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Açude do Cedro: o primeiro reservatório do Brasil está seco
Reportagem

Açude do Cedro: o primeiro reservatório do Brasil está seco

Sem água, o açude não sangra desde 1989. O chão rachado abriga um "cemitério de peixes", que morreram quando as águas do açude secaram. Apesar da importância histórica, o reservatório perdeu a relevância hídrica
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Foto panorâmica do Açude do Cedro totalmente seco (Foto: JULIO CAESAR)
Foto: JULIO CAESAR Foto panorâmica do Açude do Cedro totalmente seco

A pouco mais de 1,5 quilômetro (km) de distância do Açude do Cedro, localizado em Quixadá (a 163,5 km de Fortaleza), um arco sinaliza o início da área federal em que está localizado o pioneiro reservatório hídrico do Brasil. Ali começam os primeiros indícios da drástica mudança de cenário naquela região durante a última década.

A partir do momento em que se cruza o arco, o asfalto dá lugar ao piso intertravado na principal via de acesso ao reservatório inaugurado nos primeiros anos do século XX. O verde que predominou outrora naquela região, deu lugar ao alaranjado de folhas secas e solo castigado pela falta d'água. A maciça presença de novas construções também é responsável pela mudança estética do cenário.

Após percorrer todo o trajeto que leva até o açude, um pequeno e desbotado portão impede o fluxo de veículos. A partir dali, o percurso é feito a pé. Não há nada que prepare o visitante para o que vem a seguir, a primeira mirada, ao chegar ao local onde deveria estar às margens do primeiro açude do Brasil.

"Secou tudo. Aqui no Cedro tá crítico. Isso já tinha acontecido há cinco anos e se repetiu agora. Até os poços estão secando" lamenta Francisco de Paula Faustino, 62, que vive na região do açude há mais de 40 anos.

No local que já esteve submerso é possível caminhar, com certa dificuldade, sobre o solo seco e repleto de rachaduras. O local tornou-se um "cemitério de peixes", onde até carcaças de cágados podem ser encontradas.

Francisco de Paula Faustino, agricultor na região do Cedro
Foto: JULIO CAESAR
Francisco de Paula Faustino, agricultor na região do Cedro

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Aos pés das rochas que compõem o tradicional ponto turístico da Pedra da Galinha Choca, a vida parece sucumbir à falta d'água. Faustino relata com tristeza que viu, durante os últimos anos, sertanejos abandonarem o campo devido à crise hídrica.

"Antigamente, o povo plantava milho, feijão, batata, era uma benção mesmo. Hoje, está abandonado, o povo partiu para outra área", descreve o morador, que diz não duvidar dos planos de Deus ao acreditar em dias melhores.

Já João Zacarias Lino, 57, conta que, desde os 15 anos de idade, tira sustento do trabalho com a terra. Seguindo os ensinamentos do pai, que já partiu, o agricultor avalia o momento da região. "Os tempos estão difíceis. Vi que o Cedro tá bem seco, só tem um restinho de água suja, com os peixes morrendo. O bicho bruto ainda tá conseguindo comer, mas a gente sabe que a água tá pouca".

Desde o dia 24 de novembro, quando o açude registrou 0,01 hectômetros cúbicos (hm³) de volume, de acordo com dados fornecidos pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), já não há qualquer registro de volume de água no local.

A última vez que o Açude chegou a índices tão ínfimos foi em setembro de 2016, a situação se prolongou até março de 2017, quando o sistema da Cogerh passou a identificar água, novamente, no Cedro.

Entretanto, de lá para cá, o reservatório nunca se recuperou. O máximo de água que chegou a arrecadar foi em junho de 2017, quando registrou 2,43% da sua capacidade total, quantidade insuficiente até para tirar o açude do volume morto.

Made with Flourish

Há mais de 10 anos, o Açude do Cedro já não disponibiliza suas águas para o abastecimento de Quixadá. As águas que chegam ao município são transportadas do Açude Pedra Branca, localizado a 37 km da sede municipal.

Mesmo sem a relevância hídrica, o Cedro possui grande importância histórica. O projeto do Açude foi iniciado ainda durante o Brasil Império, por dom Pedro II, sendo a primeira grande obra do País, visando o combate à seca. As obras tiveram início em 1890 e foram concluídas em 1906.

Bruno Rebouças, diretor de operações da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (Cogerh), explica que a região do açude não oferece grandes possibilidades para recuperação hídrica do reservatório. "Na época que o Cedro foi feito, certamente, os estudos que eram realizados para observar essas capacidades não tinham a eficácia que hoje têm. Então, possivelmente, ele poderia ter sido construído em outro local mais eficiente".

Rebouças destaca que, apesar de o açude estar obsoleto no quesito hídrico, a obra possui grande relevância histórica e não pode ser abandonada. "Percebe-se que a hidrologia dele não é para um reservatório daquele tamanho, então hoje ele tem que ser mantido porque tem um extremo valor histórico, temos que ter apego às nossas memórias", destaca.

São justamente as memórias daqueles que ainda resistem às adversidades que mantém a conexão com os tempos áureos do açude, que sangrou pela última vez em 1989, como relata o agricultor João Zacarias.

"Tenho lembrança, a gente passava andando ali naquela parte da parede e era cheio de água, tem muita diferença para hoje. A gente fica triste e desanimado, só um bom inverno para fazer as coisas melhorarem", finaliza.


Restauração do Cedro esbarra em projetos que nunca saíram do papel

Em seus 115 anos de história, o Açude do Cedro vive um de seus momentos mais críticos. A falta de chuvas e a própria ação do tempo vão deteriorando o que já foi a principal obra de combate à seca no Brasil.

Prefeito de Quixadá, Ricardo Silveira
Foto: JULIO CAESAR
Prefeito de Quixadá, Ricardo Silveira

Localizado dentro de uma área federal, o açude é administrado pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), que discute há anos a possibilidade de requalificação do reservatório. Entretanto, até hoje, o projeto nunca saiu do papel.

"Enquanto administração pública, nós estamos buscando alternativas junto ao Governo Federal, que tem o domínio do Açude do Cedro, para que a gente possa fazer a recuperação daquela área", explica Ricardo Silveira (PSD), prefeito de Quixadá.

De acordo com o gestor municipal, em 2019 o Dnocs deu início a um projeto de revitalização do local. A Prefeitura de Quixadá alega que nunca teve acesso ao projeto e sequer sabe se ele foi finalizado.

Em outubro daquele ano, a principal dificuldade apresentada para o andamento do projeto seria a liberação de verbas por parte do Ministério da Economia. Na época, Ângelo Guerra, então diretor-geral do Dnocs, afirmou que o edital para contratação do projeto de segurança e para o projeto de recuperação e revitalização do patrimônio histórico estava orçado em R$ 1,4 milhão.

Procurado pelo O POVO, o Dnocs não respondeu aos questionamentos sobre o andamento do projeto e o que ainda falta para que o processo de revitalização tenha início no local.

De acordo com o prefeito de Quixadá, o município tem buscado chamar a atenção do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), mas não obteve sucesso devido à burocracia do processo. "Os trâmites burocráticos impossibilitam muito dessa evolução. O Dnocs precisaria ter uma atuação maior. Estamos conversando com o MDR, pedindo a ele uma celeridade nessa recuperação do Cedro", relata Silveira, que ainda terá mais uma conversa com o ministro da Pasta este ano para tratar do assunto.

De acordo com o gestor, o local precisa passar por uma grande revitalização, na qual uma equipe técnica possa visitar o reservatório para que se observe se há necessidade de intervenções dentro da área construída.

Enquanto as reformas necessárias não chegam, assim como as chuvas não caem na região, quem possui quiosques na barragem do Cedro lamenta o descaso. "Tem sido muito difícil, é uma situação delicada. Nós aqui do Cedro estamos esquecidos em todos os sentidos. O açude agora secou e só Deus para mandar chuva", relata Érica Silva, 42, proprietária de um dos estabelecimentos.

Açude do Cedro fica seco pela segunda vez na história; na foto, barcos encalhados, manancial seco e a Pedra da Galinha Choca
Foto: JULIO CAESAR
Açude do Cedro fica seco pela segunda vez na história; na foto, barcos encalhados, manancial seco e a Pedra da Galinha Choca

A comerciante conta que já ouviu muitas promessas vindas de políticos, mas que em quase 50 anos, tempo que a família da atual proprietária administra o quiosque no local, nunca viu grandes mudanças estruturais na região.

"Existem projetos, vamos aguardar o que vai acontecer. Até agora, são só promessas. Passam aqui, gravam um vídeo, prometem, mas não sai nada", desabafa.

Secretaria de Recursos Hídricos considera situação estadual crítica, porém controlada

O ano de 2021 chega ao fim com os reservatórios de água do Ceará apresentando pouco mais de 21% de suas reservas totais. De acordo com os dados fornecidos pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), no último dia 16 de dezembro, pelo menos 80 dos 155 açudes monitorados estão com volume inferior a 30%.

O chão arenoso que costumava ser coberto de água em Quixadá
Foto: JULIO CAESAR
O chão arenoso que costumava ser coberto de água em Quixadá

De acordo com o secretário dos recursos hídricos, Francisco Teixeira, a situação hídrica do Estado é grave, mas está sob controle. "Já tivemos em outros anos, nesta mesma época, com 6% ou 7% de reserva. Hoje, nós temos uma irregularidade espacial no Estado. Cada região tem suas características e aportes. Podemos dizer que a situação no geral é crítica, porém controlada", explica.

A irregularidade na proporção armazenada no Estado é notória ao se avaliar os dados fornecidos pela Cogerh. Na bacia do Banabuiú, local onde está localizado o Açude do Cedro, há apenas 7% de volume armazenado. Já na bacia do Coreaú, na região Norte, o volume armazenado ultrapassa os 65%.

Bruno Rebouças, diretor de operações da Cogerh, relata que a diferença de cenários se deve ao déficit hídrico dos últimos anos, além da distribuição irregular das chuvas no Estado. "É importante a gente observar que vivemos uma crise hídrica desde 2012. Em algumas regiões, como é o caso do sertão de Crateús, é desde 2010. Nos últimos três anos, tivemos um arrefecimento da crise, mas ele não foi de maneira uniforme".

Rebouças destaca que, apesar das dificuldades, o Estado não desamparou hidricamente nenhuma das sedes municipais, que tiveram o abastecimento garantido durante todo o período de estiagem.

"Estamos sempre tentando melhorar, seja com a interligação de bacias ou buscando novas fontes alternativas, é o que nos faz conseguir passar por uma crise tão severa sem ter desabastecimento em nenhuma cidade. O que não quer dizer que não tenham passado por dificuldade.", relata Rebouças.

Sobre uma possível melhora no cenário em 2022, a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) está trabalhando no monitoramento da temperatura dos oceanos Atlântico e Pacífico, porém ainda não é possível afirmar como será a quadra chuvosa do próximo ano.

Neste mês de dezembro, a Gerente de Meteorologia da Funceme, Meiry Sakamoto, chegou afirmou que o fenômeno La Ninã pode criar condições favoráveis às chuvas durante os últimos dias de dezembro no Ceará.

Na última semana, o meteorologista da Funceme Raul Fritz, afirmou que os efeitos do fenômeno podem se estender até a quadra invernosa de 2022 — período determinante para definir o se a temporada é de seca ou chuva —, "a influência da La Niña tem significado importante para o Ceará na sua Quadra Chuvosa que ocorre entre fevereiro e maio", destacou.

Apesar da piora do cenário hídrico em 2021, a SRH, por meio de seu secretário, avalia que a segurança hídrica do Estado foi mantida durante todo o ano.

"O ano de 2020 teve um bom aporte hídrico para o Estado, de 5,9 bilhões de metros cúbicos (m³). Esse ano foi bastante irregular, com chuvas abaixo da média. Porém, com a gestão e com a diversificação da matriz hídrica, conseguimos manter a segurança hídrica do Estado", completa.

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