinário" não deveria estar entre as negociações dos dois países. "Nenhum país opta por esse caminho, por mais divergentes que sejam as gestões. De qualquer forma, a Argentina depende mais do Brasil do que o contrário".
Ele analisa que o Ceará não seria prejudicado em possíveis discórdias comerciais entre os dois países. "Há pouquíssima exportação cearense para lá. São participações dos setores têxtil e calçadista que não pesam na nossa balança comercial, até porque a Argentina está em crise, comprando bem menos", completa. (com agências)