Quando um réu está foragido, é comum ser mencionado no processo que ele está "em local incerto e não sabido". No caso do empresário cearense Alexander Diógenes Ferreira Gomes, de 59 anos, pode-se afirmar que sua condição de foragido da Justiça brasileira é sui generis. Seu mandado de prisão preventiva foi renovado no dia 11 de abril deste ano, sua "fuga" já dura 20 anos, seu paradeiro não é desconhecido pelas autoridades e, apesar disso, está em liberdade, bem longe do Brasil. Vive na Espanha. Já teria dupla nacionalidade há anos.
O ex-doleiro chegou a ter 14 condenações abertas na Justiça Federal no Ceará. Originalmente, foi sentenciado a mais de 350 anos, por penas diversas, relacionadas principalmente a crimes financeiros, de movimentações irregulares que teriam alcançado R$ 2 bilhões (valores estimados, a partir de rastreamentos da Receita Federal que constam nos autos processuais). As condenações foram revisadas em instâncias superiores e fixadas em 315 anos. Quando a soma das penas de alguém ultrapassa 40 anos, a lei brasileira determina que sejam unificadas.
O tempo correu duas décadas e quase todos os processos prescreveram, "caducaram", e essa dívida com a Justiça brasileira teve redução drástica. Alex, como é conhecido, hoje tem 11 anos e 4 meses de sentença a cumprir, dos dois processos de execução penal que sobraram "vivos" no histórico.
As 14 sentenças apontaram sempre crimes relacionados a lavagem de dinheiro, evasão de divisas, "caixa dois", associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documentos ou corrupção ativa. Os primeiros ilícitos identificados remontam a 1997. Suas empresas eram do ramo de câmbio, factoring, turismo e administradoras de cartões de crédito. As investigações apontaram que teriam sido feitas remessas milionárias para outros países, com empresas (descritas como de fachada) em paraísos fiscais, sem autorização do Banco Central ou aviso ao fisco.
No último dia 22 de agosto, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou habeas corpus apresentado pela defesa de Alex. Foi mais uma tentativa de livrá-lo da ordem de prisão vigente. A estratégia da revisão criminal, acionada nas cortes superiores brasileiras, estaria sendo a de questionar a pena-base dos casos, com a possível retirada de uma das agravantes. Recursos semelhantes já teriam sido apresentados no Tribunal Regional Federal (TRF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Os dois processos ainda ativos são relacionados ao crime de lavagem de dinheiro. O "penúltimo" processo teve sentença de 6 anos em regime semiaberto; o "último" tem pena remanescente de 5 anos e 4 meses em regime fechado, "com prescrição executória em relação a vários crimes" — ou seja, essa punição específica já sofreu redução parcial. O mandado de prisão no Brasil foi atualizado em abril, pela 12ª Vara Federal no Ceará, porque expirou uma condenação anterior. Está validado até 21 de novembro de 2029, como consta no Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP).
A análise feita por uma das fontes ouvidas pelo O POVO é a de que se os magistrados tivessem acatado essa revisão da agravante, a pena original teria sido reduzida e a sentença de 5 anos e 4 meses cairia. "Restaria somente a condenação de 6 anos no semiaberto. Assim, ele (Alex) poderia até ficar no Brasil tornozelado (sob uso de tornozeleira eletrônica), sem estar diretamente preso em cela", projetou.
Alex só esteve preso no Brasil na fase de inquérito, em fevereiro de 2002, quando ainda era investigado pela Polícia Federal, não enquanto condenado. Na Espanha, permaneceu 10 meses detido, entre 2006 e 2007. Usava identidade falsa. Foi libertado pela Justiça espanhola em abril de 2007. O governo brasileiro tentou trazer Alex de volta para cumprir pena(s). Chegou a apresentar três pedidos de extradição contra o empresário, mas Governo e Corte da Espanha negaram. O primeiro processo de extradição foi em 2007, julgado e indeferido em dezembro daquele ano.
"A Justiça espanhola negou o pedido com base no Tratado de Extradição celebrado entre o Brasil e a Espanha. Conforme as autoridades espanholas, o crime de evasão de divisas (um daqueles pelos quais Alex foi condenado) não existe na Espanha; e quanto às demais condenações, já tinham sido atingidas pela prescrição, segundo as leis da Espanha. Portanto, a extradição não poderia ser concedida", explicou o procurador da República Régis Richael Primo da Silva, que tem atuado no caso pelo Ministério Público Federal (MPF) no Ceará.
Na mesma época, Alex deu entrada com os papéis para ser cidadão espanhol. Os outros dois pedidos de extradição teriam sido rejeitados porque as situações processuais eram semelhantes ao primeiro caso — negação prevista no acordo entre os dois países. Nova extradição só seria demandada pelo Brasil se o ex-doleiro voltar a ser preso. O que hoje se desenha como improvável.
Alex Ferreira Gomes tem endereço certo e sabido pelas autoridades do Brasil e da Espanha. O empresário mora em Barcelona há pelo menos 16 anos. A informação consta em peças processuais, não há sigilo no caso. O condomínio de apartamentos, de bairro classe média, é aparentemente divergente do cenário de quem teria desviado uma fortuna. O POVO opta por não divulgar a localização.
Vivendo no país do rei Filipe VI desde quando ainda era o reinado de Juan Carlos I, o ex-doleiro cearense voltou a se casar, teve filhos. Sua única restrição seria a de não poder deixar o território espanhol. "Não deixa de ser uma punição a ele não poder voltar ao país onde nasceu, mas está longe da pena que de fato foi atribuída a ele", descreve fonte.
Ao O POVO, um emissário do Itamaraty disse, por telefone, que não poderia confirmar se Alex tem de fato a segunda nacionalidade. "É de competência do outro país, não cabe essa divulgação ao governo brasileiro", resumiu, justificando-se pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que restringe a divulgação de informações pessoais. Nem quis detalhar se há documentação atualizada citando o empresário. Mensagens enviadas ao governo da Espanha, por e-mail, não foram respondidas até o fechamento desta matéria.
Carlos Augusto Oliveira de Freitas é o atual advogado de defesa do ex-doleiro Alex Ferreira Gomes. Foi quem assinou o pedido de habeas corpus do empresário junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), negado pelo ministro Cristiano Zanin em agosto último. Procurado pelo O POVO ao longo de três semanas, Freitas respondeu na última quarta-feira, 13, por aplicativo de mensagem: "Agradeço seu contato. Mas Informo que não tenho nada a acrescentar ao que já é de conhecimento público. Portanto, não tenho interesse em dar entrevista sobre esse caso".
O advogado Abdias Junio, que atuou na defesa de Alex em vários dos processos até por volta de 2014, aceitou falar sobre os casos envolvendo o ex-cliente, no que chamou de "conversa informal". De vários momentos do caso que destacou durante quase meia hora ao telefone, Abdias lembrou o episódio do sequestro envolvendo o empresário. O caso aconteceu em 16 setembro de 2002. Alex permaneceu 39 dias como refém, foi libertado após pagamento de resgate.
"No Ceará, levantou-se que Alex teria simulado o próprio sequestro, em que foi morto brutalmente um segurança dele. Isso repercutiu inclusive num julgamento no Tribunal (Regional Federal, em Recife), em que nós fomos na tribuna e dissemos que não era verdade. Se comentou na Corte que, à boca miúda, 'esse sequestro foi uma simulação', e nós fomos à tribuna, me preparei para isso, levei o inquérito do sequestro. E mostrei centenas de páginas, que ele é vítima, jamais foi investigado, jamais houve sequer indício de investigação contra ele por simulação. E depois ele desenvolveu um pânico", relembra.
Abdias afirma que nunca se encontrou com Alex na Espanha, nem tem mais contato. Teria atuado num processo relacionado a ele até 2017. "O Brasil sabe que o Alex está na Espanha e que o Alex venceu os processos de extradição, o que não é algo fácil de se conseguir", exalta. Ele chegou a auxiliar a banca do advogado espanhol Armando Fresnadillo junto às extradições requeridas pelo Brasil. Todas acabaram favoráveis à permanência de Alex em solo espanhol.
Para Abdias, o caso jurídico do empresário cearense merece estudo porque acha que foram cometidos excessos nas conduções processuais e penas aplicadas. "Poucos brasileiros tiveram condenações tão grandes. É personagem sui generis da história judicial". Num dos momentos da conversa disse assim: "Você vai divulgar isso e rememorar coisas que talvez o Alex não aprove", ao opinar sobre a relevância da reportagem.