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Meninos que viraram vítimas: relatos de quem vivenciou a violência
Reportagem

Meninos que viraram vítimas: relatos de quem vivenciou a violência

Medo, vergonha, homofobia, ausência de conversa franca sobre sexo são alguns dos fatores que impedem vítimas do sexo masculino a contar sobre os abusos que sofreram
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Criança era impedida pela própria mãe de ter contato com o mundo exterior (Foto:  iStock/Reprodução )
Foto: iStock/Reprodução Criança era impedida pela própria mãe de ter contato com o mundo exterior

“O abusador se vale do silêncio”. Foi a partir dessa máxima que uma mulher de 39 anos decidiu denunciar à Polícia o abuso sexual sofrido pelo filho de 11 e ainda expor o caso em relato nas redes sociais. Ela — que será identificada nesta matéria com o nome fictício de Sandra, opção de O POVO para preservar a imagem da criança — publicou, em 17 de março último em sua conta no Instagram um relato que jogou luz ao episódio.

“Há seis meses, desde quando ele me contou, entre soluços, após voltar de um final de semana com a família paterna, que o seu tio [...] o violentou por diversas vezes, nossas vidas transformaram-se no pior dos pesadelos; um quadro surreal sangrento e perturbador”.

Após a grande repercussão do caso, Sandra relata que, para além da revolta com o crime, se formou uma rede de solidariedade em torno da vítima. Ainda se sucedeu um debate sobre abuso sexual, levando até mesmo a que famílias a procurassem para relatar casos semelhantes.

As narrativas são importantes, ela conta, porque há uma tendência de tentar ocultar os crimes — o que também ocorreu em seu caso, em que, segundo ela, parte da família paterna defendia não denunciar o caso. Sandra reforça que, em se tratando de um menino como vítima, outros elementos vêm a se somar para que o caso seja acobertado.

“Está inserido nessa cultura machista de que 'o homem aguenta', que as dores têm de serem silenciadas mesmo. São muitos absurdos que a gente escutou no relato de outras vítimas, meninos também”, ela diz. “A gente percebe que acaba virando até motivo de brincadeira, uma coisa menor”.

Essa é uma situação que Will conhece bem. Hoje com 38 anos, ele foi vítima de violência sexual aos 8. Um amigo de sua família perpetrou as agressões pelo período de um ano, mas as marcas emocionais acompanharam-no até a idade adulta. “São coisas que, volta e meia, vêm, aparentemente do nada”, como diz Will — o apelido é verdadeiro, mas O POVO não informa mais dados sobre eles para impedir a sua identificação.

O abusador não foi denunciado à época, e, mesmo para os pais, Will não contou o que ocorreu. Ele cita o “tabu do sexo” e a homofobia como alguns dos elementos que o fizeram não contar sobre o abuso. “Eu fui abusado por um homem e eu não falei para ninguém por medo desse estigma de ser gay. Anos depois, já nos anos 2000, eu me sentia fraco, menos homem… Eu nunca tinha falado para ninguém. Resolvi falar para minha mãe quando eu já tinha 28 anos, 20 anos depois que tinha acontecido”, relata.

Will conta que não dispunha de um ambiente que o tornasse confortável para conversar a respeito. “O sexo era um assunto não-oficial, não-convencional, um assunto para se falar em burburinho, rodinha de amigos, não com pai, com mãe, não falar como assunto sério. Sexo era pra falar sobre curtição, o que não foi, foi ruim. Então, acho que isso foi uma das coisas que me bloqueou, me tornou uma pessoa mais tímida”.

"Mesmo sendo menino, criança é vulnerável. Eles precisam da proteção dos pais. E é responsabilidade dos pais darem essa proteção. Essa proteção inclui inclusive conversa e que criança e o jovem tenha voz, que ele saiba que pode falar que vai ter acolhida. Eu via na minha família, por exemplo, que as meninas tinham um cuidado na hora de chegar em casa, cuidado para sair da rua. Menino não tinha. Na cabeça (deles), o menino é autossuficiente e não é. É uma criança, um adolescente, uma pessoa em formação”." Will, sobrevivente de abuso sexual na infância

Para Sandra, o desconhecimento da lei também reforça o silêncio. Até 2009, o Código Penal previa que o estupro se caracterizava apenas como “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Assim, as violências sexuais contra homens eram caracterizadas como “atentado violento ao pudor”. “Percebi muito isso”, conta ela. “Chegaram até nós situações que eram estupro, mas que as pessoas sequer tinham percebido que era estupro, justamente, por acreditarem que o homem não pode sofrer estupro”.

Will também destaca outro ponto que muitas pessoas não sabem: o prazo para prescrição de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes só passa a contar a partir da vítima completar 18 anos, ou seja, ela tem até os 38 anos para denunciar. No seu caso, porém, Will descobriu que o abusado já havia morrido.

Sem a Justiça, Will decidiu procurar a terapia para lidar melhor com o assunto. Além disso, passou a pesquisar na internet sobre espaços que reunissem pessoas que passaram pelo que ele passou. Foi assim que descobriu o Memórias Masculinas. Além dos materiais fornecidos pela ONG e o suporte psicológico, Will diz que o que mais fez a diferença para ele foram os relatos compartilhados pelos demais sobreviventes. “A sensação é não estar só no mundo”.

Já Sandra conta que o filho vem se recuperando aos poucos, com apoio de ajuda psicológica e psiquiátrica. Na esfera judicial, o Ministério Público Estadual ofertou denúncia contra o homem, que virou réu pelo crime de estupro de vulnerável. A primeira audiência do caso está marcada para o próximo dia 10 de maio.

"Para quem sofreu a situação de violência, uma coisa que demorei a entender é que não é culpa de quem sofreu. Por mais que se pense que aconteceu alguma coisa que leve a crer que você possa ter feito algo, não é culpa de quem sofreu a violência. O culpado é quem provocou a violência. E, independente de quem é a culpa, a gente consegue ficar bem. [...] Falar ajuda. Tira um peso que você nem sabia que estava ali. [...] Se a gente pedir ajudar, a gente consegue viver melhor" Will, sobrevivente de abuso sexual na infância

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