Quando, em 31 de janeiro deste ano, o homem apontado como “02” da facção criminosa que age no bairro Pirambu foi morto em intervenção policial no Rio de Janeiro (RJ) houve três reações.
No primeiro dia, 1º de fevereiro, faccionados ameaçaram comerciantes para que fechassem estabelecimentos, o que se estendeu para unidades de saúde e ensino. No dia 2 de fevereiro, foi “permitido” que o comércio abrisse as portas, mas festas e som alto estavam “proibidos”. No terceiro dia, um sábado, uma grande queima de fogos foi feita para homenagear Fábio de Almeida Maia, também conhecido como Biu ou Tartaruga.
Os atos criminosos, porém, não parariam por aí, assim como não atingiriam somente o Pirambu. Bairros vizinhos como Cristo Redentor, Carlito Pamplona, Álvaro Weyne e até mesmo Barra do Ceará passaram a registrar ações criminosas praticadas não somente pela facção Comando Vermelho (CV), mas também por uma suposta organização criminosa constituída por policiais militares, que antagoniza com a facção.
Ao menos três homicídios foram relacionados a esse conflito. Em 12 de fevereiro, o soldado Bruno Lopes Marques foi assassinado enquanto estava de folga em um bar localizado na avenida Pasteur, no bairro Carlito Pamplona. Uma camisa feita em homenagem a Biu foi encontrada no local do crime, fazendo com que o crime fosse relacionado a uma suposta ordem do CV para que PMs moradores da região fossem executados.
A ligação entre a morte de Biu e a do soldado Marques ainda é investigada. Nos dias que se seguiram, dois suspeitos de integrar a facção foram presos temporariamente na investigação do assassinato do PM.
Conforme o Ministério Público Estadual (MPCE), o assassinato do soldado levou a uma reação por parte de outros PMs. No dia 15 de fevereiro, dois homens foram assassinados nos bairros Cristo Redentor e Carlito Pamplona: Arthur dos Santos Rodrigues e Márcio Wallace de Sousa Matos, respectivamente. Um outro homem ficou ferido.
Dois dias depois, porém, os policiais seriam as vítimas. Cinco deles foram baleados e a principal suspeita da investigação é de que, na busca extraoficial que os PM faziam por faccionados que os ameaçavam, os agentes de segurança foram surpreendidos e atingidos. Um sexto PM também foi baleado no mesmo dia no bairro Jardim Iracema, mas alegou ter sido vítima de um assalto.
O POVO apurou com um ex-oficial de inteligência que uma investigação do MPCE sobre a suposta organização criminosa composta por PMs teria vazado. Documentos da apuração passaram a circular nas redes sociais e os endereços dos PMs investigados chegaram até faccionados. Isso teria feito com que os PMs investigados passassem a ser ameaçados.
Por outro lado, também os supostos milicianos passaram a ameaçar os integrantes do CV do Grande Pirambu, afirmou a mesma fonte. O “01” da facção na região, identificado como Carlos Mateus da Silva Alencar, o Skidum ou Fiel, teria determinado que sua família se mudasse do Pirambu, a fim de evitar que eles sofressem alguma retaliação, contou o policial ouvido por O POVO.
O temor da fonte é que a guerra entre supostos milicianos e faccionados não termine, e mais mortes ocorram, mesmo após a prisão do soldado Igo Jefferson Silva de Sousa, apontado como integrante da suposta organização criminosa composta por PMs, ocorrida no dia 21 de fevereiro.
Igo, que já era investigado na operação Interitus, teve a prisão decretada pela Justiça, a pedido do MPCE, pela suspeita de que ele teve envolvimento nas mortes de Arthur e Márcio Wallace.
"Ressalta o GAECO/MP que por tudo que foi relatado aqui, se faz necessária a prisão preventiva tanto para evitar um derramamento de sangue na região do Pirambu e adjacências, entre traficantes e o grupo dos policiais militares além de preservar a integridade física do próprio cabo Igo, já que se tem notícia de que o mesmo foi alvo de disparos de arma de fogo na madrugada do último sábado", consta na decisão da juíza Christianne Braga Magalhães Cabral.
Em 2011, Igo Jefferson foi acusado, ao lado de um outro PM, de atirar duas vezes nas pernas de um adolescente que teria roubado um relógio de sua mãe no bairro Cristo Redentor. Na esfera administrativa, Igo Jefferson foi condenado a oito dias de prisão. O episódio prescreveu e, por isso, os militares não foram penalizados na esfera criminal.
Em 12 de fevereiro de 2020, durante a paralisação da PM, Igo Jefferson e outros policiais foram acusados de ter invadido uma residência no Icaraí, em Caucaia, e levado diversos objetos, incluindo três relógios de alto padrão.
Na ocasião, conforme a CGD, os militares afirmaram que "investigavam uma denúncia de que ali ocorreriam ilícitos” e intimidaram o caseiro do local dizendo que forjariam um flagrante contra ele, tendo ainda exigido que ele avisasse ao proprietário do imóvel.
No dia 29 de fevereiro, os PMs voltaram ao local, derrubaram o portão e subtraíram vários objetos de valor. Por esse caso, Igo Jefferson e os soldados Daniel Medeiros de Siqueira e Sidney do Nascimento Lopes foram afastados preventivamente por 120 dias. A apuração desse caso segue em andamento.
Após a prisão de Igo, no último dia 21, a defesa dele afirmou ao O POVO que as acusações são “baseadas em conjecturas” e “meras ilações”. O advogado Germano Palácio ainda ressaltou que Igo é responsável por diversas prisões na região e que sua prisão era desnecessária.
A suposta organização criminosa composta por policiais militares que agiria no Grande Pirambu é investigada desde, pelo menos, 2021, pelo Ministério Público Estadual (MPCE) e pela Coordenadoria de Inteligência (Coin) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS). Em novembro de 2022, Gaeco e Coin cumpriram mandados de busca e apreensão contra seis policiais suspeitos de envolvimento no grupo e o material apreendido na ação ainda é objeto de análise.
Um dos investigados na chamada operação "Embrionária", entretanto, teve a prisão decretada por causa dos episódios recentes ocorridos no Grande Pirambu e na Grande Barra do Ceará. Em 17 de fevereiro, seis policiais militares foram baleados na Barra do Ceará e no Jardim Guanabara. Dois dias antes, dois homens foram mortos no Cristo Redentor e no Carlito Pamplona — crime cuja suspeita recai sobre PMs.
O soldado Igo Jefferson Silva de Sousa, um dos PMs baleados na Barra do Ceará, é suspeito de envolvimento nos assassinatos do dia 15 de fevereiro, o que fez com o MPCE pedisse a prisão dele nos autos da operação "Interitus", deflagrada em novembro passado contra nove PMs.
A operação encontrou um elo entre Igo e o soldado Bruno Lopes Marques, morto no Carlito Pamplona. Em conversas no WhatsApp, conforme o MPCE, os dois conversavam sobre traficantes da região do Pirambu "e o meio usado para facilitar a localização desses infratores e, consequentemente, a realização da abordagem ilegal" (extorsão).
"Além desses diálogos, no dia 08/03/2023 foi identificado um sobre a execução de um indivíduo conhecido como 'Chico'. Portanto, ficou evidente a parceria entre os dois policiais militares aqui citados para a prática de crimes", afirmou o MPCE.
Na "Embrionária", O POVO apurou que mais de 20 policiais — em sua maioria, militares, mas também há policiais civis e penais — foram citados durante a investigação. Alguns deles, inclusive, já haviam sido presos em flagrante por outros casos de extorsão.
Um Relatório de Inteligência (Relint) da Coin datado de 2021 apontava que os policiais eram suspeitos de integrar "organização criminosa voltada à prática de graves crimes eminente execuções e extorsões a comerciantes e traficantes locais, com o fito de tomar o controle do tráfico de drogas do Bairro Tabapuá, em Caucaia".
Entretanto, teria havido crimes registrados em outras regiões. Exemplo disso foi um suposto furto qualificado contra um homem apontado como hacker, episódio ocorrido em um condomínio no bairro Mucuripe em 2021.
Câmeras de vigilância flagraram três homens, que disseram que estavam ali para cumprir um mandado de busca e apreensão, invadindo o apartamento do hacker. O hacker conseguiu fugir por uma janela, mas teve diversos bens levados pelo trio. A Coin conseguiu identificar dois dos homens como sendo um policial penal e o outro, militar.
O mesmo relatório ouviu um informante que relatou diversos casos de extorsão e apropriação de materiais ilícitos de traficantes. Foram colacionadas ainda mensagens extraídas de uma outra investigação policial, em que suspeitos de integrar a facção CV aparecem dizendo que um comparsa deles foi abordado por PMs e que, após "soltar um papel" — ou seja, pagar propina — ele foi solto.
A Coin, ao analisar o sistema que acompanha as viaturas policiais por GPS, observou que uma viatura esteve no mesmo local descrito nas mensagens. Entre os três PMs da composição estava Igo, cujo nome chega a ser citado pelos faccionados.
Conforme o relatório, a organização criminosa teria até mesmo um nome: Tudo Quatro. O nome viria da sigla PMCE, da mesma maneira que o Comando Vermelho (CV) se denomina "Tudo Dois" e a Guardiões do Estado (GDE), "Tudo Três".
Fotos em redes sociais mostram alguns dos investigados posando com quatro dedos erguidos, no que seria uma menção a "Tudo Quatro". Até mesmo pichações em muros de Fortaleza foram encontradas com a inscrição.
Alguns dos alvos da "Embrionária" também foram alvos de uma outra operação contra uma organização criminosa que seria composta por PMs.
Na operação "Interitus", deflagrada em novembro passado, mandados de busca e apreensão foram cumpridos contra os soldados Igo Jefferson e Marcus Vinicius Linhares Mesquita.
Conforme o MPCE, os dois integravam a organização criminosa comandada pelo cabo José Otaviano Silva Xavier. Os áudios obtidos pelo MPCE indicavam, porém, que tanto Igo, quanto Mesquita haviam se distanciado dessa organização.
"Ei, macho, eu queria só, que tivesse só mais três caras de coragem que eu ia lá era de Polícia Civil, metia o pezão na porta e arrastava, pegava as armas, pegava tudo, ainda detonava um ou outro que tivesse lá dentro", afirmou Xavier em uma das gravações.
"É porque, macho, a Polícia se acabou, tanto os de folga não tem mais, que quando era no tempo dos meninos... ah, se o MESQUITA e o IGOR tivesse aqui na área... que era só falar. Não tem mais não, macho, acabou".