O menino imagina que seja uma brincadeira do “tio” — em geral, alguém muito próximo, familiar ou conhecido. Mas é surpreendido. A mão nada despretensiosa desliza por cima do calção do garoto, que não entende ou se assusta, mas se contém na reação. O contato talvez passe para dentro da roupa do menino. O ambiente poderá ser o doméstico, o escolar, até o religioso. Os casos anotados se apresentaram assim. Mas na rua ou lugares não específicos também acontecem, praticados por desconhecidos. As situações violadoras poderão se agravar até o ato penetrativo. O abuso poderá se estender por muitas vezes, por meses, por anos. Poderá transpor toda a infância, a adolescência.
Essa vítima, já um adulto, poderá manter o segredo por muito tempo. Talvez nunca fale para ninguém e só desabafe depois de décadas. Entre as causas do silêncio, os relatos apontam o receio de ser estigmatizado, puxado pelo machismo/homofobia no ambiente social, ou prévio medo do abusador, o que os outros falarão se a história for revelada? As situações incluem abusadoras. Também há vítimas que, mesmo adultas, são sujeitas à relação não consentida. O silenciamento é tanto que a lei penal brasileira, até 2009, nem considerava o crime de estupro quando o homem, em qualquer idade, era a vítima. Hoje está na Lei 12.015/09, no capítulo que trata dos crimes contra a dignidade sexual.
Na média, a cada dois dias um homem sofreu violência sexual no Ceará nos primeiros 90 dias deste ano. Foram 43 registros para o gênero masculino como vítima, entre janeiro e março. Os crimes sexuais considerados são abusos, estupros de vulneráveis e exploração sexual de menor. Mas a subnotificação é uma certeza nesse cenário. As vítimas são principalmente da faixa etária infantil e adolescente, entre 1 e 17 anos (74,41%). Mas em pelo menos dez casos anotados pelo Estado a vítima tinha entre 19 e 58 anos de idade. Chamam atenção três ocorrências que vitimaram homens de 36, 46 e 58 anos. Outros três casos não tiveram idade informada para quem sofreu o abuso.
São dados oficiais da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), acontecidos em todo o Estado — menos em três das 25 áreas integradas de segurança. A violência sexual em que a vítima é do gênero masculino é muito menos falada, comentada, assistida e anotada, do que quando acontece com uma mulher. Os números apontam uma diferença quase oito vezes maior nos crimes sexuais, comparando as ocorrências com homens e mulheres. No primeiro trimestre de 2022, das 386 vítimas de crimes sexuais registradas, 43 foram homens e 340 mulheres — três casos não tiveram o gênero identificado.
“Um pesquisador do Rio Grande do Sul, Jean Von Hohendorff, diz que a gente não pode afirmar que os homens são menos vítimas que as mulheres porque a quantidade de subnotificação entre os homens é estratosférica. A gente nem consegue imaginar por conta da cultura machista, porque o homem não se coloca no papel de vítima, uma série de questões. Os dados que estamos encontrando em pesquisas já são muito maiores do que os sistemas de notificação e provavelmente nem representam toda a realidade”, expõe Denis Gonçalves Ferreira, fundador e diretor executivo da organização não governamental Memórias Masculinas.
Essa é a primeira e ainda a única organização do terceiro setor no Brasil a oferecer suporte psicológico para homens que foram vítimas de violência sexual. Fundada em setembro de 2020, começou a atender em janeiro de 2021. “Imagina que a gente não fala sobre o assunto e estamos citando que homens adultos, que acreditamos terem capacidade de se defender, também são vítimas”, estende Ferreira, que também trabalha em pesquisa de doutorado na área e é professor do Centro Universitário de Várzea Grande (Univag), no Mato Grosso. Há instituições similares em Portugal (Quebrar O Silêncio) e no Reino Unido (Male Survivor), fundadas anteriormente. No primeiro ano de atendimento, a Memórias Masculinas recebeu 101 pacientes, todos com consultas virtuais, procedentes de todas as regiões do País. Dois dos atendidos, segundo ele, foram homens de Fortaleza.
O POVO tentou comparar os casos de violência sexual contra homens dentro do recorte temporal da pandemia, mas não obteve os dados específicos acontecidos em 2020 e 2021. O detalhamento no site da SSPDS só estava aberto sobre os de 2022. Foi enviado um email para a pasta no último dia 13 de abril com o pedido e mais informações. O mesmo email foi encaminhado para Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) e para Polícia Civil (PCCE) — que foi designada internamente na pasta para enviar a resposta. Porém, as informações não haviam sido repassadas até a edição desta reportagem.
Entre as questões não esclarecidas: se há algum tratamento específico para esses casos, se os registros com mulheres trans e travestis aparecem entre casos masculinos ou se houve morte de alguma vítima (neste ponto, a SSPDS chegou a informar antecipadamente que precisaria acessar cada inquérito para dirimir as dúvidas). Nos dados de 2022, a maioria dos crimes sexuais contra homens foi no turno da manhã, às 8 horas, com meninos de 4 anos de idade, maioria aos sábados. Registros de raça e escolaridade trazem várias lacunas com desinformações sobre os registros.
Se você é um homem que foi vítima de violência sexual, a Memórias Masculinas oferece atendimento psicológico gratuito. Para conseguir o atendimento basta acessar o site: www.MemóriasMasculinas.org/site/quero-ajuda
O perfil das vítimas no Ceará - Dados de janeiro a março/2022
Total de casos: 43
Média: 1 caso a cada 2 dias
Vítimas mulheres - 340 casos no período
Gênero não informado - 3 casos
- Crianças e adolescentes (de 1 a 17 anos): 32 casos
- Jovens (19 a 29 anos): 7 casos
- Adultos (36 a 58 anos): 3 casos
- Não informadas: 2 casos
* Idade com mais registros: 4 anos
* Idades adultas com registro: 36, 46 e 58 anos (um cada)
- Domingo: 4 casos
- Segunda: 7 casos
- Terça: 4 casos
- Quarta: 5 casos
- Quinta: 3 casos
- Sexta: 9 casos
- Sábado: 11 casos
- Madrugada: 5 registros (entre 0h14 e 4h30)
- Manhã: 17 registros (entre 8h e 12h)
- Tarde: 11 registros (entre 12h30 e 18h)
- Noite: 10 registros (entre 19h e 23h30)
* Hora com mais registro: 8h (6 casos)
- Janeiro: 20 casos
* Data com mais registro: dia 28 (5 casos)
- Fevereiro: 14 casos
* Datas com mais registro: dias 12 e 25 (2 casos cada)
- Março: 9 casos
* Todas as datas com 1 caso cada
- Alfabetizado: 8
- Não alfabetizados: 14
- Fundamental completo: 4
- Fundamental incompleto: 9
- Superior completo: 1
- Não informado: 7
- Não informada: 30
- Parda: 10
- Branca: 1
- Preta: 2
- AIS 2: 2 casos
- AIS 3: 1
- AIS 4: 1
- AIS 5: 1
- AIS 6: 2
- AIS 7: 2
- AIS 8: 2
- AIS 9: 1
- AIS 11: 2
- AIS 12: 2
- AIS 13: 1
- AIS 14: 4
- AIS 15: 1
- AIS 16: 3
- AIS 17: 2
- AIS 18: 1
- AIS 19: 6
- AIS 20: 1
- AIS 21: 5
- AIS 24: 1
- AIS 25: 1
- Não informada: 1 (em Fortaleza)
* Sem registros: AIS 1, 10, 22 e 23
Fonte: SSPDS.
Para acessar os dados detalhados de 2022, acesse o link https://www.sspds.ce.gov.br/estatisticas-2-3/
Total de atendimentos: 101 registros
Média de idade dos atendidos: 35 anos
79% dos homens já haviam falado para alguém sobre a violência sofrida
21% nunca haviam contado a respeito
83% na infância
34% na adolescência
2,1% idade adulta
51% dos casos aconteceram várias vezes (por meses ou anos)
36% aconteceram mais de uma vez
13% aconteceu uma vez
66% eram conhecidos das vítimas
44,7% eram familiares (pai, mãe, irmão, tio, avô…)
14,9% desconhecidos
10% eram mulheres agressoras
44,7% na casa das vítimas ou do agressor(a)
25,5% outros lugares
4,3% ambiente religioso
17% rua
4,3% escola
São Paulo - 43 atendidos
Rio de Janeiro - 9
Minas Gerais - 5
Distrito Federal - 5
Ceará - 2
Piauí
Rio Grande do Norte
Paraíba
Pernambuco
Sergipe
Bahia
Espírito Santo
Goiás
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Amazonas
Rondônia
Paraná
Santa Catarina
Rio Grande do Sul
Fonte: ONG Memórias Masculinas. Atendimentos de janeiro de 2021 a janeiro de 2022.
"A gente sabe que os abusos acontecem. Inclusive sabe que muitas vezes eles são velados. Não escutamos falar sobre esses casos, mas sabemos que eles acontecem. Porém eles não chegam até nós", confirma Andreya Arruda Amendola, psicóloga jurídica da Defensoria Pública Geral do Estado. "Atendemos muita mulher vítima de violência sexual, mas do sexo masculino não nos chega como deveria".
Além do baixo registro como ocorrência policial, a notificação de atendimentos também é pequena nos atendimentos públicos psicológicos. Na Capital, a Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), em nota enviada ao O POVO, reconhece que "a maioria dos casos de exploração, violência ou abuso sexual, ocorre dentro da casa da vítima e apenas 10% dos casos são notificados às autoridades".
Até ontem, 25 de abril, a Funci ainda não tinha nenhum caso registrado com vítima masculina de crime sexual em 2022. Os dados mais recentes repassados são de 2021. Segundo o órgão municipal, foram 75 casos de abuso, com as vítimas entre 0 e 18 anos de idade (mais um de idade não informada), e apenas um de exploração sexual, com idade não informada.
Motivo | 0 a 6 anos | 7 a 11 anos | 12 a 18 anos | Idade não informada | Total |
Abuso sexual | 153 | 204 |
366 | 9 | 732 |
Feminino | 124 | 182 |
343 | 8 | 657 |
MASCULINO | 29 | 22 | 23 | 1 | 75 |
Exploração Sexual | - | - |
4 | 1 | 5 |
Feminino | - | - |
4 | - | 4 |
MASCULINO | - | - | - | 1 | 1 |
Total | 153 | 204 |
370 | 10 | 737 |
Fonte: Funci. (*)Dados mais recentes.
A Funci informa que desde 2006 existe o Programa Rede Aquarela, política pública especializada para o enfrentamento da violência sexual infantojuvenil. No fim de 2020, o Programa foi instituído pela lei municipal 11071/20 como política pública permanente. A nota do órgão destaca que, no Rede Aquarela, "o atendimento é o mesmo para meninas e meninos". A administração municipal não deu informações sobre como é feito o atendimento para homens adultos vítimas de violência sexual.
Para Andreya Arruda, da Defensoria Pública do Estado, o silêncio da vítima ou dos responsáveis por ela, quando os casos acontecem com crianças, só privilegia e protege o abusador. "Esses casos não são falados. O abuso é muito silenciado. As pessoas têm muito receio, muita vergonha de falar. E nisso você acaba protegendo o violador. No silenciamento você silencia sua dor, mas também protege quem violentou".
A psicóloga confirma que o machismo é o principal bloqueio a essa exposição dos casos. Em números e em histórias. Principalmente quando a vítima é um homem adulto, em tese com a capacidade de reagir. "Vivemos ainda a sociedade patriarcal. Como assim um homem foi violentado? Como assim teve uma relação não consentida? E é importante dizer que as mulheres também abusam. Esse é outro mito", amplia.