O risco de que os mais de 300 milhões de acessos em telecomunicações de brasileiros fossem interrompidos por conta da instalação da primeira usina de dessalinização em Fortaleza chamou a atenção de todo o País nas duas últimas semanas.
E apesar das reuniões já realizadas na tentativa de solucionar a questão, que se arrasta desde 2021, o problema não deve ter uma resolução simpática a um dos lados envolvidos.
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A capital cearense possui 18 cabos submarinos de fibra óptica conectados na Praia do Futuro, do total de 552 em operação no mundo, o que a torna a segunda cidade do planeta em número e conexões (atrás apenas de Hong Kong).
A instalação dos equipamentos naquele bairro teve início há cerca de 20 anos e motivou a criação de hub tecnológico, contando com benefícios fiscais para a atração de mais empresas.
Gigantes da telecom, como Google, operam cabos conectados no Estado, facilitando a troca de informações entre os usuários brasileiros e os dados alocados nos Estados Unidos, Europa, África e Ásia. Outros players do setor aproximaram os dados e têm data centers instalados no local.
O cenário reforça os planos locais de dotar o cearense de maior conhecimento em tecnologia e fazer com que a economia local tenha impulso a partir desta área do conhecimento.
Já a dessalinização remonta interesses da década de 1990, quando o assunto tomou força entre os especialistas locais, na tentativa de enfrentar a seca que tanto apena o cearense historicamente. Inspiração para livros, as estiagens acontecem no Ceará há séculos.
A última durou 6 anos, de 2013 a 2018, e deixou o Castanhão - maior reservatório do Nordeste, com 6,7 bilhões de metros cúbicos de capacidade - em situação crítica.
A estratégia imediata da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), estatal responsável pelo fornecimento, implicou em tarifas de contingência para inibir o gasto excessivo e utilizar recursos como ponteiras de rebaixamento de lençol freático em reservatórios do Interior.
Em plena década de 2010, o Estado teve cidades com racionamento e a Capital com risco de abastecimento. Foi neste contexto que o projeto da Dessal do Ceará tomou forma, investimento e aplicação.
Dados técnicos apontaram, então, que a Praia do Futuro seria o local, dentre dez no Ceará, para a instalação da usina de dessalinização. Audiências públicas foram feitas, o edital foi lançado e o local escolhido.
Planta e ponto de captação de água, no entanto, foram projetados a 40 metros do ponto de conexão dos cabos submarinos de fibra óptica, o que deflagrou o confronto observado por todo o Brasil na última semana.
As questões de proximidade e influência sobre a operação dos cabos e dos datacenters mostraram-se equacionadas nos dois eventos realizados na Capital, mas em sentidos contrários.
O primeiro, promovido pelas operadoras, teve indicação de que a mudança do projeto seria a única saída. Já o segundo, da Federação das Indústrias do Ceará, foi encerrado com a sinalização de manutenção da planta de dessalinização no mesmo local, alterando apenas a captação da água.
Ao O POVO, Fábio Galvão, superintendente da Secretaria de Patrimônio da União, revelou que o conflito se arrasta desde 2021, quando ele recebeu das teles um parecer contrário à instalação da captação da água do mar.
Foram precisos dois anos para que 567 metros fossem estabelecidos como distância mínima entre as estruturas. Antes disso, Cagece e o Consórcio Águas de Fortaleza empreenderam uma agenda de consulta pública e audiências públicas até a publicação da licitação e início dos primeiros investimentos.
Alheio a tudo isso, hoje, a instalação da planta em terra se coloca como cerne do conflito que deve envolver mais instâncias representativas - desde o poder público estadual e federal até federações e associações empresariais - e promete mais acontecimentos nas semanas que virão.
CE pode perder centenas de milhões de dólares com usina próxima a cabos
A operação de uma usina de dessalinização a poucos metros de datacenters e cabos submarinos de fibra óptica em operação na Praia do Futuro deve derrubar as certificações internacionais de segurança que os equipamentos possuem e fazer com que Fortaleza perca centenas de milhões de dólares em investimento. O alerta é de Luiz Henrique Barbosa da Silva, presidente executivo da TelComp.
Ele afirmou que isso pode não ser observado de imediato, dado que o investimento de construção de um cabo submarino intercontinental leva anos e concentra entre US$ 200 milhões a US$ 300 milhões em investimento. Mas sinalizou que as empresas podem parar de investir nas estruturas atuais e novos investidores podem mirar em outras cidades com ambiente mais seguro para a operação.
"A gente tem 8 empresas instaladas ali em um parque tecnológico, que inclusive conta com incentivo do governo do Ceará. Elas não têm outra escolha. Já se instalaram ali. Fortaleza tem uma pérola, que já gera muito emprego no Estado e é importante para economia, e não faz sentido lógico que se instale essa usina lá", afirmou ao O POVO, destacando que os players foram atraídos pelo Estado e, agora, lidam com uma ameaça também provocada pelo governo cearense.
O presidente da TelComp conta que os datacenters contam com redundância em todos os serviços e a vibração causada pela operação e fluxo de água no local ameaçam a operação dos equipamentos de telecom instalados na Praia do Futuro. Ele disse ainda que o setor apoia "incondicionalmente a agenda de segurança hídrica do Ceará, mas, infelizmente, não dá para conviver com a estrutura" da usina.
Em caso de rompimento dos cabos, o executivo contabiliza ainda um prazo de cerca de 45 dias para a manutenção devido ao tempo de mobilização de embarcações e engenheiros aptos a fazer o reparo - como ocorreu na Bahia, em março deste ano. Silva destacou ainda que Fortaleza é considerada uma cidade segura para a operação e com mão de obra qualificada. Porém, com a usina, isso fica em xeque.
Diogo Della Torres, coordenador de infraestrutura da Conexis Brasil Digital, endossa o dito por Barbosa e alerta que a distância de 500 metros respeita a uma legislação internacional do setor, mas impede que novos cabos sejam instalados na Praia do Futuro.
"É importante frisar que esse afastamento de 500 metros vai prejudicar futuras expansões desses casos submarinos em Fortaleza que vão atender o Brasil e todos os países do continente. Há demanda para a instalação de mais cabos ainda. Há novas empresas com interesse de se instalar no local ou mesmo as existentes que querem construir novas rotas. Existe demanda de tráfego para isso", observou.
Por isso, Torres defende a mudança completa do projeto da Dessal do Ceará, como forma de garantir a expansão do setor de telecom naquela região da cidade sem qualquer empecilho futuro. Essa vai ser a demanda da Conexis com a Agência Nacional de Telecomunicação (Anatel), com a qual a entidade que representa as empresas têm interlocução na questão.
"A solução tem que ser da forma que ela tá sendo colocada agora, ou seja, realmente formar um fórum para que se coloque a discussão e obtenha uma solução que atenda a necessidade de água do Estado e preserve a esses cabos submarinos, possibilitando a sua expansão que é favorável pro Estado e é favorável para tudo nosso País", arrematou.
Dessalinização reforça segurança hídrica e garante acesso à tecnologia
A Companhia de Água e Esgoto do Ceará - ente do governo estadual responsável pelo projeto da Dessal - descarta a mudança de local da usina de dessalinização pela necessidade de grande montante de investimento para que o volume de água produzido seja direcionado para Fortaleza.
A Capital é a maior área urbana em consumo de água e importância econômica e ter a usina na cidade fortalece o abastecimento local e reduz a necessidade de direcionar volumes do Interior. O empreendimento tem R$ 3 bilhões em 30 anos.
O local foi escolhido, como explicou Neuri Freitas, presidente da Cagece, pela boa qualidade da água e pelas boas correntes marinhas que permitem a dispersão adequada dos rejeitos. A usina, aliada ao reúso de água de esgoto e à transposição das águas do Rio São Francisco, completa as principais alternativas do Ceará com estiagem.
Nos espaços de debate da última semana, ele afirmou que a Cagece já atua em áreas onde existem cabos de fibra óptica e destacou a seca enfrentada pelos cearenses na última década como justificativa para manter o projeto e destacou a alteração já feita para afastar a captação de água do mar em 500 metros dos cabos submarinos.
"Não sei se todos sabem, mas o governador (Elmano de Freitas, PT) decretou escassez na área do Médio Jaguaribe, onde tem o Castanhão e o Orós. Então, nós já estamos em um momento de alerta. Nós estamos com o El Niño muito forte e tem uma situação de preocupação para os próximos 5 anos", destacou durante a audiência pública promovida pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema).
O professor Francisco de Assis de Souza Filho, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC), endossou o apresentado por Neuri durante o debate na Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec) ao apontar que o Fortaleza 2040 já apontava a dessalinização como alternativa viável.
"Assim como a transposição do Rio São Francisco, a dessalinização é uma das alternativas de abastecimento. Surgiu de forma importante porque para ter reúso tem que ter uso. Identificamos a necessidade de a gente ampliar a questão da infraestrutura de fornecimento da cidade de Fortaleza para evitar desabastecimento", destacou.
Neuri rebateu ainda as críticas sobre a pressa para a realização do projeto, uma vez que ele disse ter iniciado a discussão para a Dessal ainda em 2015, "dentro de um plano de diversificação da matriz hídrica para não ter esses problemas de abastecimento". "Ao meu ver ele está atrasado. E se olharmos a situação atual e o previsto para os próximos anos, ele precisa de pressa sim", reiterou.
"Se tem milhares interferência com os cabos de fibra óptica no continente, essa é só mais uma. A não ser que se colocasse essa usina numa reserva ecológica, que não tem interferência nenhuma, ou levasse os cabos para lá", ironizou Francisco Teixeira, especialista em Recursos Hídricos no debate da Fiec, em apoio ao dito pelo professor da UFC e pelo presidente da Cagece.
Além de tudo, os trabalhos do cientista-chefe que embasam a decisão e, posteriormente, o desenvolvimento pelo Consórcio Águas de Fortaleza da planta em si faz com que o Ceará domine essa tecnologia que deve ser aplicada em escala semelhante pelas plantas de hidrogênio verde projetadas no Pecém.