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Ceará tem o menor percentual de autodeclarados pretos do Nordeste
Reportagem

Ceará tem o menor percentual de autodeclarados pretos do Nordeste

|CONSCIÊNCIA NEGRA| Cerca de 6% dos quase 9 milhões de moradores do Estado se identificam como pessoas pretas; mais de dois terços da população estadual se denomina parda
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Hilário Ferreira, Historiador e mestre em História Social (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Hilário Ferreira, Historiador e mestre em História Social

Anualmente, o 20 de novembro é destacado em diversas regiões do Brasil para a celebração e defesa da cultura afro-brasileira. Instituído por Lei como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a data busca lembrar a luta dos negros do Império e Colônia pelo fim da escravidão e a busca diária de seus descendentes republicanos por direito à vida, à propriedade e à equidade em diversas questões sociais.

Entre os grandes pólos da luta antirracista no Brasil está o Ceará, primeiro estado brasileiro a abolir o regime escravagista, no ano de 1884. O episódio é até hoje lembrado na Terra da Luz, que passados mais de 100 anos desde o fim da escravidão, em 25 de março de 1884, tem maioria de sua população composta por negros.

Isso porque, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 71,5% dos quase 9 milhões de moradores do Ceará se autodeclaram pretos ou pardos. Ao adentrar neste número, o que se percebe é uma prevalência da população parda entre os cearenses, que somam 64,7% dos habitantes do Estado.

Ao mesmo tempo que figura como o segundo maior percentual de pardos do Nordeste, atrás apenas do Piauí, com 64,7%, o berço da abolição do Brasil apresenta a menor fatia de autodeclarados pretos de toda a região, com 6,8%.

Para a antropóloga Izabel Accioly, essa predominância da população parda entre os negros do Ceará precisa ser analisada com cuidado, já que pode não refletir a real representação do grupo entre os cearenses.

Segundo ela, o termo pardo é bastante utilizado por pessoas que acreditam que a autodeclaração no Brasil é feita a partir da linhagem familiar ao invés da cor da pele, e por ter antepassados negros, afirmam ser pardos, mesmo possuindo outro tom de pele.

"Muitas pessoas brancas se autodeclaram pardas porque acham que a autodeclaração tem a ver com a origem familiar. Por exemplo, há pessoas de pele branca, que por terem um avô negro ou um pai negro, ela se autodeclara parda, e aqui no Brasil a autodeclaração não funciona assim. Não é sobre a origem, é sobre o fenótipo", explica a mestre em Antropologia.

Há também quem realiza o movimento contrário. Pessoas pretas que, por vergonha de afirmar a própria cor de pele ou medo do racismo presente na sociedade, se autodeclaram pardas.

Essa "adesão" de pessoas tanto brancas quanto pretas à autodeclaração como parda, tornou a afirmação em uma espécie de "carta coringa", tanto para aqueles que não possuem conhecimento sobre a autoidentificação, quanto para quem o utiliza como forma de escape à violência racial.

"A gente vê movimentação de pessoas brancas, que não acham que são brancas e se colocam no grupo dos pardos, porque acham que a autoidentificação tem a ver com grupo familiar. E a gente vê pessoas pretas que se colocam como pardas porque têm vergonha ou medo de se declararem pretas", acrescenta.

Entre os caminhos apontados para mitigar esse retrato sobre o número de pardos no Estado estão as discussões sobre a comunidade negra, que ganham destaque exatamente na data de hoje, através dos debates sobre a consciência negra.

Todas essas movimentações acontecem devido à mobilização de membros do movimento negro ainda no século passado, que deram início à celebração da data. No início dos anos 1970, ainda durante o regime militar, um grupo de jovens negros de Porto Alegre levantou os primeiros questionamentos sobre o dia 13 de maio, quando ocorreu a abolição da escravatura no Brasil.

O motivo que embasava a dúvida sobre o real simbolismo da data era o sentimento de falsa liberdade gerado pela Lei Áurea, que se limitou à libertar os negros dos regimes de escravidão, mas não estabeleceu condições mínimas para que esses se estabelecessem entre a sociedade racista.

Ao lugar da data de assinatura da Lei, foi sugerido o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do maior quilombo da história do Brasil, o Quilombo dos Palmares, que chegou a ter mais de 20 mil habitantes e resistiu por mais de cem anos na região onde hoje existe o estado de Alagoas.

A ideia principal era substituir a narrativa de uma liberdade concedida pelo Império pela história de luta daqueles que tiveram participação essencial para a sobrevivência dos negros no País.

Para o mestre em História Social, Hilário Ferreira, a escolha pela data de morte de Zumbi dos Palmares foi uma importante reivindicação liderada pelo movimento negro para a valorização da identidade afro-brasileira.

Conforme explica o historiador, o apagamento de negros como Zumbi dos Palmares, Preta Simoa e Chico da Matilde, líderes de movimentos como o Quilombo dos Palmares e a revolta dos Jangadeiros, cruciais para a abolição, corrobora para que as novas gerações de negros não sintam o devido orgulho de seu povo e de sua história.

Essa cultura, de substituir os heróis da luta negra por personagens brancos, também é apontada como um dos motivos para o baixo nível de identificação das novas gerações e de autodeclarados pretos no Ceará e em todo o País.

"A grande violência do apagamento histórico é que alguém constrói uma narrativa que vai substituir o silêncio. A narrativa que substitui o silêncio é uma narrativa de que nós negros somos subservientes, que somos escravos. E a concepção de escravos que se dá é aquele que viveu sofrendo, não um guerreiro, não aquele que resistiu, não aquele que produziu", finaliza Ferreira.

Leia Mais no Vida & Arte, página 3

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