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Passeio pelo Jacarecanga: a memória esquecida em meio à falta de conservação
Reportagem

Passeio pelo Jacarecanga: a memória esquecida em meio à falta de conservação

| Patrimônio | Moradores e especialistas refletem sobre a conservação do patrimônio do bairro Jacarecanga e a importância da memória para identidade dos fortalezenses
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FORTALEZA, CEARA, BRASIL, 14.12.22: Monumento Gustavo Barroso, Praça do Liceu no Bairro Jacarecanga. (Aurelio Alves/ O POVO) (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES FORTALEZA, CEARA, BRASIL, 14.12.22: Monumento Gustavo Barroso, Praça do Liceu no Bairro Jacarecanga. (Aurelio Alves/ O POVO)

O centro da Praça Gustavo Barroso, no bairro Jacarecanga, abriga monumento em homenagem ao professor, advogado e romancista fortalezense, conhecido por ter sido o primeiro diretor do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro (RJ). “Aqui se guardam os restos mortais de Gustavo Barroso”, diz a placa fixada à estátua. Entre pichações e reclamações dos moradores sobre o abandono, a obra histórica permanece naquele espaço desde que foi instalada, em 1962.

Mesmo hoje, historiadores e moradores locais refletem sobre o monumento e a figura do romancista, reconhecido como uma personalidade pública por construir uma rede de sociabilidade entre diversos intelectuais de todo o Brasil e outros países, na América Latina e em Portugal.

Considerando a atuação política e profissional do homenageado, Pedro Paes, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM), deu detalhes sobre a presença da obra na Praça e o papel na história cearense.

“Apesar da influência na formação intelectual do Brasil, Barroso representa a figura de um controverso ícone nacional, devido ao envolvimento em ações políticas de extrema-direita da Ação Integralista Brasileira (AIB) e por causa da participação em caravanas em prol da difusão das ideias fascistas no País”, relata o professor.

Sobre o estado da Praça e do monumento, Ana Maia (nome fictício), 62, aposentada e moradora do Jacarecanga, queixa-se da inexistência de projetos de conversação dos equipamentos no bairro. “Essa área costumava ser a mais tradicional de Fortaleza. Muitos políticos e intelectuais moraram aqui. Eu sou dessa época", afirma.

Ela destaca ainda o descuido com as construções mais tradicionais, como o Liceu do Ceará e os casarões, por parte dos gestores da Cidade. "Não há cuidado com a praça, muito menos com a estátua. Ainda bem que só picharam e não fizeram mais nada com o monumento. Se a gente preservar esse ambiente, nós atrairemos mais pessoas. Fortaleza não cuida da memória, parece que não liga muito para o passado”, avalia.

“Hoje são poucos os sobrados que ainda resistem na área. Quase nada lembra a época em que a Praça Gustavo Barroso não passava de um areal usado como campo de futebol pela garotada do local, nas décadas de 20/30. Pouco mais de 60 anos que parecem séculos frente a tristemente famosa curta memória cearense”, relata a edição publicada há mais de 28 anos, assinada por Estelita Rodrigues.

O POVO de 9 de outubro de 1994: Casarões no Jacarecanga
O POVO de 9 de outubro de 1994: Casarões no Jacarecanga (Foto: O POVO.Doc)

Quem também lamenta a ausência da preservação das construções é o empresário Silvestre Neto, 64. “A gestão municipal realiza limpezas paliativas, mas o serviço não é eficaz. A pichação na estátua é muito triste. Ninguém deveria danificar um monumento. Eu moro aqui há 50 anos. A praça sempre foi sofrida, nunca teve uma reforma e manutenção eficaz”, conta.

Questionado sobre o estado do equipamento, a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger) informou que a limpeza é feita de segunda a sexta-feira, por uma equipe destacada para realizar a varrição em toda a extensão do terreno. “Nos próximos dias, a Secretaria Executiva Regional 12 realizará uma visita técnica ao local para levantar outros serviços necessários para atender a demanda do espaço público”, relatou a pasta por meio de nota.

O empresário Silvestre também frisou que se trata de um bairro histórico, com grande herança cultural, social e arquitetônica. "Os anos vivendo aqui me trouxeram grandes histórias e encontros. Eu conheci a família dos Philomeno Gomes, Alencar e Macedo, mas hoje essas famílias se distanciaram. Essa praça não deveria estar assim, ela é história”, cita.

Apagamento histórico

As queixas dos moradores entram em consenso com a avaliação do historiador Sérgio Falcão, editor do O POVO.Doc. “A trajetória de Fortaleza passa pelo contínuo apagamento histórico. É lugar-comum apontar o poder público como intencionalmente omisso, incompetente ou favorável à voracidade imobiliária da não preservação do patrimônio histórico.”

Somado a isso, Falcão critica a falta de planejamento e o baixo orçamento destinado à Cultura e ao patrimônio público, nos âmbitos federal, estadual e municipal. “O poder público tem uma parcela de responsabilidade ao conferir às secretarias de Cultura, irrisório orçamento e não definir amplo e efetivo plano de preservação e valorização do patrimônio histórico”.

Questionado sobre a falta de interesse na conservação do patrimônio através dos bens materiais e imateriais, o pesquisador de memória histórica e cultura negra do Ceará, Hilário Ferreira, explica que o comportamento de esquecimento do passado se naturalizou: “A preservação da história em Fortaleza é limitada e possui hierarquias”, disse.

“Quando se tem alguma pequena preservação do patrimônio histórico, isso vem em uma hierarquia de prioridades. Por causa de um racismo estrutural, a produção dos negros foi preteridas pela dos brancos. Preservaram muito pouco da cultura produzida pela elite da época, menos ainda do que os negros criaram”, pondera.

Para Hilário, um dos elementos que contribuiu para a não educação histórica é a não obrigatoriedade da disciplina na grade curricular das escolas. "Se você passa seis meses fora de Fortaleza, quando volta algo histórico foi perdido, derrubado ou mudado. Não há preservação da nossa identidade”, avalia.

Praça não é tombada

Questionada sobre a manutenção da obra, a Prefeitura de Fortaleza, por parte da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) informou que a Praça Gustavo Barroso não é um bem tombado e, por esta razão, não existe uma participação efetiva da pasta para a realização de ações no local.

“A Secultfor está realizando trabalho minucioso de catalogação das esculturas urbanas da capital cearense. Após esse estudo, serão dadas as diretrizes para recuperação das obras”, informou a pasta, sem repassar informações sobre datas.

Ainda sobre a manutenção da estrutura da Praça, a Seger informou que os equipamentos da Academia ao Ar Livre e do parquinho infantil passam por manutenção. Algumas peças foram removidas para reparo e serão reinstaladas em breve. O uso dos aparelhos que já tiveram a manutenção concluída está liberado para a população.

Quem foi Gustavo Barroso

Pesquisador da preservação do patrimônio cultural cearense desde o mestrado em História, o doutorando Pedro Paes, explicou quem foi Gustavo e quais podem ser os efeitos da homenagem ao advogado, em praça pública.

Gustavo Adolfo Luís Guilherme Dodt da Cunha Barroso foi um professor, ensaísta e romancista, nascido em Fortaleza, em 29 de dezembro de 1888. Ele faleceu no Rio de Janeiro, em 3 de dezembro de 1959.

Imagem do advogado fortalezense Gustavo Barroso
Imagem do advogado fortalezense Gustavo Barroso (Foto: Museu Histórico Nacional)

O POVO - Quem foi Gustavo Barroso?

Pedro Paes - Foi uma personalidade que atuou em diversos campos da política nacional na primeira metade do século XX, contribuindo, principalmente, para a política patrimonial através de sua posição no Museu Histórico Nacional e para a historiografia brasileira através da publicação de livros e da colaboração com institutos de história e geografia espalhados pelo país.

Entre 1932 e 1937, envolveu-se na Ação Integralista, chegando a participar de diversas caravanas em prol da difusão das ideias fascistas e a publicar livros que desenvolvia o pensamento antissemita em território brasileiro.

Ele replicou a ideologia racista europeia à realidade tropical. O exemplo disso foi que, em 1936, Gustavo Barroso traduziu para o português o livro que se tornaria o manual do holocausto, Os protocolos dos sábios de Sião.

O POVO - Por que ele foi reconhecido como uma personalidade pública?

Pedro Paes - Por construir uma rede de sociabilidade entre diversos intelectuais do Brasil, América Latina e Portugal, Gustavo Barroso pode ser considerado uma personalidade pública. Antes mesmo antes de atingir essa amplitude nacional, o cearense já transitava por diversos espaços políticos, como o Liceu do Ceará e a Faculdade de Direito.

Em 1914, tomou posse como Secretário Estadual dos Negócios do Interior e da Justiça do
governo de Liberato Barroso. Em 1915, foi eleito Deputado Federal do Ceará. A partir daí, Gustavo Barroso assumiu outras funções, como diretor do Museu Histórico Nacional, em 1922.

O POVO - Quais discussões podem ser feitas sobre a homenagem ao Gustavo em praça pública naquela época?

Pedro Paes - Gustavo Barroso conquistou uma posição de destaque no cenário político e intelectual brasileiro. Visto isso, diversas instituições cearenses, após a morte dele (em 1959) buscaram homenageá-lo. Veículos de imprensa e agremiações acadêmicas, como a Academia Cearense de Letras e o Instituto do Ceará, propuseram que praças, ruas ou avenidas passassem a se chamar Gustavo Barroso.

Até que em 1962, ano da comemoração do cinquentenário da publicação de Terra de Sol, uma estátua em bronze de Gustavo Barroso foi inaugurada e a antiga Praça Fernandes Vieira passou a homenagear o antigo diretor do Museu Histórico Nacional.

Nesse momento, a Universidade Federal do Ceará publicou uma nova edição do livro que anunciou o nome de Barroso no contexto das letras brasileiras. A Casa da Moeda lançou uma moeda comemorativa em homenagem ao advogado. Posteriormente, outras homenagens foram realizadas, como a deposição dos restos mortais de Barroso na base da estátua inaugurada na Praça.

O POVO - Quais discussões podemos ter, no presente, sobre a estátua e ao homenageado?

Pedro Paes - Depois de mais de 60 anos, depois de tantas transformações políticas e sociais que ocorreram no país, a estátua de Gustavo Barroso ainda está no mesmo local. Em uma praça que poucos reconhecem como Praça Gustavo Barroso, mas simplesmente como a pracinha do Liceu. Cotidianamente, aquele espaço foi reinventado. Outros significados foram atribuídos.

Entretanto, não podemos perder de vista que homenagear essa personalidade em praça pública ainda hoje é contribuir para um discurso que ainda é forte. Um discurso baseado no racismo e no autoritarismo. Não à toa, por exemplo, que a juventude de grupos remanescentes do integralismo ainda continue frequentando a praça com seus uniformes selados pela letra sigma e entoando o anauê quando se deparam com o velho pedaço de bronze da pracinha do Liceu.

O POVO - O que sua pesquisa tem a dizer sobre a vandalização do monumento e a instalação dele em uma praça pública?

Pedro Paes - Quando a estátua foi inaugurada, o desejo era homenagear uma personalidade cearense que teve um destaque intelectual no cenário nacional. Naquele momento, a participação de Gustavo na Ação Integralista Brasileira e sua ligação com ideias antissemitas foram enfrentadas com suavização.

Os indivíduos que defenderam a anexação da estátua em praça pública, como Raimundo Girão, afirmava que a associação aos movimentos de extrema-direita se caracterizavam como um culto cego ao regime fascista, mas o resto das obras do advogado eram frutos de erudição.

Atualmente, vozes contrárias ao pensamento autoritário proveniente das ideias de Barroso estão se fazendo ouvir e estão questionando a legitimidade dessa personalidade tão problemática e polêmica. É importante refletir sobre o que seria vandalismo já que esse vocábulo faz parte de uma linguagem oficial.

Essa linguagem oficial procura muitas vezes deslegitimar movimentos políticos que buscam questionar as permanências das memórias de um passado doloroso, responsáveis por causar incômodos a determinadas comunidades que sofreram com o racismo e com a segregação.

Assim, podemos compreender que o direito à cidade não está apenas focado na questão de acessibilidade aos espaços, mas, também, na busca pelo direito à memória.

O POVO - O que se debate hoje sobre preservar ou não a estátua de uma figura autoritária como a do Gustavo Barroso?

Pedro Paes - Por um lado há movimentos, principalmente ligados a movimentos estudantis e sociais, que desejam não só a retirada da estátua de Gustavo Barroso da praça que recebe o seu nome, mas defendem o erguimento de outra estátua relacionada ao movimento progressista. Entre os nomes mais citados está o de Frei Tito de Alencar, religioso cearense que resistiu ao regime militar posto em 1964 através de um golpe de estado.

Por outro lado, os resquícios do movimento integralista ainda defendem a inscrição do nome de Barroso em um espaço público. O que fica evidente nesse debate é de como valores são modificados, mas símbolos permanecem, fazendo com que a sociedade em coletivo reflita sobre as inquietações que hoje não fazem sentido serem sacralizadas.

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