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Cloroquina, o remédio que Bolsonaro converteu em arma política no Brasil
Reportagem

Cloroquina, o remédio que Bolsonaro converteu em arma política no Brasil

Na última quarta-feira, o presidente admitiu que, mesmo sem eficácia comprovada, o Governo autorizaria o largo uso da cloroquina. Para Bolsonaro, "estamos em guerra"
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(Brasília - DF, 26/03/2020) Videoconferência dos líderes do G20. Em destaque o presidente Jair Bolsonaro, com uma caixa de remedio cloroquina. (Foto: Marcos Corrêa/PR) (Foto: Marcos Corrêa/PR)
Foto: Marcos Corrêa/PR (Brasília - DF, 26/03/2020) Videoconferência dos líderes do G20. Em destaque o presidente Jair Bolsonaro, com uma caixa de remedio cloroquina. (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Como um medicamento que aumenta em 34% as chances de morte em pacientes com Covid-19 se tornou uma arma política nas mãos do governo do presidente Jair Bolsonaro? É preciso recuar um pouco no tempo para entender.

Era 31 de março deste ano quando o chefe do Executivo fez seu terceiro pronunciamento em poucos dias. Pressionado por ministros que tentavam dissuadi-lo da ideia de atacar o isolamento social vigente em São Paulo e Rio de Janeiro, mas também em estados como Ceará, Bolsonaro chamou a cadeia de TV e rádio.

Tenso, reconheceu que a pandemia era séria, e não apenas uma "gripezinha", como dissera havia pouco. Falou também sobre equilibrar a defesa da vida e a dos empregos. "O vírus é uma realidade, ainda não existe vacina contra ele ou remédio com a eficiência cientificamente comprovada", declarou, acrescentando: "Apesar da hidroxicloroquina parecer bastante eficaz". Soou como recuo.

Não era. De lá para cá, o presidente já se referiu inúmeras vezes à substância como panaceia, um miraculoso remédio que receitaria à própria mãe, se fosse preciso. Ordenou que os laboratórios da Forças Armadas passassem a fabricá-lo em larga escala.

Nesse intervalo, dois ministros da Saúde caíram: além de Luiz Henrique Mandetta, que acusou o Planalto de tentar alterar a bula do produto para fazê-lo passar como próprio ao combate à patologia, também o seu sucessor no posto, Nelson Teich, que permaneceu exatos 28 dias na função.

Ambos foram abatidos pela cloroquina, que acabou ganhando um protocolo próprio nesta semana, assinado sob o carimbo do ministro interino, o general da ativa Eduardo Pazuello. O documento permite uso medicamentoso da hidroxicloroquina para infectados cujo quadro ainda seja leve, o que contraria o consenso científico segundo o qual o tratamento não tem eficácia atestada.

O novo conjunto de orientações do Governo foi publicado quase que simultaneamente a uma pesquisa da revista britânica "Lancet". Realizado com 96 mil pessoas com diagnóstico positivo para a infecção, o levantamento aponta que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina potencializa o risco de óbito por arritmia cardíaca em até 45% dos enfermos.

Mesmo se aplicada em associação com antibióticos, a droga acentua em 45% a probabilidade de morte nos doentes e em 411% a hipótese de arritmia cardíaca grave.

O protocolo atende a pedido de Bolsonaro, o mesmo negado por Teich e Mandetta. Faz parte da estratégia do chefe em forçar uma flexibilização nos decretos de quarentena adotados por governadores e prefeitos pelo País, para retomar a atividade econômica, bandeira que o mandatário fez questão de levar pessoalmente ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e que está na base de sua queda de braço com os gestores estaduais.

Titular da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, a médica Mayra Pinheiro nega que o Governo Federal tenha preparado um novo protocolo que recomenda a cloroquina.

"Estamos ofertando uma orientação para a prescrição médica, já considerada pelo Conselho Federal de Medicina", responde a secretária. Segundo ela, o objetivo do presidente é "garantir equidade de tratamento precoce para uma doença grave e de alta contagiosidade e diante de um sistema de saúde com escassez de equipamentos".

Mayra Pinheiro descarta que Bolsonaro esteja fazendo uso político do remédio, a fim de desgastar governadores e precipitar a volta ao trabalho num momento em que o Brasil atingiu o patamar de mais de mil mortos diários pela pandemia.

"Não podemos perder tempo com questões políticas enquanto pessoas morrem, a economia entra em recessão e há uma previsão de adoecimento por doenças psiquiátricas após o fim da pandemia", defende.

Em seguida, a ex-presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará ressalta que não se pode "esperar por dados que ainda estão sendo coletados e pesquisas feitas por cientistas divididos por suas cosmovisões e preferências políticas e partidárias para oferecer uma possibilidade de tratamento as pessoas".

O protocolo, a história e os efeitos

O protocolo que libera o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina foi anunciado na última quarta-feira, 20. O documento tem a chancela do ministro interino da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello.

O militar substitui Nelson Teich no cargo, após vacância deixada por Luiz Henrique Mandetta, o antecessor.

Ambos foram demitidos por se negarem a subscrever protocolo estendendo o uso do medicamento para malária a pacientes nos estágios iniciais de Covid-19.

Mandetta, em entrevista recente, revelou que o Governo Federal tentou mesmo alterar a bula do medicamento, tornando-o próprio para o combate à pandemia

Apesar do protocolo, estados já afirmaram que não permitirão prescrição da substância na rede pública hospitalar.

No Ceará, as orientações do presidente Jair Bolsonaro não terão validade. Apenas redes privadas e planos podem fazer distribuição, conforme avaliação médica, aos pacientes com quadro mais leve

 

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