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Enquanto IA avança, exclusão digital ainda é realidade
Reportagem

Enquanto IA avança, exclusão digital ainda é realidade

|DESIGUALDADE| Pandemia acelerou incorporação de novas formas de trabalho mediadas por tecnologia no Brasil. Paralelamente, percentual de brasileiros sem acesso à internet ainda é significativo — e pode representar um atraso do País no "bonde do futuro híbrido" mundial
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PARA romper com a desigualdade no mercado de trabalho é preciso acelerar o acesso à conectividade (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES PARA romper com a desigualdade no mercado de trabalho é preciso acelerar o acesso à conectividade

Consagrada como indústria 4.0 — conceito desenvolvido pelo alemão Klaus Schwad, em alusão à considerada 4ª revolução industrial —, a atual revolução tem como protagonistas os sistemas inteligentes, a internet das coisas (IoT), as inteligências artificias e big data, entre outras tecnologias que têm redefinido a dinâmica do trabalho em escala mundial e introduzido novos processos, produtos e paradigmas de negócios que eram impensáveis até pouco tempo.

Essas mudanças impõem uma série de alterações na organização do mundo laboral, com efeitos que reverberam de maneira mais acentuada em países em desenvolvimento como o Brasil — uma nação onde o desemprego, embora reduzido em 2024, ainda registra números alarmantes.

Enquanto essa revolução tecnológica promete desenvolvimento, aumento de lucros, redução de custos e eficiência na produção, também torna obsoletos os modelos convencionais de produção e depara-se com a lacuna crítica de não ser acompanhada pela criação de novos empregos com a mesma velocidade — o que resulta no fenômeno do desemprego tecnológico.

O próprio ministro do Trabalho e Emprego (MTE), Luiz Marinho, já alertou para a necessidade do Brasil fazer um debate sobre a regulamentação da inteligência artificial. "Se não for regulada, a inteligência artificial vai provocar um estrago inimaginável no mercado de trabalho", afirmou o ministro durante as celebrações do dia 1º de maio, considerado Dia do Trabalhador.

"Há muito mais receio do que real ameaça", acredita Wendell Rodrigues, professor de Telemática, Computação e Telecomunicações do campus Fortaleza do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).

"Isso leva tempo para se concretizar de forma mais agressiva ao ponto de tomar empregos. Há muitos anos isso já vem acontecendo com a automação industrial. Ao redor do mundo, raramente você encontra um frentista, um profissional para colocar gasolina no carro da gente. Isso é muito do Brasil, de países menos desenvolvidos, por uma questão de manutenção de empregos. Em muitos casos isso se torna até lei", demonstra Rodrigues, que é chefe do Departamento de Pesquisa da Pró-reitoria de Pesquisa, Inovação e Pós-graduação (PRPI).

Para ele, o fato novo no contexto das inteligências artificiais é que elas "não estão mais substituindo apenas esses trabalhos manuais ou braçais que são facilmente substituíveis por robôs ou máquinas, agora estão substituindo trabalhos intelectuais como o de um advogado, de um profissional da saúde com suporte a diagnóstico, de um professor, de um jornalista".

O docente projeta que é necessário preparação: "A gente tem que estar preparado, e isso não vem de forma individualizada. É preciso ouvir quem está na academia, professores, pesquisadores, que são pessoas que estão lendo diariamente o que está acontecendo no mundo, que estão tendo uma interpretação de futuro e podem auxiliar na construção de políticas públicas que ajudem a formar um recurso humano capacitado. Porque se a gente não estiver preparado, a gente vai virar meros consumidores de tecnologias criadas lá fora. Isso não é legal, vira um semicolonialismo, a gente fica dependente".

Em relação ao impacto do avanço tecnológico nos últimos anos, o professor Alysson Diniz, do curso de Sistemas e Mídias Digitais (SMD) da UFC, registra que há "um aumento de demanda por um público especializado que tenha o mínimo de conhecimento em desenvolvimento e programação".

"O grande desafio no caso da UFC é preparar profissionais com capacidade crítica, porque não basta saber as tecnologias que o mercado deseja, a gente não quer esse perfil 100% tecnicista. O que eu considero diferencial de um curso superior é justamente a capacidade de olhar para o mercado e entender, por exemplo, como as questões afetam a desigualdade brasileira, como as relações sociais são afetadas pelo nosso contexto atual", pontua.

Em janeiro de 2024, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um relatório no qual examina o impacto potencial da inteligência artificial no mercado de trabalho global e reconhece as diversas previsões de substituição de empregos por IA, mas sinaliza que ela também será adotada como forma de complementar o trabalho humano.

Como produto desse cenário, as economias avançadas enfrentam maiores riscos decorrentes da IA — nelas, cerca de 60% dos empregos podem ser afetados. Em mercados emergentes, como o Brasil, e nos países de baixo rendimento, espera-se que a exposição à IA seja de 40% e 26%, respectivamente.

PACUJÁ-CE-BRASIL, 26-04-2024: Garoto acessa a internet através de seu celular na Zona Rural do Ceará. (Foto: Aurélio Alves/O Povo)
PACUJÁ-CE-BRASIL, 26-04-2024: Garoto acessa a internet através de seu celular na Zona Rural do Ceará. (Foto: Aurélio Alves/O Povo)

Exclusão digital no Brasil ainda é barreira

O que era algo do futuro tornou-se presente: você recebe algo por e-mail, se comunica com alguém por mensagem (ligação têm se tornado raras), pede comida por um aplicativo, verifica se seu ônibus está a caminho por outro e, em caso de atraso à vista, recorre a um transporte alternativo por meio de outro app.

Transações financeiras, entretenimento, informação e até relacionamentos podem ser mediados por um ambiente virtual e são algumas das utilidades que fizeram do aparelho celular um companheiro inseparável — da hora de despertar até a hora de dormir.

De tão importante que se tornou, em 2011 a Organização das Nações Unidas (ONU) manifestou que o acesso à internet passou a ser um direito humano e que desconectar a população da web viola esta política.

Paralelamente, no entanto, o percentual de brasileiros sem acesso à internet ainda é significativo — e pode representar um atraso do Brasil no "bonde do futuro híbrido" mundial. Em um cenário no qual a tecnologia ganha ainda mais protagonismo, cresce também a preocupação com o combate à exclusão digital da sociedade.

Pelo menos 36 milhões de brasileiros ainda não são usuários da rede mundial de computadores — seja por falta de recursos financeiros, habilidade, acesso ou interesse.

De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2022, desse quantitativo de pessoas que não acessam a internet, cerca de 21 milhões são pretos e pardos, 12 milhões brancos, 3 milhões de cor ou raça não declarada. Quanto ao grau de instrução, 29 milhões possuem até o ensino fundamental.

Em 2023, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad TIC), contabilizou o que pode representar uma redução desse contingente, mas ainda expressivo: são cerca de 28,2 milhões de brasileiros de 10 anos ou mais de idade que não usavam a internet (3,6 milhões deles estudantes) no ano passado, com os excluídos digitais representando 15,3% da população nessa faixa etária.

O celular ocupa a primeira posição no ranking de dispositivos mais utilizados para acessar a internet no Brasil (99%). O levantamento mostrou também que, no período, 155,2 milhões de pessoas tinham aparelho de telefone celular no Brasil (84,4% da população com 10 anos ou mais). Entre os 28,7 milhões sem telefone celular, 8,9 milhões eram estudantes (dos quais 91,6% eram da rede pública de ensino).

A conexão representa um caminho essencial para garantir direitos básicos aos cidadãos, que vão desde uma consulta médica virtual até o ensino e o trabalho remoto. O não acesso à tecnologia, portanto, representa um fator de exclusão social dos cidadãos.

O avanço do 5G e o impacto na conectividade

Com a chegada e a expansão do 5G no território brasileiro, há uma expectativa de que as políticas públicas privilegiem os caminhos para uma conectividade mais equânime em todo o País. O avanço do modelo deve ampliar o acesso à internet de alta velocidadeentrepopulações rurais e em regiões remotas que hoje estão excluídas digitalmente.

O professor Wellington Sarmento, do curso de Sistemas e Mídias Digitais (SMD) da Universidade Federal do Ceará (UFC), menciona dados da pesquisa global do DataReportal divulgada em 2023 para analisar o cenário de exclusão digital que revela-se de maneira complexa no Brasil: são mais de 84% de taxa de penetração da internet na população brasileira.

"Isso se deve à crescente da malha de fibra óptica, que se espalhou por todo o País. Pela extensão, podemos inferir que diferentes classes sociais têm acesso à internet. Porém, esse acesso não implica em conhecimento do uso de ferramentas que vão além de apps de redes sociais. Fica tudo dentro do universo de dispositivos móveis", observa.

Isso significa, na avaliação do docente, que brasileiros possuem certo nível do chamado letramento digital — mas dentro dos limites desses dispositivos e de uma faixa etária que envolve, principalmente, quem nasceu dos anos 1990 em diante.

Conforme Sarmento, pessoas que se alfabetizaram digitalmente com microcomputadores enfrentam dificuldades de adaptação com a transição para o uso predominante de smartphones, que exige habilidades para realização de funções via web applications como Google Docs e Adobe Photoshop Online em vez de softwares instalados diretamente nas máquinas.

Por outro lado, os jovens, apesar de estarem imersos no uso de aplicativos e redes sociais, frequentemente não possuem o conhecimento necessário para lidar com ferramentas essenciais de produtividade, como editores de texto e planilhas eletrônicas. A situação socioeconômica agrava essa questão, pois enquanto um celular de custo acessível pode ser adquirido, computadores que permitiriam um uso mais completo das ferramentas digitais são caros e, portanto, menos acessíveis às classes menos favorecidas.

"Não se programa a contento num celular, não se faz controle financeiro de uma empresa no celular, não se administra uma rede de computadores do celular. Não se cria interfaces gráficas e design de produtos em um celular. Se você não tem acesso democrático a microcomputadores ou laptops, você vai perder para países que oferecem esses acessos", sobreleva.

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