Retomada em 24 de março último após paralisação, a operação Carro-Pipa, que distribui água potável a populações atingidas pela seca, é alvo de investigações do Exército Brasileiro e do Ministério Público Militar (MPM) no Ceará. A Procuradoria de Justiça Militar em Fortaleza identificou que, entre 2017 e 2021, 81 inquéritos polícias militares (IPMs) foram instaurados para apurar crimes e fraudes em procedimentos relacionados à operação. As acusações, entre outros, apontam que haveria pipeiros que receberiam dinheiro por serviço que ou não prestaram, ou o fizeram de maneira precária, com suposta anuência de militares responsáveis pela fiscalização.
A mais recente denúncia foi recebida pela Justiça Militar em 29 de março último. Cinco pessoas, incluindo um tenente-coronel e um sargento do Exército, são acusadas de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. A investigação começou após carta anônima ser enviada ao 23º Batalhão de Caçadores (23º BC) denunciado pagamentos de propina a militares envolvidos na operação em Quixadá, Quixeramobim e Morada Nova, municípios do Sertão Central. A partir da quebra do sigilo bancário dos investigados, foi descoberto que militares que trabalhavam na operação tinham transações incompatíveis com as suas rendas. Isso porque recebiam depósitos sequenciais de origem desconhecida, assim como transferências provenientes dos próprios pipeiros, sem justificativa plausível, conforme a acusação.
Um dos militares réus é o tenente-coronel Flávio Bertolot Pereira, que chefiou o Escritório da Operação Carro Pipa no 23º BC. Conforme o MPM, ele recebeu, entre dezembro de 2015 e março de 2016, diversas transferências entre R$ 500 e R$ 3 mil, que totalizaram R$ 40 mil. O MPM destaca que os valores nunca eram superiores a R$ 10 mil, para que não fosse necessária a identificação do depositante. Também há transferências semelhantes na conta da esposa dele. Além disso, é mencionado na denúncia parecer do Adjunto do Escritório Regional da Operação, um coronel do Exército, afirmando que a equipe do 23º BC não estava obtendo “os resultados esperados”, tendo “caído muito de produção após a entrada do, à época, major”.
Outro dos acusados, José de Sousa David, confessou, em depoimento, que jamais trabalhou na operação, apesar de estar cadastrado como pipeiro. Segundo disse, ele apenas cedeu uma conta corrente para o sargento Célio Mauro Machado de Almeida, após este dizer que havia comprado um caminhão-pipa e que não podia receber da operação sendo militar. Era o próprio sargento, segundo disse, que sacava o valor recebido. José recebia apenas R$ 500. “Se o referido denunciado não dirigia o caminhão e sequer sabia da existência de rotas, pergunta-se: o serviço de fato era prestado? Em quais condições? E fiscalizado pelo próprio beneficiário dos valores que auferia em sua conta?”, questiona o MPM. O POVO não conseguiu localizar as defesas dos acusados. Ainda foram denunciados Carlos Daniel Mesquita Mota e Raimundo Macélio Mesquita Nogueira.
O promotor Luiz Felipe Carvalho Silva reconhece que o que foi descoberto é apenas "a ponta do iceberg" e que os verdadeiros beneficiários não estão sendo responsabilizados, apenas laranjas. Ele argumenta que a operação não atrai tantos holofotes quanto outros programas, mas movimenta um volume alto de dinheiro e, por isso, merece maior atenção da sociedade. Conforme a denúncia ofertada, apenas no Ceará, o montante destinado pela operação mensalmente apenas ao pagamento de pipeiros ficava em torno de 13 milhões de reais, com um teto de 17 mil reais por caminhão. O orçamento total da operação já passou, em alguns anos, a R$ 1 bilhão. Por isso, Luiz Felipe fala da importância da população denunciar casos suspeitos.
Mesmo reconhecendo que a fiscalização feita pelo Exército é melhor do que se fosse feita por prefeituras, o promotor aponta faltar investimento em tecnologia para reforçá-la, assim como o efetivo é pequeno para conferir se a operação está ofertando, de fato, o serviço. Luiz Felipe também questiona a efetividade da operação, que, está desde 1998, quando foi criada investindo alto, mas a questão da seca segue sem ser resolvida. “Precisamos catalisar uma mudança nessa operação”, afirma.
Outros casos
O POVO localizou três sentenças condenatórias envolvendo desvios na operação Carro-Pipa
Em 2017, o comandante do 23º BC constatou a existência de recibos de prestação de serviço com assinaturas que não eram as suas. Na investigação que se sucedeu, foram apontadas duplicação de processos para pagamento e a existência de assinaturas falsificadas, tanto de militares, quanto dos civis, conforme denúncia do MPM, que acusou seis pessoas, quatro motoristas e duas procuradoras de pipeiras. Conforme o MPM, o total do desfalque dado somente por esses acusados foi de R$ 360.016,44. Militares também atuariam no esquema, mas a investigação não conseguiu apurar quem eram os envolvidos. As irmãs Marícia e Michelly Nobre Silveira, procuradoras, foram condenadas em primeira instância a 10 anos e 4 meses de prisão e os motoristas a penas de cinco anos. São eles: Fábio Ronni Miranda Batista, Rafael Jorge Marques Paiva, Girleudo de Oliveira Medeiros e Raimundo Florentino de Souza.
Em outubro de 2018, foi instaurado inquérito após a constatação de que foram inseridas informações falsas na prestação de contas de seis pipeiros. Foi constatado que Antônio Rômulo Cabral de Aragão, responsável por fazer a prestação de contas de dois motoristas, contando ainda com o auxílio de um militar não identificado, teria entregue Recibos de Prestação de Serviços (RPS) contendo assinaturas falsificadas. O procedimento diz que, após a conferência de uma série de documentos, o prestador de contas gere o RPS, documento que é assinado pelo pipeiro, pelo chefe da equipe de prestação de serviços e pelo ordenador de despesas. O MPM estimou que o prejuízo aos cofres públicos foi de
R$ 125.046,06. Antônio Rômulo foi condenado a 1 anos e 4 meses. Denunciados, os motoristas foram absolvidos.
Em 2016, um subtenente foi condenado a cinco anos de prisão após ser constatado que ele recebeu indevidamente R$ 18.925,00 por fraude em licitação que tinha como objeto a confecção de módulos móveis de apoio para a Operação Carro Pipa. Conforme o MPM, foi constatado que o serviço constante em uma nota fiscal não havia sido realizado e que o produto do serviço não existia no almoxarifado da unidade militar.
Sindicato diz que transgressões ficaram no passado
Para o presidente do Sindicato dos Pipeiros do Estado (Sinpece) Everardo Bezerra, os casos de corrupção na operação Carro-Pipa são coisa do passado. Ele até reconhece que “toda categoria tem quem trabalhe errado”, mas diz que, hoje, todos os pipeiros têm compromisso com o trabalho e com os beneficiados. “Hoje, posso dizer, como presidente do sindicato, nós temos uma categoria que se preocupa com a questão do ser humano. Porque você sabe que é uma categoria que não recebe pagamento todo mês. Já poderíamos ter feito greve, poderia ter rejeitado as carradas que são impostas”, diz, se referindo atrasos nos pagamentos.
Bezerra ainda desabafa contra o que considera uma injustiça do Exército na suspensão de pipeiros suspeitos de atos ilícitos. Segundo afirma, há pipeiros que chegam a ficar dois anos impedidos de trabalhar e são inocentados após o término da investigação. Casos que podem render até processos por danos morais, avalia. Entre as motivações que levam os motoristas a serem injustamente investigados, diz o presidente do Sinpece, está o fato de o GPS usado na fiscalização falhar em localidades muito distantes.
Sobre o retorno da operação após a suspensão por conta da demora na aprovação do Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021, Bezerra diz que a operação só retornou em alguns municípios. Conforme o portal da operação, mantido pelo Exército, dos 43 municípios que a Carro-Pipa atendia, 16 estavam em execução em março, último mês com dados disponíveis.
O POVO entrou em contato com a 10ª Região Militar solicitando informações a respeito das acusações, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
Municípios cearenses atendidos por carros-pipa em 2021
Acopiara
Aiuaba
Alto Santo
Aracati
Arneiroz
Barreira
Boa Viagem
Campos Sales
Canindé
Capistrano
Cascavel
Catunda
Caucaia
Choró
Crateús
Crato
Dep. Irapuan Pinheiro
Hidrolândia
Iguatu
Iracema
Itapajé
Itapiúna
Itatira
Jaguaretama
Jaguaribara
Jaguaribe
Lavras da Mangabeira
Madalena
Milhâ
Mombaça
Morada Nova
Monsenhor Tabosa
Parambu
Pedra Branca
Pereiro
Piquet Carneiro
Potiretama
Quiterianópolis
Quixadá
Quixeramobim
Salitre
Solonópole
Tabuleiro Do Norte
Tauá