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Participação das mulheres no mercado de trabalho cai ao menor nível em 30 anos
Reportagem Seriada

Participação das mulheres no mercado de trabalho cai ao menor nível em 30 anos

Encabeçando as estatísticas de desemprego, de redução na renda, aumento dos afazeres domésticos e cuidado com os filhos, as mulheres são as mais impactadas pela pandemia. Neste episódio da série de reportagem "Pandemia e a carreira da mulheres", O POVO revela os fatores que estão por trás desse cenário e os efeitos disso no curto, médio e longo prazo
Episódio 1

Participação das mulheres no mercado de trabalho cai ao menor nível em 30 anos

Encabeçando as estatísticas de desemprego, de redução na renda, aumento dos afazeres domésticos e cuidado com os filhos, as mulheres são as mais impactadas pela pandemia. Neste episódio da série de reportagem "Pandemia e a carreira da mulheres", O POVO revela os fatores que estão por trás desse cenário e os efeitos disso no curto, médio e longo prazo
Episódio 1
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Esta reportagem, de autoria de Irna Cavalcante, recebeu o primeiro lugar no Prêmio Gandhi de Jornalismo na categoria Conteúdo Online. A premiação ocorreu no dia 7 de dezembro de 2021.

 

A pandemia tem cobrado um preço alto em vidas, em empregos e em redução de bem-estar das pessoas. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em maio, mostraram ainda que a piora no mercado de trabalho tem impactado as mulheres com muito mais força. No primeiro trimestre deste ano, por exemplo, a taxa de desocupação entre elas atingiu 17,9%, um recorde na série histórica, enquanto entre os homens esse percentual ficou em 12,2%. O que fez com que a participação das mulheres no mercado de trabalho chegasse ao nível mais baixo em 30 anos (43,3%). E mais que isso: ao invés de apenas migrarem para o desemprego, é maior a tendência de inatividade. Ou seja, quando elas simplesmente desistem de procurar uma recolocação no mercado.

Foi o que ocorreu com Érica Araújo, de 29 anos, que já está há três anos desempregada. Com a pandemia, e as escolas sem funcionar, ela não tem com quem deixar os cinco filhos, com idades entre 1 ano e 11 anos, enquanto o marido trabalha. Ele também estava desempregado e conseguiu um emprego em janeiro deste ano.

Para ajudar nas contas de casa, o único trabalho que ela encontrou foi um bico como cuidadora de uma pessoa com deficiência, que mora na mesma rua que ela, no bairro da Sabiaguaba. Ia até lá quatro vezes ao dia para ajudar a dar a refeição e recebia em troca R$ 300 mensais. Mas mesmo disso, teve que abrir mão. É que ela vai se mudar com a família para um bairro mais próximo do trabalho do marido, que fica em Itaitinga, na tentativa de economizar em aluguel e passagem de ônibus.

“E eu não vou ter como ficar indo e vindo, porque eu não tenho com quem deixar as crianças. E não é justo eu deixar essa responsabilidade para minha filha mais velha que tem apenas 11 anos. Eu não quero que elas tenham o mesmo destino que eu, que comecei a trabalhar aos oito anos”.

Érica Lima Araújo, de 29 anos. Ela não tem emprego fixo há três anos e tem sobrevivido de bicos desde então. (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Érica Lima Araújo, de 29 anos. Ela não tem emprego fixo há três anos e tem sobrevivido de bicos desde então.

Hoje, Érica, embora tenha muita vontade de voltar a trabalhar e ter seu próprio dinheiro, já não tem qualquer perspectiva de voltar ao mercado de trabalho. “Se já estava difícil conseguir emprego antes da pandemia, imagina agora com as empresas quebradas e eu estou há tanto tempo parada."

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Situações como a de Érica têm se tornado mais comuns na pandemia. Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base nos dados da PNAD Contínua do IBGE, mostra que o percentual de mulheres que se tornaram inativas aumentou de 7,6%, na transição entre o primeiro e segundo semestre de 2019, para 11,8%, em igual período de 2020. Alta de 4,2 pontos percentuais. Usando a mesma base de comparação, o índice de mulheres que migraram para o desemprego subiu de 3,2% para 3,7%.

Entre os homens, a transição para inatividade subiu de 4,8%, em 2019, para 7,8%, no ano passado. E o desemprego de 3,5% para 3,9%.

A professora Joana Costa, uma das autoras do estudo, explica que, mesmo antes da pandemia, as mulheres já possuíam uma maior chance de mudar da situação de ocupada para inativa e também uma menor chance de entrar na condição de ocupada. Porém, a crise intensificou ainda mais essas probabilidades.

É um cenário que não foi visto nem durante a recessão econômica de 2015-2016. Ao fazer uma comparação com os dados dos dois períodos, o estudo constatou que embora o desemprego tenha acelerado nas duas crises, na primeira, não houve uma migração tão intensa para a inatividade.

Ela explica que um conjunto de fatores contribui para isso. Os setores em que as mulheres estão empregadas em maior número, como serviços domésticos, no comércio, na hotelaria, foram os mais afetados pela crise, o que provoca uma queda na oferta de trabalho. Mas é preciso considerar também a sobrecarga de trabalho que, historicamente, ainda recai mais sobre elas, como os afazeres domésticos e a responsabilidade de cuidar dos filhos, que dificultam a permanência delas no mercado ou mesmo de poderem sair para procurar emprego em meio à pandemia.

" Se antes mesmo dessa crise, já se perguntava em entrevista de emprego se a mulher tem com quem deixar os filhos, o que não ocorria entre os homens, com a pandemia, isso se agrava" Joana Costa, autora do estudo sobre mulheres e mercado de trabalho do Ipea

“As próprias características desta crise, que não é só econômica, é também sanitária, acabam contribuindo porque determinam o isolamento social, o fechamento de creches, escolas, recomendam reduzir o contato. Quem não pode fazer o home office fica em uma situação mais complicada. Se antes mesmo dessa crise, já se perguntava em entrevista de emprego se a mulher tem com quem deixar os filhos, o que não ocorria entre os homens, com a pandemia, isso se agrava”, pontua Joana.

No Ceará, a diferença de gênero tanto na remuneração média, como na participação delas nos setores, são ainda maiores do que na média brasileira. Levantamento feito pelo O POVO, com base na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2019, o dado oficial mais recente sobre o mercado de trabalho formal, mostra que as mulheres no Ceará recebem, em média, R$ 2.354,91. É menos do que a média salarial dos homens cearenses, R$ 2.550,18, e quase R$ 550 a menos do que a média de salários recebida por mulheres no restante do País.

E se no Ceará, em setores como o da Construção Civil, elas representam apenas 8,44% dos trabalhadores com carteira assinada, no Brasil, são 9,84%.

" É o efeito cicatriz, a pessoa fica marcada pelo tempo que ela ficou sem trabalhar. E isso é uma bola de neve, porque também leva essas pessoas a aceitarem empregos em condições mais precarizadas." Joana Costa, ao abordar o impacto do desemprego entre as mulheres

O prolongamento da pandemia preocupa também quando se observa o cenário em um horizonte de tempo mais amplo. Isso porque assim como a pandemia escancarou ainda mais as desigualdades no País, a perspectiva de recuperação da economia também será desigual, sobretudo, em função do que a pesquisadora Joana Costa chama de “efeito cicatriz” para os segmentos mais vulneráveis da sociedade: mulheres, negros e os jovens.

“Quanto mais tempo essas pessoas permanecerem fora do trabalho, mais difícil é a reinserção delas no mercado de trabalho. É o efeito cicatriz, a pessoa fica marcada pelo tempo que ela ficou sem trabalhar. E isso é uma bola de neve, porque também leva essas pessoas a aceitarem empregos em condições mais precarizadas”, afirma a professora Joana Costa.

 

 

Na busca por se recolocar no mercado

 

Sarah Muniz, professora, também impactada pela pandemia com a sobrecarga que recaiu sobre as mulheres.(Foto: ARQUIVO PESSOAL)
Foto: ARQUIVO PESSOAL Sarah Muniz, professora, também impactada pela pandemia com a sobrecarga que recaiu sobre as mulheres.

Foi a pressão sobre as contas e a falta de vagas na sua área de formação, que levaram a professora Sarah Muniz, de 25 anos, a aceitar o cargo de supervisora de vendas em uma loja de veículos, após quase seis meses desempregada. Lá, ela fazia de tudo um pouco: atendimento ao público, venda de peças, contabilidade da loja, administrativo, contagem de estoque. “Não era na minha área, mas eu aceitei porque não conseguia outra coisa.”

O emprego durou apenas cinco meses, porque com o lockdown e a queda no movimento, o dono decidiu assumir ele mesmo essas funções, na tentativa de reduzir custos. O baque, inclusive emocional, foi grande. “Chorei muito porque estava contando com aquele dinheiro, fiz todo um planejamento e fiquei sem chão. E foi um período bem complicado porque a minha mãe bancou as contas neste período, mas desfalcou porque a renda dela é mais para o tratamento de saúde que ela faz.”

Após várias tentativas, em março deste ano, ela conseguiu um novo emprego na sua área em uma escola em Pacajus. A dinâmica de trabalho é diferente da que estava acostumada antes da pandemia: agora, além da aula presencial, ela dá aulas de forma remota, precisou se adaptar às novas tecnologias, à necessidade de buscar novas formas de engajar alunos no ensino híbrido, mas vem se esforçando para recuperar o tempo perdido.

“É bem diferente. Fora que com essa pandemia, com tudo o que está acontecendo, muitos alunos estão sofrendo com ansiedade, depressão, então a gente, muitas vezes, precisa deixar a aula de português de lado e abordar mais questões socioemocionais para ajudá-los. A gente acaba sendo não só educador, mas também um pouco amigo, psicólogo, porque não é fácil para ninguém.”

 

 

Por trás da pauta

Por Irna Cavalcante (*)

 

Na foto Irna Cavalcante, Jornalista(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Na foto Irna Cavalcante, Jornalista

É muito preocupante assistir aos efeitos da pandemia sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho: não só pela redução de espaços, mas para a gravidade e maior vulnerabilidade a que estão expostas. Porque, apesar de serem maioria entre a população com idade de trabalhar, são elas que estão sofrendo mais com desemprego, que estão nos empregos mais precários, instáveis, de menor remuneração, e as que têm sob sua responsabilidade uma maior quantidade de vidas a cuidar.

É uma conta que não fecha e uma corrida em que, historicamente, desde a largada, as mulheres já começam em desvantagem, como bem explicitam as especialistas ouvidas nesta série de reportagens. Principalmente, se observada a questão sob a ótica da raça e da renda.

Produzir esse material veio junto com uma série de sentimentos. O primeiro é de que é urgente e necessário jogarmos cada vez mais luz sobre essas questões. Mas também prevalece o incômodo de saber que tudo isso que está acontecendo não é algo pontual ou temporário.  

O Brasil é grande, diverso, desigual, mas é muito difícil, enquanto mulher, mãe ou profissional não se reconhecer ou conhecer alguém que esteja passando por algumas das situações vivenciadas pela Érica, pela Kaila, Sarah ou Aliciane e tantas mais.

Eu mesma, apesar de desfrutar de muitos privilégios, como o de não estar com a renda sob ameaça e dividir de fato as tarefas de casa e do cuidado dos filhos com meu marido, em diversos momentos, me senti nessa pandemia, na obrigação de dar conta em todas as frentes, de saber que estou indo até além do que posso e, ainda assim, terminar o dia, com a sensação de que fiquei devendo algo. Mas a culpa é das piores armadilhas a se cair.

Embora a estrutura seja viciada, que nos tenha sido ensinado desta forma e que para muitas mulheres isso não seja uma opção, não é natural e nem justa essa organização do trabalho. Inclusive, o valor que se dá ao trabalho que não é remunerado. A sociedade precisa, o quanto antes, rever isso, para o bem das mulheres, das próximas gerações e da economia.

 (*) Irna Cavalcante é jornalista O POVO, mãe de quatro filhos

 

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