Diverso em termos de fontes de energia, o Brasil reforçou em 2024 os planos de acelerar a transição energética no País rumo a um cenário de menos emissão de carbono e com o gás natural como protagonista.
Mesmo que de origem fóssil, o combustível é encarado como a rota mais segura para o processo de neoindustrialização brasileiro. Nesta perspectiva, a ideia é substituir combustíveis como carvão e coque de petróleo, usados nas plantas carbono intensivas de siderúrgicas e cimenteiras, pelo gás natural.
A emissão de dióxido de carbono na atmosfera cai em 33% nestes casos, segundo os estudos conhecidos até agora e citados ao O POVO pelo professor João Victor Marques, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Energia.
"Transição energética não é um processo recente e podemos dizer que o gás natural em substituição ao carvão é a transição mais relevante nos últimos anos."
O pesquisador aponta os Estados Unidos e a China como exemplos de adoção dessa trilha de transição, em um movimento de maior segurança industrial com manutenção da produção sem quebras significativas no processo.
É o entendimento também da Confederação Nacional da Indústria (CNI), segundo afirma Rennaly Sousa, especialista em Energia da instituição. Setores como os de aço, alumínio, vidro e mineração já "avaliam rotas possíveis para a descarbonização, nas quais é considerado o uso do gás natural", segundo ela.
Hoje, o consumo de gás natural no Brasil gira em torno dos 46 milhões de metros cúbicos por dia, com destaque para o setor industrial (28,13 milhões de m³/dia) e o de geração de energia (9,14 milhões de m³/dia), segundo dados da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás).
Já a produção bruta, extraída principalmente de poços offshore (localizados em alto mar), gira em torno de 100 milhões de m³/dia de acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Mas metade é reinjetada nas reservas para otimizar a extração de petróleo.
A projeção da EPE, cita o pesquisador da FGV Energia, é de que chegue a 300 milhões de m³/dia em 2032. Descontado a reinjeção já prevista - e criticada pelos consumidores e distribuidores - a expectativa é de que a produção líquida mais que duplique nesse tempo. No entanto, é preciso de demanda e de preço competitivo para isso.
"Dentro do mercado industrial, a gente tem uma utilização bastante difundida, mas precisa ter um gás mais competitivo para entrar em novos mercados. Uma dificuldade é o preço do gás. Muitas indústrias que dependem de carvão ou até de óleo diesel acabam não utilizando pela competitividade de preço dos insumos mais intensivos para emissão", comenta Marcelo Mendonça, diretor técnico-comercial da Abegás.
Quando comparado ao mercado americano, onde o gás natural foi usado com êxito, a molécula custa até dez vezes mais, girando em torno de US$ 13, a depender da cotação do barril de petróleo brent - referência para o preço do combustível.
A estratégia para baixar o valor é aumentar a oferta e as possibilidades vão além das reservas offshore, segundo os especialistas e agentes do mercado. Eles defendem a exploração de campos onshore (em terra) como forma também de interiorizar a oferta de gás natural no Brasil.
"O Brasil tem gás em todo o território nacional em terra. Acho que o caminho do Brasil, embora defenda a exploração com unhas e dentes da Margem Equatorial, é a exploração onshore porque é achado no Brasil inteiro, diferente do Petróleo. E dentro desse contexto de soberania e segurança energética, o gás natural é o combustível do futuro", avalia Allan Kardec Duailibi, presidente da Companhia Maranhense de Gás Natural (Gasmar).
Pesquisador da área e ex-presidente da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Brasil (ANP), ele foi um dos primeiros do País a mensurar as reservas da Margem Equatorial, que se estendem do Rio Grande do Norte ao Amapá, e aponta as bacias como fonte de gás também. O mesmo defende o diretor técnico-comercial da Abegás.
Com a articulação de uma maior oferta, a expectativa é de que a importação de gás natural também recue. Atualmente, são importados 15,4 milhões de m³/dia da Bolívia e a projeção da EPE é de que esse montante caia para 5 milhões de m³/dia em 2034.
Nessa perspectiva de aumento de oferta, o papel das distribuidoras também surge como essencial na cadeia produtiva, na tarefa de levar o combustível até os consumidores finais.
João Victor Marques diz acreditar que "a regulamentação já está bastante modernizada" e aponta a necessidade de as empresas conseguirem viabilizar a construção de novos gasodutos no trabalho para interiorizar a oferta. "Os estados precisam entender essas companhias como ativos de desenvolvimento para este mercado. É preciso estimular o crescimento da infraestrutura de distribuição para atingir novos consumidores."
O diretor técnico da Abegás assegura que "as distribuidoras têm feito seu papel" e cita a duplicação das redes de distribuição nos últimos dez anos como exemplo do trabalho realizado.
"O Estado do Ceará acaba sendo uma quebra de paradigma porque 15% da demanda de gás é atendido pela produção gerada em um aterro sanitário, um gás renovável. É melhor resultado que um diesel com 15% de biodiesel", ressalta, dando como exemplo a usina GNR Fortaleza, que gera biometano a partir de resíduos de Fortaleza e Caucaia.
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No Ceará, Estado e indústrias avançam na trilha da descarbonização
O Ceará abriga, atualmente, uma das matrizes mais diversificadas em termos de energia do País e o caminho para a transição energética ocorre simultaneamente em várias frentes. Casa do Hidrogênio Verde, como se projeta mundo afora, o Estado tem térmicas a carvão, parques eólicos e fotovoltaicos e, no que diz respeito ao gás natural, a expectativa é de um impulso a partir de conversões e ampliação do uso do combustível.
Ao O POVO, o governador Elmano de Freitas (PT) disse ter o entendimento de que o gás natural faz parte da rota até chegar ao hidrogênio verde ao mesmo tempo que revelou negociar com terminais móveis de regaseificação para o Porto do Pecém como forma de atender a demanda de térmicas e indústrias, principalmente.
No primeiro semestre deste ano, o Ceará não teve consumo de gás para a geração de energia elétrica, segundo os dados computados pela Abegás. Ainda assim, foi o 4º maior mercado do Nordeste, com 494,4 mil metros cúbicos consumidos.
O Maranhão, apenas com a demanda de geração de energia foi o 3º, com 1,3 milhão de m³. Pernambuco (2,9 milhão de m³) e Bahia (4,8 milhão de m³) lideraram o ranking. Nos primeiros seis meses do ano, o maior consumo de gás natural no Ceará foi justamente do setor industrial, que demandou 3,3 mil m³. Com cimenteiras que usam coque de petróleo e siderúrgicas, a expectativa é de que essa demanda aumente com a chamada neoindustrialização.
"Já tivemos conversas com a Petrobras sobre a possibilidade de retorno (do terminal de regás), tenho audiência marcada com a presidente da Petrobras e nós temos mais de uma empresa interessada em atuar nessa área e devemos até fazer algum tipo de concorrência. Agora, devemos acelerar o processo para poder decidir qual das empresas deve atuar lá no Porto", afirmou.
Principal acionista da Companhia de Gás do Ceará (Cegás), o governo do Estado tem na empresa o principal ativo nesta área. Hoje, a companhia atende 14 cidades e mira a expansão para mais cinco (Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Sobral e Quixeré) até 2030, em um orçamento total de R$ 1,3 bilhão somado nesta década.
É na Cegás que iniciou o projeto pioneiro de biometano da GNR e, simultaneamente, a Companhia faz estudos para aplicação de hidrogênio verde na tubulação. "Isso tem muito a ver com o avanço tecnológico. A Cegás tem um plano de ampliação, nós vamos continuar com o plano de investimentos e o gás, pelo que estamos estudando, vamos ter uma fase de gás e, em seguida, o hidrogênio", projeta o governador.
Passa pela Companhia também um dos principais marcos da transição energética observada no Pecém. Após ter o controle da térmica Pecém I, a americana Mercurio Asset terá de R$ 800 milhões até R$ 4 bilhões em investimento para fazer a conversão da usina de carvão para gás natural.
O projeto, apresentado ao O POVO em agosto pelo CEO Carlos Baldi, prevê que a usina deverá consumir, diariamente, até 7 milhões de metros cúbicos (MMm³) de gás natural para manter a capacidade de geração de energia. Já o tempo para que isso ocorra, de seis a 36 meses, vai depender da realização do leilão de contratação de energia previsto para este ano.
A ArcelorMittal Pecém, que também faz uso de carvão no processo produtivo, já admitiu estudar o uso do gás natural. Com gases siderúrgicos alimentando a térmica instalada na planta, a empresa confirmou ao O POVO que "está comprometida em liderar a agenda de sustentabilidade e tem como meta ser carbono neutro até 2050", acrescentando ainda a existência de "oportunidades futuras de consumo de gás natural". "Há uma série de iniciativas e estudos em andamento a fim de traçarmos essa estratégia", informou.
Biogás: produção pode saltar 12,5 vezes até 2032
A transição energética via gás natural permite ainda um caminho renovável para indústrias, térmicas e setor automotivo sem a necessidade de investimentos em novos equipamentos quando o combustível é substituído por biogás. De origem diversa, ele tem a projeção de crescimento de 10,5 vezes nos próximos oito anos. Hoje, são produzidos 640 mil metros cúbicos de biogás por dia no Brasil, mas projeção da Associação Brasileira do Biogás (Abiogás) indica um salto para 8 milhões de m³ por dia até 2032 a partir da entrada de novas usinas.
Talyta Viana Cabral, coordenadora de Assuntos Regulatórios da Abiogás, ressalta o papel decisivo do combustível na transição energética, uma vez que é obtido a partir de resíduos agrícolas, do setor sucroenergético, de dejetos de proteína animal e aterro sanitários e saneamento. "Em 2023, a demanda de gás natural foi de 63 milhões de metros cúbicos. Quando a gente olha para os 8 milhões de metros cúbicos de biometano projetados em 2032, e esse número foi calculado antes da Lei do Combustível do Futuro, a gente tem mais de 10% do mercado nacional", compara.
Lançada no início de outubro, a legislação mencionada pela executiva promete impulsionar o setor de biogás no País com aumento da participação de biogás na matriz energética, especialmente, com foco no transporte de cargas - responsável por 53% das emissões de dióxido de carbono, um dos gases do efeito estufa.
Nos cálculos da Associação, o uso de biometano - quando a molécula do biogás é mais próxima do gás natural sem que haja processo poluidor - "tem uma redução quando comparada ao Diesel de cerca de 90%". "O biometano está espalhado pelo País inteiro. Tem como produzir em locais onde aquele gás natural não chegou e a gente percebe que, para o setor de transporte, é uma excelente alternativa", aponta.
A análise considera as plantações de cana de açúcar do Sudeste, cujo potencial é de 21,1 bilhões de m²/ano, além dos resíduos agrícolas (6,6 bilhões de m³/ano), dos dejetos da proteína animal (14,2 bilhões de m³/ano) e do saneamento/aterros sanitários (2,2 bilhões de m³/ano).
No Ceará, onde uma das experiências pioneiras no uso do biometano tomou forma no Nordeste, a viabilidade se deu na geração a partir do aterro sanitário. Hoje, a usina GNR Fortaleza recebe, em média, 175 mil toneladas de resíduos por mês do consórcio formado pela Capital e por Caucaia, onde está localizada a planta.
Suzana Marinho, diretora administrativa da empresa, avalia que o debate sobre a transição energética pode girar não só sobre a geração, mas sobre o consumo e destaca o papel do biometano nesse aspecto, uma vez que ele pode ser comparado às matrizes renováveis eólicas e fotovoltaicas. "O biometano segue esse mesmo caminho, com uma participação superimportante no processo de descarbonização. Existe uma infraestrutura de gás instalada no País e o biometano cresce em participação nela", aponta, acrescentando que a GNR retira em torno de 500 mil toneladas de gases do efeito estufa por ano com a operação.
Em parceria com a Companhia de Gás do Ceará (Cegás), a GNR injeta cerca de 70 mil a 80 mil m³ de biometano, o que representa cerca de 20% de todo o gás da Cegás e entre 70% e 80% da capacidade instalada da usina.
A meta, revela Suzana, é atingir a capacidade máxima dentro de três anos. Ao mesmo tempo, a Marquise Ambiental - empresa mãe da GNR - opera aterros com alta tecnologia em Natal (RN), Osasco (SP) e Manaus (AM), além de observar novas oportunidades com atenção especial nas regiões metropolitanas de Sobral e Juazeiro do Norte, no Ceará.