As casas da rua Três Corações, no bairro Bom Jardim, têm uma marca no muro da fachada, deixada pelas águas do canal que transbordou em março passado. Naquele mês, lembra Daniel Bezerra, 41, o esgoto despejado direto no rio Maranguapinho, mais o lixo acumulado, ajudaram a fazê-las voltar. "Encheu tudo aqui, bateu na metade da geladeira", conta.
Como não há esgotamento na comunidade e o problema fosse se repetir, o morador, que está desempregado e faz bicos de pedreiro, tomou providências. "Fiz esse batente aqui na entrada", aponta o anteparo de alvenaria assentado numa manhã. "Agora quero ver entrar."
O problema de Daniel é o mesmo de quase todo o Bom Jardim: falta de saneamento, sistema que assegura o escoamento de dejetos e seu tratamento adequado, evitando descarte "in natura", além de garantir o acesso a água potável e a canalização das águas pluviais. Na vila onde vive, não se conhece nada disso. "Tá vendo aquele cano grosso?", indica uma canaleta cuja boca corre ao rio. "Por ali cai tudo que a gente faz aqui."
Aprovado pelo Congresso no final de junho, um projeto de lei de autoria do Governo Federal pretende sanar o problema de vez alterando drasticamente o modelo de administração vigente, abrindo-o à concorrência direta da iniciativa privada e traçando planos estratégicos.
As metas são ousadas: até dezembro de 2033, ou seja, dentro de 13 anos, universalizar o fornecimento de água e de esgotamento sanitário para 99% e 90% da população, respectivamente. Significa que, nesse intervalo, a família de Daniel não teria a visita imprevista do rejeito atirado ao rio, tampouco pisaria em poças de lama a caminho da escola.
Hoje, esses índices são vexatórios. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) estimam que quase 50% da população brasileira, ou 104 milhões de habitantes, não possui acesso à rede de esgoto - 16% (35 milhões) não têm água tratada.
No Ceará, o alcance do saneamento básico não chega à metade dos cearenses - a situação é parecida com o serviço de água potável, condições que se agravam à medida que se caminha para cidades do Interior.
Relator do PL 4.162/2019 no Senado, que institui o novo marco legal do saneamento no Brasil, Tasso Jereissati (PSDB) é otimista sobre o cumprimento dos objetivos previstos na matéria.
"O marco tem um objetivo bem claro: universalizar a prestação do serviço de saneamento", disse ao O POVO. "O País precisa superar as condições aviltantes em que são mantidos 35 milhões de brasileiros, que não têm água tratada, e 104 milhões de pessoas que não têm seu esgoto coletado e tratado."
Para o ex-governador do Estado, "as metas de universalização são totalmente viáveis, dentro do modelo proposto pelo novo marco legal, com concorrência pelos contratos de prestação nos grupos de municípios em que os estados serão divididos".
Pelo novo sistema, cada município ou um bloco deles terá de abrir um processo licitatório no qual, embora possam participar dos certames, as empresas públicas não têm garantida a gestão do serviço. Atualmente, os entes públicos contratam diretamente companhias estatais, que assumem a administração da rede por períodos pré-estabelecidos. O texto relatado por Tasso acaba com essa exclusividade.
Essa nova modalidade terá validade a partir de 2022. O total de investimentos projetados até 2033 é da ordem de R$ 700 bilhões, calcula estudo do Ministério da Economia.
"A questão não é privado ou público", continua o senador tucano. "Esta é uma dicotomia antiga que contrapõe uma contra a outra. A verdadeira questão é levar o serviço a todos." E, para ilustrar o que diz, cita um adágio: "Não importa a cor do gato, o que importa é que ele cace o rato".
Ex-prefeita de Fortaleza e hoje deputada federal pelo PT, Luizianne Lins devolve: "No modelo privatista, não cabe água como direito humano básico. Água não é mercadoria, é um bem livre, público e um direito constitucional".
A parlamentar, cujo partido foi o único a orientar voto contra o PL, avalia que, na votação do marco do saneamento no Congresso, "prevaleceu o interesse dos empresários do setor, entre eles o próprio senador-empresário Tasso Jereissati, que, por questões éticas, jamais poderia ser o relator".
"O texto praticamente obriga as prefeituras a contratarem empresas privadas para assumir os sistemas de água e esgoto", conclui a petista, para quem o Brasil caminha na contramão do mundo.
Alheio a esse debate, Daniel, lá no Bom Jardim, pergunta-se apenas se, seja por meio do sistema privado ou público, vão resolver finalmente "o problema do esgoto aqui da rua" e "acabar com as muriçocas",