A rua Flora Verde, onde fica a Areninha do Boréu, está em silêncio. Pessoas assustadas olham pelas venezianas e saem ligeiro das calçadas, ao sinal de algum estranho se aproximando. Os portões da Areninha, onde um adolescente de 14 anos foi morto e outros dois ficaram feridos, na segunda-feira passada (24), estavam abertos, mas ninguém brincava no local. “Estamos com medo do ontem e do amanhã”, disse um dos moradores da rua, localizada no Conjunto João Paulo II, no bairro Barroso.
As marcas de balas estão nas muretas da Areninha, nas fachadas das casas e nas grades de proteção de uma janela. No meio do fogo cruzado das facções, um treino de futebol do projeto "Menino Deus" foi interrompido por uma tragédia. Atiradores da Comunidade do Gereba chegaram ao local procurando um integrante de uma facção rival e acabaram atingindo três adolescentes de 12, 13, 14 que jogavam bola e um voluntário do projeto, de 29 anos, que era treinador do time. O adolescente de 14 anos, chamado Kristian Gean de Araújo Sousa, morreu.
“Eu estava assistindo televisão quando escutei os tiros e me joguei no chão. Só quando parou, eu olhei pela brecha da porta e vi as crianças amontoadas pulando por um portão pequeno, de passar os equipamentos da Areninha. Foi a cena mais horrível que eu já vi. Acho que nunca mais esse lugar vai ser o mesmo. Depois de ver um sofrimento daqueles, ninguém é mais o mesmo”, disse um morador da rua, com olhos marejados.
Uma mulher acompanhava o filho, na saída do velório de Kristian, quando parou rapidamente para falar com O POVO. O menino disse que estava no entorno do 'Campo do Boréu' e correu quando os tiros irromperam o barulho da alegria da partida de futebol. “Não vi como aconteceu, só vi as pessoas correndo e corri também. Quando cheguei em casa, soube que o Kristian tinha morrido. Ele era muito legal. Por que o Kristian, cara? Por que ele?”, se perguntava emocionado.
Uma comerciante que disse ser moradora do Conjunto João Paulo II há mais de 20 anos ressalta que nunca viu a região tão tensa. Ela contou ao O POVO que perguntou aos policiais militares o que estava acontecendo de verdade e quais os verdadeiros riscos que a família corria em permanecer nos arredores da Areninha. “Eles me disseram que as facções estão brigando e o Comando Vermelho (CV) não quer abrir. Não sei, sequer, se as pessoas que eles estão procurando estavam aqui nesse mesmo lugar que nós. Não sabemos o risco que estamos correndo. Eu e meus filhos também somos gente, queremos ter direitos, queremos viver em paz no Barroso, porque não temos para onde ir e não aguentamos mais viver nessa loucura”, afirmou.
Dois suspeitos do crime foram presos, na madrugada desta terça-feira. De acordo com o secretário de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), Samuel Elânio, os homens identificados como Edivanio da Silva Nascimento, 22, e Lucas Felix de Sousa, 26, tiveram participação direta no ataque. A dupla foi reconhecida por testemunhas, conforme Elânio.
Após a tentativa de chacina, o secretário da Segurança foi até o local do crime acompanhado do comandante-geral da Polícia Militar, coronel Klênio Savyo; e do delegado-geral da Polícia Civil, Márcio Gutierrez. Samuel Elânio disse ao O POVO que o governador Elmano de Freitas entrou em contato com ele, na segunda-feira, 23, e nesta terça-feira, 24, para também acompanhar os trabalhos policiais em relação ao caso.
“Esses dois que foram presos eram os principais suspeitos. Eles buscavam uma pessoa que fez uma ameaça a eles. O governador ficou satisfeito com as prisões, logo após o ocorrido. A integração entre as Forças de Segurança foi o que ajudou a prender essas duas pessoas. Outros suspeitos já foram identificados e estão sendo procuradas”, afirmou Elânio. (Com informações da repórter Jéssika Sisnando)
A busca de soluções para uma briga sem fim
A tentativa de chacina no Conjunto João Paulo II causou um "clima desconcertante" na cúpula da Segurança Pública, de acordo com um dos integrantes da Pasta. A fonte disse que há uma sensação de que uma mudança de estratégia é urgente e que há falhas que precisam ser reparadas, mas todas essas cogitações esbarram no efetivo reduzido das polícias.
"Essa área do Grande Jangurussu é problemática há muitos anos. A divisa entre o Conjunto Palmeiras e o Barroso nunca esteve em paz, desde a criação da facção Guardiões do Estado (GDE), há quase 10 anos. Esse conflito se renova por motivos diferentes, que têm a mesma raiz: a disputa pelo tráfico. Quando as coisas chegam a consequências extremas, como o assassinato de uma criança, é preciso repensar. Sem nenhuma dúvida, aquela é a área mais problemática de Fortaleza atualmente", afirmou a fonte.
Em setembro, O POVO adiantou que o conflito entre as facções Massa e Comando Vermelho (CV) estava se intensificando no Grande Jangurussu. Conforme os números da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), aconteceram 100 homicídios na Área Integrada de Segurança (AIS) 3, de janeiro a setembro deste ano, sendo disparada a mais violenta da Capital.
"A Comunidade do Gereba é dominada pela facção local Massa. Os executores eram de lá e foram até o 'Campo do Boréu' em busca de um homem ligado ao CV, que, conforme as testemunhas, estava no entorno da Areninha e correu para perto das crianças, quando percebeu os atiradores se aproximando. Pessoas totalmente inocentes pagaram com a vida por essa briga insana e sem fim do crime organizado", afirmou um oficial da PM, que conversou com O POVO, sem querer se identificar.
Tentativa de chacina no Barroso: Elmano defende que suspeitos tenham "punições exemplares"
O governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), mostrou solidariedade à família do adolescente que foi morto nessa segunda-feira, 23, durante uma tentativa de chacina na Areninha do Boréu, no bairro Barroso, em Fortaleza. Em entrevista ao O POVO News, nesta terça-feira, 24, o mandatário lamentou ocorrido e disse esperar que os suspeitos, que foram identificados e presos, recebam "punições exemplares".
Crime ocorreu durante a noite. Na ocasião, indivíduos que ocupavam um veículo passaram pelo equipamento público e efetuara,m disparos contra o local. Três adolescentes e um homem foram atingidos. Dentre eles estava Kristian Gean de Araújo Alves, de apenas 14 anos, que não resistiu e morreu.
Logo após a ocorrência, as diligências atrás dos responsáveis tiveram início. Até a noite desta terça-feira, 24, dois suspeitos haviam sido detidos, sendo eles Edivanio da Silva Nascimento, de 22 anos, com passagens por tráfico de drogas e roubo, e Lucas Felix de Sousa, 26, com passagens por roubo. Eles foram apreendidos com uma balaclava, pó branco, aparelhos celulares e o carro que teria sido usado na ação criminosa.
Cumprindo agenda em Brasília, o governador Elmano falou a respeito da ocorrência com João Paulo Biage, correspondente do O POVO na capital federal. Segundo representante estadual, os suspeitos tinham conflitos contra organizações criminosas e foram ao local atrás de um desafeto. Como não encontraram ele, atiraram contra quem estava na areninha.
"Quero me solidaliarizar com a família. É muito triste ter pessoas que banalizam a vida como foi feito ontem na areninha (...) Espero que as pessoas presas tenham efetivamente punições exemplares. Nós não podemos admitir que elas sejam liberadas, que elas sejam soltas", disse o gestor na ocasião.
Mandatário ainda citou que o Estado vai seguir fortalecendo as forças de segurança e realizando o trabalho de prevenção, atuando em parceria com órgãos como o Ministério Público e o Poder Judiciário para enfrentar as organizações criminosas e garantir que elas não tenham "impunidade".
Por fim, Elmano apontou que os índices de homicídios têm caído no Ceará, completando: "Mas eu continuo absolutamente convicto que nós temos muito ainda para fazer para garantir paz e segurança ao povo cearense".
Tentativa de chacina no Barroso: velório de vítima adolescente é marcado por comoção
O velório de Kristian Gean de Araújo Alves, 14, assassinado na tentativa de Chacina na comunidade João Paulo II, no Barroso, em Fortaleza, aconteceu um dia após o crime, na Comunidade Cristã Seara. Em clima de comoção geral da comunidade, determinados estabelecimentos colocaram uma bandeira onde estava escrita a palavra "luto".
O sepultamento foi realizado ainda na noite desta terça-feira, 24, no cemitério em Itaitinga, a 30,9 km de Fortaleza, na Região Metropolitana (RMF).
Kristian era aluno do 8º ano da Escola de Tempo Integral José Aroldo Cavalcante Mota. Professores da unidade de ensino participaram do momento de despedida do jovem. Uma professora de História, que prefere não ser identificada, proferiu palavras de apoio aos familiares na parte externa da igreja.
Na rua 10, além de pessoas próximas da vítima, membros da comunidade se espalhavam por asfalto e calçadas em tom de tristeza, com muitas pessoas chorando.
O pastor Marcelo Miranda detalhou que Kristian ia desde pequeno para a igreja, que serviu e que levou toda a família. "Todos da comunidade estamos muito tristes com a perda do Kristian, ele era um anjo que cumpriu a missão dele conduzindo todos à Igreja, participando do ministério infantil da Igreja. E de uma forma muito covarde foi assassinado", lamentou.
Ele também mencionou o professor de futebol da escolinha Meninos de Deus — projeto que busca livrar as crianças da criminalidade por meio do esporte —, que estava dando aula para Kristian e cerca de outros 60 colegas no momento do tiroteio.
Marcelo conta que o professor da escolinha levou Kristian para o hospital e que os médicos tentaram reanimá-lo 25 vezes, "mas, infelizmente, não deu”, acrescentou. “Nós estamos muito tristes. Foi morto praticando futebol, que amava”, finalizou.
Kristian Alves, 14, levou um único tiro no ombro. Os outros três jovens, entre 12, 13 e 29 anos, foram encaminhados para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Jangurussu, mas Kristian Alves não resistiu aos ferimentos e morreu no local. As outras vítimas sofreram lesões no tórax e nos pés. Elas foram transferidas para o Instituto Doutor José Frota (IJF) e não correm risco de morte.
Os moradores da comunidade do Gereba estão revoltados com a situação. Na manhã desta terça-feira, 24, a areninha ainda apresentava marcas de tiros e poças de sangue, conforme O POVO apurou.
Colaborou Jullie Silveira, da Rádio O POVO CBN
Ceará soma 275 homicídios de crianças e adolescentes em 2023
Neste ano, 275 crianças e adolescentes foram vítimas de homicídio no Ceará. São 273 casos na faixa etária de 10 a 19 anos e dois até 5 anos. Dado é de monitoramento do Comitê de Prevenção e Combate à Violência, da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece).
Ao todo, foram 2.240 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) entre 1º de janeiro e 14 de outubro de 2023. Há dois dias, outra vida foi perdida de forma violenta. Kristian Gean de Araújo Alves, 14, foi assassinado em uma tentativa de chacina na comunidade João Paulo II, no Barroso, em Fortaleza.
Levantamento tem como base dados extraídos de registros da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) e da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS).
Thiago de Holanda, sociólogo e coordenador técnico do Comitê, explica que alguns determinantes vulnerabilizam mais os jovens, que são a maioria das vítimas armadas. Ser jovem, negro, morador da periferia são alguns deles.
"Tem o determinante do território, principalmente nesse contexto de violência armada e de grupos que disputam. Embora a vítima não seja vinculada a nenhum grupos, muita gente morre por isso", analisa. Em muitos casos, o ataque é aleatório e não direcionado a um indivíduo específico, mas ao território e, principalmente, ao grupo que detém poder sobre ele.
"A prevenção se dá em camadas. Como estamos em estágio avançado de violência, a prevenção começa no local, identificar as famílias que perderam jovens assassinados. Tem jovens que estão ameaçados dentro do territórios", detalha Thiago.
"A prevenção secundária é identificar dentro do local jovens mais suscetíveis. Como os que estão fora da escola por mais tempo, em medida socioeducativas, com abuso de álcool e drogas. São casos possíveis de serem identificados e trabalhados", pormenoriza.
O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) Ceará aponta que os dados da SSPDS não trazem o recorte racial das vítimas, mas o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 indica que a maioria das mortes violentas intencionais no país foram de pessoas negras, perfazendo 76,9% dos casos.
"Precisamos reforçar políticas de educação, saúde, moradia, cultura e lazer de forma articulada e integral, bem como repensar o modelo de segurança pública", afirma Ingrid Lorena, coordenadora do núcleo de Monitoramento do Cedeca Ceará.
A falta de informações étnicos raciais das vítimas "mostra que a ausência de dados afeta a análise do contexto de violência do nosso estado como também prejudica a formulação de ações e política públicas que garantam a prevenção a violência", na avaliação de Ingrid.
Ela frisa que a segurança pública é um tipo de política que precisa ser integrada com outras áreas como saúde, educação, moradia, saneamento básico. "A gente tem hoje em nossa cidade um modelo de segurança pública que pouco dialoga com esses setores", diz.
A coordenadora do Cedeca afirma que o modelo de segurança do Estado tem um alto financiamento em policiamento ostensivo, armamento, equipamento. "Os maiores números de homicídios de crianças e adolescentes ocorrem em territórios periféricos, em bairros com baixo índice de desenvolvimento humano, pouca iluminação pública", acrescenta.