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385 crianças até 6 anos perderam um dos pais para a Covid-19
Reportagem

385 crianças até 6 anos perderam um dos pais para a Covid-19

MPCE orienta que crianças e adolescentes nesta situação sejam identificados e tenham acompanhamento socioassistencial
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Orfandade foi acentuada principalmente após a pandemia de Covid-19 (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Orfandade foi acentuada principalmente após a pandemia de Covid-19

A Covid-19 deixou pelo menos 385 crianças de até seis anos sem um dos pais no Ceará. Três delas ficaram sem o pai e sem a mãe e oito não puderam sequer conhecer um dos pais, que morreram antes do filho nascer. Os números foram divulgados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) e obtidos por meio do cruzamento de dados entre os CPFs nas certidões de óbito por Covid-19 e os CPFs nas certidões de nascimento de crianças desde 2015 no País.

No Brasil todo, ao menos 12.211 crianças estão nessa situação. O Ceará ficou em 9º lugar entre as unidades federativas que registraram crianças órfãs, em números absolutos. No Estado, cerca de 117 crianças, 30% do total, não tinham completado nem um ano quando perderam um dos pais. A vida de famílias inteiras acabou afetada pela morte de mães e pais que deixaram filhos pequenos.

Depois que a filha faleceu, o cuidado com os netos ficou por conta de Maria de Lourdes Pereira Dino,  63, . Alan, 4, e Alana, 9, dependiam inteiramente do auxílio por doença que a mãe recebia devido a ter uma condição crônica nos ossos, chamada artrite idiopática juvenil. Quando Maria Rosana Pereira Dino, 31, faleceu em maio de 2021 por complicações da Covid-19, a mãe dela, passou a sustentar os meninos, que não têm contato com o pai.

“Eu tô aqui me arrastando mesmo, tô vivendo de doação que um e outro me dá, um quilo, outro quilo. E assim vou vivendo”, diz. Além de receber o dinheiro do programa Bolsa Família, os outros filhos da idosa ajudam com doações de alimentos. “A minha felicidade é eles [filhos], que chegam com uma coisinha, com outra. Só não ajudam mais porque são pobres também, pagam aluguel”, explica. A mulher chegou a procurar o Centro de Referência da Assistência Social (Cras) do bairro Bom Jardim, onde mora, e conseguiu um auxílio de cestas básicas mensais.

Crianças, de 4 e 9 anos, perderam a mãe para a Covid-19 em maio
Crianças, de 4 e 9 anos, perderam a mãe para a Covid-19 em maio (Foto: Aurelio Alves)

As crianças estudam o dia inteiro e, segundo a avó, estão se adaptando à vida na casa dela. “Eles se sentem bem aqui porque a senhora sabe, né, criança não gosta de viver preso, e com ela eles viviam presos”, conta. Devido à doença crônica da mãe, que estava cada vez mais debilitada perto da data em que se infectou com o coronavírus, as crianças e Rosana passavam o dia em casa, precisando da ajuda de Lourdes.

 Quem também precisou se adaptar bruscamente a uma nova rotina foi Alice Laurindo Sousa, de 1 ano e 7 meses. A menina perdeu a mãe, Nayara Laurindo Porto Sousa, 33, em agosto de 2021 para a Covid-19, e teve de se mudar com o pai, Jefferson Sousa, 43, do Rio de Janeiro para Fortaleza. A mudança foi motivada pela necessidade de pedir ajuda à rede de suporte formada pelas avós paterna e materna da criança, que moram no Ceará.

“A gente tá se ajudando muito para tentar superar isso. A Alice, como ainda não estuda, fica na casa da dona Socorro [avó materna], fica lá comigo na casa da minha mãe. E ela tem esse suporte de ter pessoas que amam e que podem cuidar dela”, relata Jefferson. Ele conta que precisou voltar a morar com a mãe para conseguir trabalhar e participar da criação de Alice ao mesmo tempo.

“A situação é horrível. Porque mexe com muita coisa. Tem toda essa mudança, sem planejamento, com uma criança pequena para cuidar. A mãe não aproveitou quase nada da vida da neném que ela queria tanto”, lamenta o pai de Alice.

Maria do Socorro Lopes Laurindo, 55, mãe de Nayara, conta que a adaptação tem sido difícil, mas a união da família é fundamental para que Alice tenha o suporte necessário. “A gente não tem problema. O tempo que eu puder ficar com ela eu fico, o tempo que ele pode ficar com ela, ele fica”.

Alice agora reconhece a mãe por fotos mostradas por Socorro, que compartilha a saudade de Nayara com a neta. “Eu confesso para você que não consigo ficar sozinha. Se eu ficar sozinha eu choro. Ela era muito presente, mesmo morando em outro estado. A gente se dava muito bem”.

Ministério público quer saber como estão vivendo os órfãos da Covid-19 

Diante da dificuldade de identificação e acompanhamento de crianças que ficaram órfãs durante a pandemia devido a mortes por Covid-19 na família, a promotora Antônia Lima expediu uma portaria que pede esclarecimentos a vários órgãos municipais e estaduais. A promotora, que é titular da 78ª Promotoria de Justiça da comarca de Fortaleza, defende que identificar e buscar saber como os órfãos da pandemia estão vivendo é necessário.

“Nós precisamos localizar e identificar esse público infantojuvenil, que tenha perdido os pais, seja um deles ou os dois, e a partir daí, assegurar a esse público todos os seus direitos”, disse Antônia ao O POVO. “O objetivo do Ministério Público é fazer com que o poder público municipal e também estadual possam estar propondo políticas públicas que garantam a proteção dessas crianças”.

Por meio da portaria, que instaurou um Procedimento Administrativo (PA) em agosto para acompanhar a situação em Fortaleza, Antônia pede que uma mobilização aconteça em torno desse público, garantindo que eles tenham o auxílio necessário. Além de identificar, ela demanda que órgãos de educação, saúde e assistência social do município garantam que os órfãos tenham segurança alimentar e material e acesso à regularização da guarda e tutela legal junto ao novo responsável.

A Defensoria Pública do Estado, por meio do Núcleo de Atendimento e Petição Inicial, tem dado apoio às famílias que precisam regularizar a situação de tutela ou guarda, como no caso do homem que precisou comprovar a paternidade do filho para conseguir registrá-lo depois que a mãe da criança faleceu por Covid-19.

Outra entidade citada no PA foi o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Fortaleza (Comdica), que se comprometeu junto ao Ministério Público a criar uma comissão ou grupo de trabalho para acompanhar os casos.

De acordo com a secretária executiva do Comdica, Thayná Sá, a “Comissão Permanente de Políticas Públicas e Orçamento tem se reunido para levantar os dados e planejar como o Comdica irá se manifestar e quais ações serão tomadas sobre o referido tema”, disse por email.

Por meio de nota, a pasta municipal responsável pelos Centros de Referência da Assistência Social (Cras), a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), afirmou que “não recebeu nenhuma demanda com essa especificidade até o momento”. No entanto, o órgão explica que não faz recorte por “causas de falecimento” dos membros de uma família. Portanto, não é possível saber se mais famílias como a de Lourdes buscaram os equipamentos.

“No entanto, há todo um acompanhamento socioassistencial nos casos de vulnerabilidade, principalmente em registros de falecimento dos responsáveis familiares”, garante a secretaria. Para receber uma cesta básica, como a que Lourdes e os netos recebem, é necessário comprovar uma situação de vulnerabilidade social temporária. Os alimentos são concedidos por três meses, período que pode ser prorrogado “desde que permaneça a situação de “vulnerabilidade ou calamidade pública, que possa comprometer a sobrevivência dos beneficiários”.

Para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (Nucepec) Ângela Pinheiro, é “urgente e inadiável” que seja realizada uma busca ativa para encontrar crianças e adolescentes órfãos. Ela defende que seja registrado “quantos e quem são; onde e como se encontram; quais os cuidados que recebem e os que não recebem; se estão sem representação legal ou em situação de vulnerabilidade”.

“A orfandade implica sempre em desamparo, em ruptura de vínculos afetivos e de cuidados, com repercussões na saúde, no social e emocional da criança e do adolescente. É necessário levar em conta que já há órfãos da Covid-19 desde março de 2020, ou seja, órfãos há mais de um ano e meio”, afirma Ângela.

Promotora defende auxílio financeiro 

A promotora Antônia Lima defende ainda que haja algum benefício assistencial de transferência de renda para essas crianças e suas famílias. ngela Pinheiro também afirma que um auxílio financeiro até a maioridade seria importante para o desenvolvimento dessas crianças, sem a perda dos vínculos familiares.

Por meio de um Projeto de Indicação, que sugere a adoção de medidas e políticas públicas ao Estado, o deputado estadual Guilherme Sampaio (PT) recomenda o pagamento de R$ 500 por filho órfão mensalmente. O projeto ainda está tramitando na Assembleia Legislativa do Ceará.

O benefício estaria condicionado à presença escolar em 85% do ano letivo e cartão de vacinação atualizado para crianças de 0 a 7 anos. A pessoa responsável pela criança também deve estar em condição de vulnerabilidade, inscrita no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico).

No relatório final da CPI da Covid, entregue nessa quarta-feira, 20, também sugere um projeto que lei que institui uma pensão no valor de um salário mínimo para menores de 18 anos que ficaram órfãos de pai, mãe ou responsável legal em decorrência da Covid-19. O PL ainda precisa passar por aprovação do Congresso Nacional.


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