Abrir mão de uma promoção profissional, de mudar de estado, de viajar, ou abrir do casamento, de ter uma profissão no mercado formal, de se cuidar.
Será que o termo certo é "abrir mão"? E se estas escolhas, feitas de forma consciente, fossem por amor? Você faria?
Os fatos acima são reais e retratam a história de Ana Cristina Martins de Figueiredo, advogada, 51 anos, e Francisca Carla Gomes do Nascimento, manicure (quando possível), 38 anos.
As duas moradoras de Fortaleza, como milhares de outras, fazem parte da "geração sanduíche": mulheres que têm a vida pautada pelo cuidado.
Elas cuidam de seus idosos, dos seus filhos, podem cuidar também dos netos e, ainda, precisam dar conta da vida profissional, dos afazeres domésticos e de tantas outras demandas da sociedade.
Por mais que não se tenham estudos brasileiros que quantifiquem essa geração sanduíche, a mais atual Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad-C 2019), em seu suplemento "Outras Formas de Trabalho", aponta que o número de familiares que se dedicavam a cuidados de indivíduos de 60 anos ou mais já havia saltado de 3,7 milhões em 2016 para 5,1 milhões em 2019.
Nesse contexto, a região Nordeste apresenta o maior percentual de pessoas e o Ceará (11,9%) aparece em terceiro lugar na Região e em quarto do Brasil.
As principais atividades em que idosos precisam de cuidados, segundo a pesquisa, são monitorar ou fazer companhia dentro do domicílio (83,4%), auxiliar nos cuidados pessoais (74,1%) e transportar ou acompanhar para médico, exames, atividades sociais, culturais ou religiosas (61,1%).
As mulheres não só continuam sendo as que mais realizam os trabalhos de cuidado e afazeres domésticos, como esses números têm subido. No comparativo, em 2016, a taxa era de 89,9% e em 2019 já havia subido para 92,1%.
Na realidade de Ana Cristina, os cuidados com sua mãe, Edmée, 79, e seu filho Joaquim, 13, transformaram a sua rotina de compulsão no trabalho, no mundo corporativo, para a de uma empreendedora que precisa dar conta, entre suas reuniões e assessorias, das agendas de médico, escola e atividades extras.
"Vai fazer dois anos que meu pai faleceu e, desde então, minha mãe veio morar comigo. Tenho irmãos, mas eles moram em São Paulo e ela não quis sair de Fortaleza. Assim, adaptei minha casa e minha vida para acolhê-la, com suas demandas."
Porém, ela não nega que a rotina se torna, muitas vezes, cansativa, já que a idosa não aceita cuidadores profissionais e também não fica sozinha.
"Agora, retribuo cuidando deles, com todo o meu coração"Ana Cristina Figueiredo
"Não posso fazer uma viagem, um happy hour com as amigas, sem que tudo seja muito bem planejado antes. Além disso, acabo sendo secretária ao marcar e levar em médicos, cuidar se está tomando os remédios e ainda tentar fazer com que saia de casa e volte a ter vida social".
Ana lembra que em um passado não muito distante, descobriu uma leucemia e foram os pais, junto com o marido e o filho, que lhe deram amor e cuidado. "Agora, retribuo cuidando deles, com todo o meu coração."
Já na vida de Francisca Carla, a rotina mudou há oito anos, quando o seu tio Pedro, hoje com 68 anos, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), com sequelas motoras e um diagnóstico tardio de autismo.
Solteiro e sem filhos, o idoso não tinha com quem contar e a decisão de cuidar dele resultou no fim do casamento de Carla, que já tinha seu filho Rauã (atualmente com 16 anos).
Por conta da diabetes, sua mãe Maria, 69, ficou cega e também neste período nasceu o segundo filho, Carlos Gustavo, agora com 3 anos.
" Vivo para cuidar e pelo amor que sinto por eles, retribuindo o que me fizeram e fazendo pelos meus filhos"Carla do Nascimento
Com todas estas pessoas dependentes, ela abriu mão de ter emprego formal e vida social. Quando o filho mais velho pode ajudar, ela ainda complementa a renda da família - vinda apenas das aposentadorias dos idosos, no valor de um salário mínimo), ofertando o serviço de manicure na comunidade em que mora.
Questionada sobre a rotina pesada, Carla logo corta: "Não é nada, quem tem Deus na frente, não se incomoda".
"Eu abandonei minha casa, meu marido, meu emprego, para cuidar deles. Pela minha idade, poderia arrumar um emprego, mas quando eles se forem, vou ser velha para o mercado de trabalho".
E ainda complementa: "Fiz a minha escolha de vida, não saio, não me arrumo, não faço o cabelo, nada, vivo para cuidar e pelo amor que sinto por eles, retribuindo o que me fizeram e fazendo pelos meus filhos."