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Sites brasileiros hospedariam cerca de 70% da pornografia infantil da Deep Web
Reportagem

Sites brasileiros hospedariam cerca de 70% da pornografia infantil da Deep Web

Os cinco fóruns congregavam 1.839.831 usuários em todo o mundo, conforme a operação Lobos II, deflagrada em 3 de dezembro último
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Operação Lobos II (Foto: Policía Federal)
Foto: Policía Federal Operação Lobos II

Um conjunto de sites de origem brasileira hospedava cerca de 70% da pornografia infantil na chamada " Deep Web "Termo guarda-chuva que serve para designar todo o conteúdo que não pode ser acessado por 100% do público, seja com uma barreira por login ou por se tratar de página criptografada" , conforme estimativa do Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos, o FBI. A informação faz parte das investigações deflagradas na operação Lobos II, realizada em 3 de dezembro de 2021, e que cumpriu 104 mandados de busca e apreensão e 8 de prisão preventiva em 21 unidades federativas do País — incluindo o Ceará.

A investigação e os processos judiciais abertos se encontram em segredo de justiça, mas, a partir de documentos judiciais, O POVO obteve detalhes das descobertas feitas pela Polícia Federal (PF) sobre o esquema criminoso.

As investigações tiveram início ainda em 2016. Em 2017, foi preso em Recife (PE) Josiel Pedro da Silva Ferreira, um dos administradores dos fóruns na Deep Web. A partir disso, com colaboração premiada e infiltração, a PF identificou Lucas Batista dos Santos, conhecido como Lubasa, apontado como responsável pela hospedagem de, pelo menos, cinco sites e fóruns de pedofilia. Já nos nomes os sites faziam menção aos abusos: Baby Heart, Boyvids4.0, HurtMeh, Anjos Prohibidos e Lolilust.

Ao todo, os cinco sites congregavam 1.839.831 usuários em todo o mundo, conforme a PF. A fins de comparação, quando foi derrubado por uma força-tarefa internacional, o site sul-coreano Welcome to Video, que era considerado o maior de pornografia infantil do mundo, tinha 1,28 milhão de membros.

“Os sítios e fóruns da darkweb "É uma rede de comunicação criptografada, que necessita de um navegador específico (Tor) para ser acessada."  eram divididos por temática, com imagens e vídeos de abuso sexual de crianças de 0 a 5 anos, abuso sexual com tortura, abuso sexual de meninos e abuso sexual de meninas”, divulgou a PF em 3 de dezembro, quando a operação foi deflagrada.

Lucas foi preso em 6 de junho de 2019, em São Paulo, pela Polícia Federal, momento em que ainda foram apreendidos os HDs onde funcionavam os servidores em que os sites eram hospedados, com o objetivo de serem submetidos à Perícia. O material também foi compartilhado com o FBI e com a National Crime Agency (NCA), do Reino Unido. A ação não foi divulgada à época, “no escopo de viabilizar prisões de produtores e consumidores deste tipo de material criminoso e o resgate de crianças vítimas em todo o mundo”, conforme se manifestou a PF.

“Tempos depois à apreensão do material na casa de Lucas Batista, a agência policial inglesa NCA forneceu à Polícia Federal centenas de logs de conexão utilizados por usuários brasileiros nos fóruns e sites mantidos pelo mencionado acusado”, consta em uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidia sobre a quem competia o julgamento de um dos acusados.

Lucas foi condenado a penas superiores a 150 anos de prisão em dois processos em que era acusado de crimes como estupro de vulnerável e produção, compartilhamento e posse de pornografia infantil. Os cinco sites mantidos por Lucas foram retirados do ar ainda em 2019, conforme a PF. O POVO não conseguiu localizar as defesas de Lucas e Josiel.

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O termo Deep Web faz referência a uma parte da internet não indexada pelos mecanismos de pesquisa, como o Google. No caso dos da operação Lobos II, os sites eram hospedados na rede Onion, que garante o anonimato dos usuários.

O POVO buscou os procuradores responsáveis pelas ações penais, mas o Ministério Público Federal (MPF) informou que, por se tratar de caso em segredo de justiça, não seria possível a entrevista. A Polícia Federal não respondeu até o fechamento desta reportagem.

"“Em investigação de alta complexidade [...] houve a identificação e prisão de LUCAS BATISTA SANTOS, indivíduo responsável pela hospedagem, segundo estimativa do FBI, de cerca de 70% (setenta por cento) de toda a pornografia infantil mundial existente na Deep Web, por meio de 05 (cinco) dos maiores fóruns dedicados exclusivamente ao abuso sexual infantojuvenil, que congregavam, conjuntamente, 1.839.831 (um milhão, oitocentos e trinta e nove mil, oitocentos e trinta e um) usuários em todo o mundo”" Trecho da portaria de inquérito aberto pela PF

Deep Web e Dark Web: o que são e quais as diferenças

Internet "oculta" pode abrigar crimes, mas essa é uma pequena parte de seus usos; entenda funções e objetivos das redes de comunicação privada

Por Bemfica de Oliva

Deep Web e Dark Web são a mesma coisa?

Não. Embora o termo "Deep Web" seja mais comum, ele significa simplesmente tudo na internet que não está disponível ao público. Qualquer site que exija login e senha, como um fórum ou o sistema interno de uma empresa, é considerado "Deep Web". Dark Web, por sua vez, é uma rede de comunicação criptografada, que necessita de um navegador específico (Tor) para ser acessada.

A Dark Web serve apenas para crimes?

Não. Embora essa rede apareça na mídia quase sempre relacionada a crimes, essa é uma parte muito pequena do seu uso. A Dark Web simplesmente é uma rede que permite comunicação de forma segura, acessada por pessoas que valorizam privacidade. A maior parte dos usuários, na verdade, é de entusiastas de tecnologia, com conteúdos totalmente legítimos.

Por que essas pessoas não usam a internet "normal" então?

Porque não querem. O direito à privacidade é, no Brasil, garantido inclusive na Constituição (art. 5º, inciso XII). A maioria das empresas de tecnologia, porém, como Google e Meta/Facebook, têm acesso a tudo que é produzido pelos usuários, portanto a privacidade não pode ser garantida por esses meios.

Que usos legítimos tem a Dark Web?

Um dos motivos mais simples de entender é realizar denúncias de forma anônima. Veículos de jornalismo de renome internacional, como o inglês The Guardian, têm sistemas de recebimento criptografado, pela Dark Web, para "whistleblowers" (denunciantes) enviarem documentos. A comunicação segura em países com governos autoritários é outra possibilidade — o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, inclusive, é um dos principais desenvolvedores do Tor.

Como funciona a Dark Web?

No uso da internet "normal", ao acessar um site, seu computador se liga à operadora de internet, que busca as informações do site e as recebe de volta, exibindo no seu computador. Esse processo é linear e facilmente rastreável, por exemplo, por hackers, que podem interceptar a comunicação.

Na Dark Web, por sua vez, a conexão é mascarada passando por diversos "nós" ao longo do caminho: ao acessar um site, o tráfego passa por vários computadores, de outros usuários da rede, antes de chegar ao destino, e o caminho de volta também é "embaralhado". Deste modo, rastrear e interceptar a conexão é virtualmente impossível.

Usar a Dark Web é perigoso?

Assim como na internet "normal", a resposta depende muito das práticas de segurança do usuário. Manter o sistema atualizado e o antivírus em dia, por exemplo, são boas garantias de segurança. Usar sistemas menos propensos a vírus, como MacOS ou uma distribuição Linux, também ajuda. Por fim, não baixar arquivos, instalar nem executar programas que não se sabe a origem é primordial para garantir uma navegação segura.

Advogado e palhaço estão entre os presos em ação contra pornografia infantil

Alvos da operação se gabavam nos sites de terem abusado sexualmente de crianças, assim como mantinham arquivos de pornografia infantil

Os nomes dos alvos da operação Lobos II não foram divulgados, mas O POVO conseguiu, a partir de documentos judiciais, apurar as identidades de alguns dos envolvidos. É o caso do catarinense Vinícius Eduardo Bouckhardt, que, conforme a PF, sob o codinome “Olhos Negros”, relatava no site ter praticado abuso sexual contra crianças e adolescentes, de ambos os sexos, inclusive, de seu convívio íntimo.

Ele teria postado 137 mensagens e distribuído ao menos quatro arquivos nos fóruns. Quando a operação foi deflagrada, 309 arquivos de pornografia infantil foram encontrados no computador pessoal de Vinícius Eduardo.

Chamou a atenção dos investigadores o fato de Vinícius trabalhar como palhaço profissional, apresentando-se, inclusive, em visitas periódicas a hospitais de Chapecó/SC. “Ora, tendo em vista que o investigado dedica-se à arte da palhaçaria [...] é muito provável que tenha contato frequente com crianças e adolescentes, o que, frise-se, configuraria risco concreto à integridade das vítimas”, afirmou o desembargador Luiz Carlos Canalli ao decidir pela manutenção da prisão de Vinícius.

A defesa dele havia apresentado, em pedido de habeas corpus, 16 argumentos pela soltura, entre eles, que “não se tem a garantia de que o usuário 'Olhos Negros' não seja compartilhado por diversas pessoas com o intuito de tecer fantasias sexuais”.

Outro suspeito de frequentar os sites a ter a prisão determinada foi o amazonense Gabriel Pinto Braga. Conforme Relatório de Análise de Polícia Judiciária (RAPJ) nº 72/2020, da PF, Flamerg3, como Gabriel se identificava no fórum, compartilhava material de abuso de crianças nos fóruns. Além disso, ele postou "vários" relatos confessando já ter abusado de vários meninos entre 6 e 10 anos. Durante os cumprimentos dos mandados, Gabriel também foi autuado em flagrante em posse de arquivos de pornografia infantil.

Também foi alvo da operação o paulista F. L. da S. Ele já havia sido preso em 2020, acusado de molestar uma criança por quatro anos — os crimes começaram quando a vítima tinha 10. Vídeos e imagens das vítimas ainda foram produzidos, tendo, já na ocasião, sido encontrados arquivos de pornografia infantil com o acusado.

Em pedido de soltura à Justiça, em dezembro de 2020, ele chegou a afirmar que fazia tratamento médico por pedofilia, que é reconhecido como transtornos de preferência sexual pela Organização Mundial de Saúde. F. argumentava que a prisão dificultava o acesso ao tratamento. O pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Diante da alegação, que apresenta leitura psiquiátrica, O POVO opta por não identificar o acusado.

Um advogado de Campo Grande (MS) foi outro preso na operação. Conforme o site Campo Grande News, ele teria afirmado em um dos fóruns que abusou sexualmente dos "cunhadinhos" e ainda previa uma "boa colheita" dentro de alguns anos, referindo-se aos afilhados.

O advogado teria realizado 700 postagens entre 2016 a 2019. Quando a operação foi deflagrada, a PF também encontrou pornografia infantil com ele. Ainda segundo Campo Grande News, as filhas do acusado, através da mãe, solicitaram ingresso na ação como assistentes de acusação, já que seriam possíveis vítimas.

A defesa do advogado afirmou que os crimes atribuídos a ele consistiriam “apenas no comentário sobre um link já existente, o qual não foi criado pelo acusado, contendo imagem com péssima qualidade que não permite verificar se os atores ali encontrados são menores de idade ou não”. O advogado não terá o nome divulgado para não permitir a identificação das supostas vítimas em sua família.

Um homem no Ceará também foi alvo da operação Lobo. O POVO opta por não divulgar o nome dele por não ter conseguido apurar se o mandado de busca e apreensão contra ele resultou em acusação formal.

"Há, decerto, uma relação comunitária e de ampla cumplicidade entre os pedófilos que acessam tais fóruns, havendo comportamentos claros de proteção recíproca, pois há uma relação de dependência obsessiva e compulsiva ao crime do outro. A proteção do outro usuário é o que garante ao pedófilo a obtenção de outros materiais para a satisfação da própria lascívia, tratando-se de uma rede que tende ao infinito. Orientam-se recíproca e incansavelmente sobre como perpetrar o crime e como tomarem os cuidados necessários para não serem descobertos" Trecho de decisão do Juízo Federal da 36ª Vara Privativa de Execuções Penais e Crimes Dolosos contra a Vida de Pernambuco

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