Logo O POVO+
Dia do martírio da Menina Benigna virou símbolo contra o feminicídio
Reportagem

Dia do martírio da Menina Benigna virou símbolo contra o feminicídio

Benigna Cardoso lutou para sobreviver e resistiu ao assédio de Raul Alves. Os dois estudavam numa escola improvida no distrito de Inhumas, em Santana do Cariri
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Altar em homenagam à Menina Benigna no Crato (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Altar em homenagam à Menina Benigna no Crato

A data do assassinato e, agora, da beatificação de Benigna Cardoso da Silva, 24 de outubro, passou a ser também o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. A menina de 13 anos de idade, morta há 81 anos pelo adolescente Raul Alves, 17, em Inhumas, zona rural de Santana do Cariri, virou também marco contra o machismo atávico reinante no Ceará.

Atacada covardemente, numa emboscada próximo ao poço onde buscava água, Benigna Cardoso resistiu o quanto conseguiu ao assédio sexual até ser executada por Raul Alves com três golpes de facão. A morte brutal sensibilizou o então deputado estadual Nizo Costa (PSB) que, em 2019, conseguiu aprovar lei para dar visibilidade às discussões sobre prevenção ao feminicídio.

Natural de Cariús, município próximo a Santana do Cariri, o hoje petista disse ao O POVO que a Lei 162/19 é mais um reforço no combate ao machismo, ao crime contra a mulher e ao enfrentamento da violência de gênero.

“Não podemos esquecer que o feminicídio é a última instância da brutalidade. Até chegar ao óbito de fato, essa mulher já deveria vir sofrendo outros tipos de agressões. Esperamos que em um futuro bem recente essa violência seja extinta”, afirma Nizo Costa.

De acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), até setembro deste ano ocorreram 21 feminicídios no Ceará. Ano passado, foram 31 mulheres executadas. Em boa parte dos casos, os assassinos eram ex-companheiros que não aceitaram o fim do relacionamento.

No processo de beatificação e nos sermões católicos para exaltar a santidade de Benigna, a narrativa construída ressalta a menina que guardou até a morte a castidade. Para o padre João Evangelista da Costa, 34, a hora do embate da adolescente contra o assassino não pode ser lido, em 1941, como uma reação ao machismo e um ato ligado ao instinto de sobrevivência.

“Porque ela não tinha consciência disso. Se fosse um ato contra o machismo ela teria consciência do que seria machismo, educação (para isso) e uma formação. Isso não existiu. A sua defesa era por causa da fé”, sustenta o vigário paroquial de Santana do Cariri e coordenador da Missão Benigna.

O sacerdote, no entanto, fala em ressignificação do sofrimento de Benigna. “Nós podemos pegar esse ato e, hoje, interpretar também como uma luta de respeito à condição da mulher. Essa interpretação somos nós que podemos fazer hoje, torná-la um símbolo da luta contra esse tipo de comportamento. Nunca na cabeça dela tinha essa consciência”.

Para o padre não se pode “julgar o passado com os olhos do presente. Eu faço outra pergunta: O maior instinto que nós temos é o da sobrevivência. O que era mais fácil? Ceder (ao assédio sexual) para continuar viva”, interpreta o vigário de Santana do Cariri.

O padre João Evangelista diz ainda que Benigna Cardoso teria a “consciência da fé. Porque existe um mandamento de não pecar contra a castidade”. O religioso conta que no depoimento de Raul Alves à polícia, ele “atesta que ela lutou virtuosamente, não apenas pela sobrevivência. Isso faz parte do pensamento da época, da formação, tem a consciência do pecado, da ofensa a Deus a partir daquele ato”.

A ponderação do vigário é que a adolescente “não teria toda a consciência do pecado, da ofensa a Deus a partir daquele ato. Não teria a consciência teológica como esse discurso elaborado que faço. Isso é a coisa menos importante, o gesto dela diz daquilo que ela acreditava”, conclui João Evangelista.

Benigna Cardoso, segundo o processo de beatificação, procurou o padre Christiano Coelho — vigário de Santana do Cariri na época do assassinato — para falar sobre o assédio que vinha sofrendo por parte de Raul. O padre a aconselhou a vir morar na sede do município com outros familiares. No entanto, a menina não se mudou porque cuidava de duas senhoras idosas e do irmão mais novo.

Prevenção contra o crime começa na família e na escola

Para o ex-deputado e empresário Nizo Costa (PT), 48 anos, uma das saídas contra o machismo é trabalhar no meio familiar e na escola a desnaturalização da violência contra mulheres. Seria uma barreira contra o histórico de agressões e, principalmente, auxílio à prevenção contra o último estágio da brutalidade que é o feminicídio.

 

O POVO – Como o senhor chegou à história de Benigna?

Nizo Costa – Sou de Cariús, próximo a Santana do Cariri, já conhecia e sabia desse grande exemplo de fé e devoção que os fiéis davam à Menina Benigna. Muito mais do que um acontecimento local é uma tradição religiosa do nosso povo e como tal precisa ser valorizada e representada. Já frequentava a festa, a procissão da Menina Benigna e queria levar para a Assembleia Legislativa essa representatividade.

O POVO – Por que escolher a Benigna já que existem vários casos de homicídios de mulheres (hoje chamado de feminicídio)?

Nizo Costa – Todos os casos de feminicídio merecem repúdio, lamentação e nossa indignação. O caso da Menina Benigna foi escolhido para representar a nossa indignação a qualquer tipo de violência contra o gênero feminino. Foi por isso, que através do nosso projeto de lei 162/19, que institui o dia de 24 de outubro, data da morte de Benigna, como Dia Estadual de Combate ao Feminicídio no Ceará. Escolher a Menina Benigna foi uma forma de dar visibilidade a tradição religiosa que já existia há décadas na região e no país. A romaria de Benigna atrai centenas de fiéis não apenas do Ceará.

O POVO – O fato de existir a lei desde 2019 já surtiu algum impacto na prevenção contra o assassinato de mulheres?

Nizo Costa – Vai levar algum tempo, como todo processo social, para que seja assimilado. A ideia da nossa lei foi dar visibilidade a esse combate. Não que nos outros dias não precisamos combater a violência de gênero. É preciso estar vigilante e atento todos os dias, todos os segundos, educar a sociedade para que denuncie, ensinar as nossas crianças para não naturalizar comportamentos violentos desde a escola. Sinto que a nossa lei chega para contribuir com uma série dessas ações para que futuramente, possamos colher os frutos.

 

Especial

A reportagem especial "Santificados", de 2019, debruçou-se sobre 13 "santos do povo cearense". Menina Benigna foi uma das homenagemadas

O que você achou desse conteúdo?