É sobre o transporte pesado (público e o de cargas) e as residências que o setor de energia desperta a maior expectativa de expansão do consumo do gás natural com vias de levar à interiorização do País. Enquanto o primeiro já apresenta solidez para uma demanda constante atualmente, o segundo se projeta com esta mesma característica em um futuro de maior oferta e distribuição.
Confira aqui o primeiro episódio da série sobre a participação do gás natural na transição energética
No que diz respeito à transição energética, o uso de um gás natural com participação crescente de biometano na composição reduz drasticamente as emissões de dióxido de carbono quando comparado ao diesel 15, com 15% de biodiesel, segundo aponta Marcelo Mendonça, diretor técnico-comercial da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás).
"Eu acredito que a utilização em veículos pesados tanto no transporte de carga quanto na utilização urbana vai ser um novo caminho para viabilizar utilização de outras regiões que não são atendidas", afirmou Marcelo ao O POVO.
De janeiro a junho deste ano, o consumo de gás natural pelo setor automotivo foi de 4,6 milhões de metros cúbicos (m³) por dia, o que representou 9,4% dos 49,3 milhões de m³/dia consumidos em todo o País.
João Victor Marques, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Energia, alerta para a necessidade de uma rede de distribuição maior para que objetivos como este sejam atingidos no Brasil. Hoje, as infraestruturas de distribuição do gás natural no País se concentram próximas à costa, de onde vem o combustível extraído dos poços de petróleo.
"E existe um potencial muito grande de substituição do óleo diesel. Ainda mais relevante no Brasil que depende aí cerca de 20% e já chegou, em 2022, a mais de 30% de dependência do óleo diesel importado", aponta o pesquisador, mencionando não só o impacto na descarbonização como também na economia brasileira a partir da substituição do diesel pelo gás natural no transporte pesado.
No Maranhão, a parceria entre a empresa de energia Eneva e a montadora de veículos pesados Scania criou o primeiro corredor de transporte pesado a gás natural do País. O projeto, inclusive, já nasceu com projeção de ampliação para outros estados.
Ao O POVO, a Eneva informou que o escopo do contrato com a Yara, fábrica de fertilizantes que usará os veículos na logística de distribuição, "prevê o transporte de 50 mil toneladas de fertilizantes por ano, a partir de janeiro de 2025, utilizando caminhões movidos a GNL fornecido pela Eneva, reduzindo em 20% as emissões de gases de efeito estufa (CO2) e em 90% a emissão de NOx e SOx (gases nocivos à saúde)."
"Agora de fato estamos materializando os primeiros contratos com caminhões GNL. Uma solução de descarbonização num segmento onde ainda não temos outras soluções no curto prazo, já que alternativas como a eletrificação e bicombustíveis ainda têm seus gargalos", afirmou Marcelo Lopes, diretor executivo de Marketing, Comercialização e Novos Negócios da Eneva durante a assinatura do contrato em setembro passado.
Na prática, explica o diretor da Abegás, o setor automotivo já se consolidou como mercado consumidor de gás natural e tem potencial para ser uma das demandas fixas enxergadas pelas distribuidoras no movimento de criar novas fontes ou ampliar os gasodutos até o interior do País.
"Esse pode ser um caminho para uma quebra de paradigma e possibilitar a interiorização. E permitir a utilização em regiões não atendidas. E com isso destravar outros consumos regionais", sinaliza, mencionando o uso residencial do gás natural.
No País, 1.3 milhão de m³/dia são consumidos por este segmento e a expectativa é aumento em consequência das adesões e ampliação da oferta. Diferente de comércios ou pequenas indústrias, os condomínios residenciais se mostram como uma demanda sólida de combustível, com adesão cada vez maior onde já existe a oferta de gás natural.
Táxis e motoristas de app se consolidam como principais consumidores
O esforço para atender a demanda por cargas e transporte público no Ceará também existe, segundo afirma Antonio José Costa, assessor econômico do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado do Ceará (Sindipostos-CE). No entanto, é no transporte individual de passageiros, como táxis e aplicativos, que o consumo de gás natural veicular (GNV) se consolida no Estado.
Dos 494,4 mil metros cúbicos (m³) por dia de gás natural consumidos na primeira metade do ano em território cearense, 134,6 mil m³/dia correspondem ao consumo veicular. A maioria ofertada por cerca de 40 postos de combustíveis com bombas de GNV, segundo contabiliza Costa. Para o Interior, no entanto, unidades de Sobral e Tianguá encerraram as atividades e as cidades que ainda contam com o serviço levam o combustível em caminhões, o que encarece de R$ 0,02 a R$ 0,10 o metro cúbico vendido.
"A gente é muito a favor do livre mercado, mas o pontapé inicial para um investimento desse (de levar gás para o Interior) precisa ser do governo", pondera o consultor. Nessa perspectiva, a Companhia de Gás do Ceará (Cegás) projeta um investimento de R$ 1,3 bilhão entre 2020 e 2030 para chegar em mais cinco cidades.
Mas o principal empecilho para o consumidor que já possui acesso ao combustível, diz Costa, é o custo da conversão do veículo. "É preciso um incentivo, seja IPVA ou ICMS, para tornar mais viável. Mas, depois da instalação, o consumo é mínimo", ressalta. Hoje, a conversão de um carro de passeio no Ceará gira em torno de R$ 4 mil para carros sedan ou hatch, somando kit e instalação.
O tipo de equipamento também influencia na economia. Especialistas e oficinas de conversão apresentam diversos modelos de kit, que prometem até 60% de economia a depender do modelo e do perfil de uso do automóvel.
A redução de gastos para quem banca a conversão dos veículos leves e percorre, em média, 3 mil quilômetros por mês, pode chegar até R$ 666,46 mensalmente, segundo o simulador de economia disposto no portal da Cegás.
O comparativo foi feito pelo O POVO a partir da última pesquisa da Agência Nacional de Petróleo, Biocombustível e Gás Natural (ANP), feita de 20 a 26 de outubro e que trazia o litro médio da gasolina em R$ 6,06 e o metro cúbico de GNV em R$ 4,91.
No portal da Cegás é possível também conferir quais as oficinas estão habilitadas a fazer a conversão dos veículos. Todas possuem, além de registro na Companhia, aval do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) para realizar o trabalho, o que dá segurança e evita impedimentos quando o condutor for para a vistoria necessária no Departamento Estadual de Trânsito (Detran).
Tendência é de que condomínios abandonem o botijão de gás
Responsáveis por apenas 1,3% do consumo de gás natural no Ceará entre janeiro e junho de 2024, as residências - especialmente os condomínios e edifícios - têm apresentado uma tendência de abandono dos botijões de gás liquefeito de petróleo e a adoção do gás natural encanado.
É o que atesta Saulo Venâncio, presidente da Associação de Síndicos do Estado do Ceará (Assosíndicos-CE). Ele conta que, fora dos apartamentos, os condomínios chegam a fazer uso de tubos e acondicionavam os botijões maiores em uma área reservada do prédio.
Mas a maior segurança dada pela tubulação motivou obras de adaptação e, nos novos projetos, a opção de botijões sequer faz parte da escolha dos construtores.
"Uma normativa do Corpo de Bombeiros recomenda a adequação para o gás canalizado", acrescenta, apontando questões de segurança como principais definidoras da tendência.
Além disso, destaca Saulo, "é mais barato e alguns condomínios já enxergam essa necessidade de mudança", o que exige contratação de engenheiro e mão de obra especializada para que a vistoria do Corpo de Bombeiros seja tranquila para os moradores.
O retorno do investimento, cujo orçamento é difícil estimar dadas as peculiaridades de cada condomínio, é de longo prazo, diz o presidente da Assosíndicos-CE.
"Enquanto se paga uma taxa para o gás GLP de R$ 8,79 por quilo (do combustível), com o gás natural, consigo chegar até R$ 4", compara.
Os valores citados por Venâncio fazem referência às tarifas cobradas pela Companhia de Gás do Ceará (Cegás) pela entrega do gás canalizado na porta do condomínio - serviço que saltou 12% em 2023 em termos de prédios atendidos no Ceará.
A empresa, segundo a tabela em vigor e exposta no site, trabalha com uma tarifa mínima de R$ 86,78, cobrada da faixa de consumo de 0 a 20 m³ por mês.
Acima disso, em outras seis faixas de consumo estabelecidas, a tarifa final para os consumidores residenciais varia de R$ 4,339/m³ até 3,9118/m³.
O segundo segmento no qual o setor mais enxerga oportunidade de crescimento também depende da expansão da rede de distribuição para ampliar o atendimento. Mas é encarado como um consumidor secundário, que vai aderir a partir da existência de uma infraestrutura capaz de atender às necessidades deles.