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Apostas onlineque contaminam a mente e o bolso
Reportagem

Apostas onlineque contaminam a mente e o bolso

| Bets |Não é cigarro, não é cachaça, nem café. O vício que vem contaminando os brasileiros são as apostas online. Causadoras de uma crise social e política, as plataformas estão no centro de um debate moral, social, político, sanitário e criminal
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bets impresso 2 (Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo bets impresso 2
 

 

“Aposte já”, é a mensagem vista por toda parte. Os chamados vão ao encontro do usuário, seja em sites, anúncios em aplicativos, mensagens de operadoras, grupos de conversa, convites de influenciadores. As cores são chamativas e moedas animadas saltam das telas nas propagandas. Uma promessa de dinheiro fácil, irresistível.

Longe dos badalados cassinos de Las Vegas, tudo isso presente no universo das “apostas de alíquota fixa”, já muito presentes no dia-a-dia do brasileiro. As apostas de natureza esportiva foram liberadas há apenas seis anos e agora se somam às loterias estatais como as únicas formas de jogo de azar liberadas no País.

 

Cassinos e bets - os tipos de aposta online no Brasil 


 

Bets esportivas

Bets esportivas

Tem como intuito prever acontecimentos de uma partida esportivas: qual jogador ou clube será vitorioso, quantos gols, quem irá marcar. Contemplam vários esportes, mas, no Brasil, o predomínio é do futebol. Homens são a maioria dos apostadores.

 

Cassinos online

Cassinos online

Contempla vários jogos tradicionais de cassino como slots, roleta, blackjack e póquer. O mais popular é o Fortune Tiger, apelidado de “jogo do tigrinho”. Funciona com a substituição de símbolos para formar combinações, que podem ser impulsionadas com depósitos extras. Mulheres são maioria.

 

Nesse período, tigrinhos e foguetes passaram a fazer parte do vocabulário de pessoas que não são biólogas ou engenheiras espaciais. Antes desconhecido, o termo “bet” vem aparecendo incessantemente em intervalos de jogos de futebol, em uniformes, em comerciais e em inquéritos policiais.

Dados de pesquisas científicas, estatísticas e levantamentos feitos por diversas instituições, públicas e privadas, dão conta de um cenário preocupante. Pessoas que deixam de comprar itens básicos para apostar, crianças adictas em cassinos virtuais, beneficiários de programas sociais que negligenciam a própria subsistência em nome do vício.

A ministra da saúde, Nísia Trindade, classificou o cenário como uma pandemia, que precisa ser encarada sob o viés da saúde pública. No episódio 5 desta série de reportagens, O OPOVO+ te convida a entrar no mundo das apostas no Brasil para entender como chegamos aqui e como podemos sair da crise.

 

 

Deu zebra? Qual é o panorama atual das apostas no Brasil?

Em terras tupiniquins, a proliferação de gastos com apostas começou em 2018, segundo a pesquisa “O impacto das apostas esportivas no consumo”, divulgada pela empresa de consultoria Strategy&. Daquele ano a 2023, houve aumento significativo nos gastos com apostas, com o ápice de +419% nos gastos das classes D e E. Para efeitos de comparação, de 2008 a 2018, neste mesmo segmento, o crescimento foi de 2,1%.

 

Confira a variação dos gastos com apostas no Brasil por classe social 

Mesmo com as discussões sobre a regulamentação, três mapeamentos publicados este ano informam que 2024 foi crítico no âmbito das apostas esportivas no Brasil. Um deles, do Senado Federal, apontou que 13% dos brasileiros com 16 anos ou mais — o equivalente a 22,13 milhões de pessoas — declararam ter participado de “bets” no mês de junho. O perfil médio desse apostador são homens, de 16 a 39 anos, com o ensino médio completo como escolaridade máxima, e ganha até 2 salários mínimos.

Em setembro, o Banco Central revelou que os valores mensais das apostas online e das loterias, em agosto de 2024, chegaram a 20.8 bilhões. Montante se refere apenas a empresas identificadas como de apostas online, mas classificadas no setor econômico inapropriado. No segmento apropriado, o gasto foi de R$ 0.3 bilhões.

 

Confira os dados dos estudos do DataSenado e do Banco Central

 

Voltado para o varejo, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) divulgou um panorama elencado por eles mesmos como “de risco”. Entre junho de 2023 e junho de 2024, foi estimado um gasto de cerca de R$68,2 bilhões em apostas, valor que representa 0,62% do PIB, 0,95% do consumo total e 22% da massa salarial. Nas plataformas, o nível de confiança apontado foi alto.



Apostas impactam em diferentes graus, mas principalmente os mais pobres

Cada um dos números computados nos estudos representa uma pessoa, com nome, sobrenome, idade, história de vida. O POVO+ ouviu seis apostadores, duas mulheres e quatro homens, que relataram a experiência com as apostas online. Os relatos revelaram as bets como a modalidade mais acessada. A época de ingresso varia entre 2016 a 2022. As idades, de 24 a 43 anos. O valor das apostas vai desde R$ 20,00, R$ 50,00 a até dívidas acumuladas de R$ 100 mil. Todos preferiram não ser identificados.

Os ingressos, em suma, envolveram convites de terceiros - amigos, familiares e influencers - somados ao amor pelo esporte ou por algum clube em específico. As primeiras apostas, segundo todos os relatos, geraram um ganho significativo, que fisgou os apostadores. “Fiz uma aposta e deu certo. Consegui no primeiro dia, R$ 70 reais a mais. Para mim foi algo encantador. Ter ganhado foi uma sensação maravilhosa. Não sabia o perigo que estava me envolvendo”, disse A., homem de 43 anos.

O grau de envolvimento é diferente de pessoa para pessoa, assim como ocorre com outros vícios: cigarro, álcool e drogas. Alguns apostam regularmente, perdem e se policiam; ou apostam pequenas quantidades, com desconfiança. Outros perdem o controle e adquirem dívidas. Um tiro no escuro.

Um homem de 25 anos conta que, inicialmente, investiu pequenas quantias, motivado pelas promessas de ganhos rápidos e pela aparente facilidade que um influenciador conhecido transmitia. A realidade se mostrou bem diferente e hoje ele diz se policiar. “Agora eu faço diferente, observo algumas estratégias e aposto só quando realmente sobra dinheiro. Já consegui recuperar boa parte do que perdi, e sei que esse dinheiro que possa entrar é realmente bem menos do que eu perderia se começasse a investir grandes quantias”, afirma.

O grau de envolvimento em apostas online é diferente de pessoa para pessoa, assim como ocorre com outros vícios, como cigarro, álcool e drogas.(Foto: Adobestock)
Foto: Adobestock O grau de envolvimento em apostas online é diferente de pessoa para pessoa, assim como ocorre com outros vícios, como cigarro, álcool e drogas.

Outros apostadores relatam cenários bem mais graves. M., mulher, 36 anos, disse ter começado de forma “recreativa”, mas a necessidade de resultados mais rápidos a levou aos cassinos online, o que aumentou a constância das apostas. “O problema não é só o dinheiro, a gente adoece. Traz problemas para dentro de casa. Começamos a buscar dinheiro para apostar. Mentimos, manipulamos”, disse.

A esperança de retorno do dinheiro mantém os apostadores na ativa. As pessoas ouvidas narram o pedido de empréstimos a colegas, bancos e agiotas. Na saúde mental, síndrome do pânico e ansiedade. “Era visível para todos, mas eu não conseguia entender o que acontecia comigo. O jogo era maior do que eu”, relatou E., homem de 32 anos.


 

Apostas representam um risco a saúde psicológica

"É uma pandemia, guardada a questão da gravidade”, disse Nísia Trindade, atual ministra da Saúde do Brasil, em setembro. Presidente da Fundação Oswaldo Cruz durante a pandemia de Covid-19, a pesquisadora atuou na linha de frente da produção de vacinas, correndo contra o tempo, em meio a notícias de milhares de mortos por uma crise sanitária inédita no século XXI. O paralelo revela um cenário preocupante no nível de dependência dos brasileiros com apostas.

Mundialmente, estima-se que 1,4% dos adultos no mundo, majoritariamente homens, têm o chamado "transtorno do jogo", uma condição que integra o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os dados são de um artigo recente publicado na revista científica “The Lancet”.

Há uma linha tênue quanto à virada de chave: de apostas casuais à dependência. Em suma, torna-se patológico quando o apostador passa a jogar para recuperar perdas e quando começa a mentir sobre ganhos/perdas e frequência de apostas. Os sintomas da ludopatia incluem dificuldades de concentração, dores de cabeça, aumento na impulsividade, dentre outros. Confira abaixo:



Caso os sintomas sejam percebidos, é necessário recorrer a tratamento psicológico, conforme a situação de cada um, o profissional decidirá se deverá haver encaminhamento a um psiquiatra. Há ainda grupos de apoio para pessoas viciadas em jogos online. No fim da reportagem, veja dicas de alguns desses grupos.

Como qualquer vício, pode-se reduzir danos. Boas práticas incluem a definição de limites no orçamento para apostas, compreensão das probabilidades do jogo, seleção de sites “confiáveis”, dentre outros. 

 

Confira as boas práticas para um jogo responsável  



Descontrole, dívidas e empobrecimento revelam a fragilidade da saúde financeira

Apesar do grande perigo de adoecimento mental, os impactos mais relatados foram os financeiros. Entre 1º de janeiro e 2 de outubro de 2024, o segmento de apostas esportivas recebeu no site "Reclame Aqui" um total de 144.020 queixas. Destas, 82% foram respondidas pelas empresas, e 68% classificadas como "resolvidas". As principais queixas relatadas pelos usuários incluem propaganda enganosa, estorno de valores pagos, suspensão de contas, pagamentos não localizados e questões relacionadas à qualidade do serviço prestado.

Um aspecto recorrente nas reclamações é relacionado a retirada dos valores ganhos. Cerca de 20% das queixas registradas envolve a menção direta à palavra “saque”. Em entrevista à rádio O POVO CBN, o CEO do Reclame Aqui, Edu Neves, afirmou que apesar de uma taxa razoável de resolução, a falta de regulação do setor "jogou o imbróglio na mão do consumidor"

Ainda segundo o executivo, a porcentagem de consumidores que não conseguiu resposta possivelmente representa aqueles que apostaram em empresas que estão, ilegalmente, explorando o mercado de apostas no Brasil. E a falta de controle sobre as regras, publicidade e boas práticas de jogo podem estar por trás dos efeitos nocivos do hábito de apostar.

Edu Neves, CEO do Reclame Aqui, diz que a falta de regulação do setor de apostas "jogou o imbróglio na mão do consumidor"(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Edu Neves, CEO do Reclame Aqui, diz que a falta de regulação do setor de apostas "jogou o imbróglio na mão do consumidor"

Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo identificou que 64% dos apostadores utiliza a renda principal para realizar os jogos, além de já terem deixado de comprar algum item para gastar com jogos. Dos entrevistados, 23% deixaram de comprar roupas, 19% deixaram de fazer compras em supermercados, 14% renunciaram a produtos de higiene e beleza, e 11% preteriram os cuidados com saúde, incluindo a compra de medicamentos.

O impacto também foi identificado em um levantamento feito pelo banco Santander. No relatório final, foi possível identificar que a porcentagem que os gastos com varejo representam na renda familiar caiu de um pico de 63% em 2021 para 57% em 2023, enquanto as atividades de jogos de azar legalizados registraram um aumento significativo, subindo de 0,8% da renda familiar em 2018 para algo em torno de 2,7% em 2023.

Com esses números, o banco estima que gasto com jogos de azar ficou na casa dos R$ 100 bilhões em 2023, contando com loterias federais, atividades informais e apostas esportivas online.

Esses dados levaram a Confederação Nacional do Comércio (CNC) a pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) a declaração de inconstitucionalidade da lei que regulamentou as apostas esportivas. Para a entidade, a liberação de jogos on-line está causando “prejuízos incalculáveis à economia doméstica, em especial ao comércio varejista, bem como à saúde mental dos apostadores”.

A ação argumenta, ainda, que as apostas virtuais “representam verdadeiro risco à situação financeira de muitos indivíduos, especialmente aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade”.

Isso porque os principais atingidos são as pessoas de baixa renda. Apesar de o vício em apostas atingir todas as classes, o impacto entre os mais pobres é maior, se levada em conta a falta que essa renda irá fazer no orçamento mensal.

O endividamento das famílias pode ser  uma das consequências do vício em apostas(Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil)
Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil O endividamento das famílias pode ser uma das consequências do vício em apostas

“Quando já não tem dinheiro, aquele pouco que você gasta com aposta vai fazer muita falta. A representatividade dos recursos para uma classe baixa é muito maior. As pessoas estão gastando mais com apostas do que com lazer”, disse Alesandra Benevides, doutora em economia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

De fato, os estudos aqui citados apontam a uma tendência de apostas mais concentradas em rendas mais baixas. O levantamento do Banco Central foi além e fez uma relação óbvia: este grupo inclui beneficiários do Bolsa Família. A população deixa de circular a renda, com lazer ou bens, para investir em algo com poucas chances de retorno. “O custo para as famílias é nítido com a redução do poder consumo”, diz Alesandra.



No auge da crise é possível apontar culpados?

Por definição, uma pandemia acontece quando uma doença infecciosa que se espalha indiscriminadamente entre a população de grande região geográfica. Com os dados levantados até agora, é possível falar em uma crise que é econômica, sanitária e política. Mas quem é o paciente zero da epidemia de apostas?

O professor de Finanças e Controle Gerencial do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead/UFRJ), Rodrigo Leite, explica que é um quadro multifatorial, fazendo uma analogia, justamente, com patologias. “Para uma doença se espalhar, ela tem que ter um ecossistema”, começa.

Os fatores para o “ambiente propício” consistem, primeiro, na liberação de 2018, pelo Governo Temer, somada à uma demanda reprimida no Brasil. Empresas estrangeiras se depararam com 200 milhões de habitantes, mal-acostumados com apostas online, em um país culturalmente apaixonado por esportes e por apostas - como veremos no próximo episódio.

Além disso, a proliferação de apostas online no Brasil envolve expansões tecnológicas, como o Pix, que facilitou transações bancárias. Houve ainda interesses da mídia, que percebeu possibilidades de anúncios em intervalos comerciais, em um mercado em decadência.

O próprio Governo vê uma grande oportunidade de arrecadação na taxação deste mercado. Somente com as licenças para funcionamento, estima-se um faturamento de R$ 3 bilhões para os cofres públicos. Cada uma custa R$ 30 milhões.

Se somadas as outorgas para funcionamento com a taxação sobre os prêmios e outros impostos, Rodrigo Leite estima uma porcentagem de impostos maior do que a do consumo. “A cada um real que ganham, vão pagar muito mais impostos do que uma empresa normal, até por causa dos malefícios disso. Assim como o cigarro que também paga muito mais impostos”, diz ele.

Somente com as licenças para funcionamento das empresas de aposta, o Governo Federal estima arrecadar cerca de R$ 3 bilhões para os cofres públicos(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Somente com as licenças para funcionamento das empresas de aposta, o Governo Federal estima arrecadar cerca de R$ 3 bilhões para os cofres públicos

E não há como falar em expansão de mercados virtuais sem mencionar os “digital influencers”. Com milhões de seguidores, essas personalidades da internet têm o poder de atrair novos jogadores para as plataformas de apostas, incentivando comportamentos de risco sem medir as consequências.

A influência dos “blogueiros” é tão grande que consiste na maior parte do investimento das casas de apostas, segundo Rodrigo Leite do Coppead/UFRJ. A maior linha de despesa destas empresas, explica, não são os prêmios, são os influencers. “Se ninguém aposta, quanto eu ganho? Nada. Então eu preciso dos influencers. Mas por que ele vai fazer propaganda da casa de aposta X e não a Y? Porque ganha mais. Tem uma receita grande, mas o lucro não é tão alto”, diz o professor.

Além disso, em diversas ocasiões, esses influenciadores se tornam “afiliados” das empresas, ou seja, sempre que novos apostadores indicam que conheceram a plataforma por meio de um determinado criador de conteúdo, esse influenciador recebe uma comissão adicional.



Na mira da justiça, o mercado de apostas pode esconder negócios escusos

No competitivo cenário dos contratos e “permutas” dos influencers, até menores de idade se envolvem com as apostas. Em junho, o Instituto Alana, por meio do Programa Criança e Consumo, enviou uma denúncia ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), de que nove influenciadores mirins que divulgavam ilegalmente jogos de azar no Instagram, sem que a plataforma interferisse. Um dos perfis denunciados era cearense, e os outros dos estados de Alagoas, Paraíba, São Paulo e Rio de Janeiro.

Quatro meses depois, o Alana identificou que quatro dos perfis citados anteriormente continuam com a prática irregular. Na nova denúncia, feita na primeira semana de outubro, o Instituto afirmou não ter identificado “quaisquer mudanças nos sistemas de moderação ou nas políticas do Instagram para coibir a circulação desse tipo de conteúdo em perfis geridos e frequentados por crianças e adolescentes”.

Várias organizações estão trabalhando para regular a publicidade das apostas, distanciando o mercado das crianças e adolescentes (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil Várias organizações estão trabalhando para regular a publicidade das apostas, distanciando o mercado das crianças e adolescentes

Sobre o caso, a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) anunciou que, entre 9 e 12 de outubro, articula a campanha de conscientização “Aposta não é coisa de criança”. O objetivo seria combater o uso de plataformas de apostas por menores de idade. A entidade informou que, apesar de já existir a proibição do cadastro de crianças nas plataformas regulamentadas, a campanha quer alertar pais e responsáveis sobre a importância de não permitir o acesso das crianças utilizando o CPF de um adulto.

O diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável destacou que as apostas são uma forma de entretenimento e que é preciso que as estratégias de divulgação sejam responsáveis e conscientes. "A publicidade das casas de apostas não pode, sob nenhuma hipótese, ressoar com menores de idade", disse.
Geffi pontuou, ainda, que é preciso identificar e desmentir narrativas apresentadas por influenciadores que vendem cursos online nos quais prometem ensinar métodos de enriquecer por meio das apostas. Nas palavras dele, a proposição "é uma canalhice".

 

 

Vale a pena faturar com algo nocivo para a população?

Influencers, empresas estrangeiras, políticos, veículos de mídia, clubes esportivos. O mercado de Bets tem interessados o suficiente para que uma proibição, por exemplo, não esteja no horizonte. É uma “caixa de pandora”, como cita Rodrigo Leite, da Coppead/UFRJ. Uma vez aberta, não pode ser fechada.

“Não é interessante pra ninguém proibir. Como você fala pros clubes, pras TVs, pros influencers, que não terão mais essa receita? Que político quer fazer isso? Se fizer, é assinar um atestado de que irá se reeleger. Como você tira R$ 15 bilhões do orçamento? Como você vai abrir mão de uma receita que pode tirar 50% do déficit?”, questiona Leite.

O dilema ético e moral se assemelha a cobranças com cigarros e álcool. As pessoas deixam de consumir para investir em algo possivelmente sem retorno, com grandes malefícios. Arriscam ter a saúde mental impactada, a relação com a família.

Mais de 2 mil sites de apostas foram retirados do ar, mas medida ainda não é suficiente para garantir a prática responsável dos jogos (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Mais de 2 mil sites de apostas foram retirados do ar, mas medida ainda não é suficiente para garantir a prática responsável dos jogos

“O problema é o empobrecimento da população. Uma população de renda mais baixa apostando e óbvio que a participação no orçamento é muito maior nesta parcela. Imagine, a pessoa ganha pouco e o pouco que ganha ainda gasta com aposta. Não é benéfico. Quem ganha é um em um milhão. A pessoa vai criando a falsa esperança”, diz Alesandra Benevides, do curso de Economia da UFC.

Para a economista, o Governo precisa fazer a parte dele, não apenas com cobranças, mas com prevenção. Ela defende “investimento forte” em educação financeira, como medida de médio e longo prazo. O intuito é que o cidadão tome decisões de “forma racional”, que saiba dos malefícios, das baixas probabilidades de retorno, caso entre no universo dos jogos.

“Há uma irracionalidade, de você ter pouco dinheiro e apostar. Eu vejo essa política de médio e longo prazo acontecer e o governo tem que conseguir, junto às bets, restringir isso. Agora de jeito nenhum que eu sou favorável à tutela do beneficiário. A pessoa tem a livre escolha, agora, é preciso regulamentar”.

 

 

Uma corrida em busca de soluções

A questão da propaganda tem sido citada por vários interlocutores do governo como central no manejo da crise das bets. No final de setembro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou medidas em quatro frentes para tentar impor limites à situação das empresas de aposta no Brasil.

Uma delas envolve um maior controle sobre a publicidade, estipulando regras a serem seguidas. Enquanto isso, a primeira ação concreta foi listar as empresas regulamentadas e banir do País as que não passaram pelo devido processo de credenciamento. No horizonte do governo Lula está, ainda, banir o uso cartão de crédito e cartão do bolsa família como forma de pagamento, além de fazer o acompanhamento de apostas e prêmios com base no CPF.

Segundo Haddad, quem aposta muito e ganha pouco pode estar com dependência do jogo e quem aposta pouco, e ganha muito pode estar envolvido em algo ilícito. O ministro pontuou que a ideia é reforçar mecanismos para desestimular o uso descontrolado dessas plataformas. Haddad também falou em “tratar jogos como cigarros”, enquanto o secretário-executivo da pasta, Dario Durigan, afirmou que o tema é uma “preocupação enorme” para o governo e as plataformas autorizadas a operar no país serão obrigadas a compartilhar informações com o governo para fins de controle.

A cúpula do Ministério da Fazenda anunciou que está trabalhando para reforçar mecanismos que desestimulem o uso descontrolado dessas plataformas(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil A cúpula do Ministério da Fazenda anunciou que está trabalhando para reforçar mecanismos que desestimulem o uso descontrolado dessas plataformas

O Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, entidade que agrega empresas do mercado de apostas, afirma apoiar integralmente as declarações do Ministro da Fazenda, a respeito das medidas planejadas pelo governo para regular o setor no Brasil. André Geffi, diretor-presidente da instituição, afirmou que a regulação, "mais do que bem-vinda, é necessária", e que as iniciativas de padronização de conduta são importantes para o setor.

Geffi classificou como positivas as medidas anunciadas, com destaque para o desligamento das plataformas que estão irregulares, anunciado pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Para o dirigente, a responsabilidade em divulgas as boas práticas em apostas é uma obrigação compartilhada entre o Estado e os operadores do sistema, e mais do que campanhas de conscientização é preciso "trabalhar ativamente para evitar as complicações que podem surgir no mercado".

 

 

Ajuda para quem precisa 

 

 Organizações da sociedade civil promovem o acolhimento de viciados em apostas online. A irmandade Jogadores Anônimos (JA) possui linhas de atuação mundial e nacionalmente. Não há mensalidades ou taxas, o único requisito, segundo o portal oficial, é “a vontade de parar de jogar”. Das fontes ouvidas, quatro fazem parte dos JA.

Em Fortaleza, dois grupos realizam reuniões presenciais. O JA Fortaleza realiza encontros às segundas, às 19h, na Rua São Paulo, 32 Sala 316 - Centro. O telefone para contato é (85) 98929-5529. Já no JA Iracema, os encontros ocorrem às quintas-feiras (às 19h30) e aos sábados (às 10h). O local é a Av. Almirante Barroso, 949 - Praia de Iracema.

 

 

Apostas impactam principalmente os mais pobres

Cada um dos números computados nos estudos representa uma pessoa, com nome, sobrenome, idade, história de vida. O POVO ouviu seis apostadores, duas mulheres e quatro homens, que relataram a experiência com as apostas online. As bets são apontadas como a modalidade mais acessada. A época de ingresso varia entre 2016 a 2022. As idades, de 24 a 43 anos. O valor das apostas vai desde R$ 20, R$ 50 até dívidas de R$ 100 mil. Todos preferiram não ser identificados.

Os ingressos, em suma, envolveram convites de terceiros - amigos, familiares e influencers - somados ao amor pelo esporte ou por algum clube em específico. As primeiras apostas, segundo todos os relatos, geraram um ganho que fisgou os apostadores. "Fiz uma aposta e deu certo. Consegui no primeiro dia R$ 70 reais a mais. Para mim foi algo encantador. Não sabia o perigo que estava me envolvendo", disse A., homem de 43 anos.

O grau de envolvimento é diferente de pessoa para pessoa, assim como ocorre com outros vícios: cigarro, álcool e drogas. Alguns apostam regularmente, perdem e se policiam; ou apostam pequenas quantidades, com desconfiança. Outros perdem o controle e adquirem dívidas. Um tiro no escuro.

Um homem de 25 anos conta que, inicialmente, investiu pequenas quantias, motivado pelas promessas de ganhos rápidos e pela aparente facilidade que um influenciador conhecido transmitia. A realidade se mostrou bem diferente. "Agora eu faço diferente, observo algumas estratégias e aposto só quando realmente sobra dinheiro. Já consegui recuperar boa parte do que perdi, e sei que esse dinheiro que possa entrar é realmente bem menos do que eu perderia se investisse grandes quantias."

Outros apostadores relatam cenários bem mais graves. M., mulher, 36 anos, disse ter começado de forma "recreativa", mas a necessidade de resultados mais rápidos a levou aos cassinos online, o que aumentou a constância das apostas. "O problema não é só o dinheiro, a gente adoece. Traz problemas para dentro de casa. Começamos a buscar dinheiro para apostar. Mentimos, manipulamos", disse.

A esperança de retorno do dinheiro mantém os apostadores na ativa. As pessoas ouvidas narram o pedido de empréstimos a colegas, bancos e agiotas. Na saúde mental, síndrome do pânico e ansiedade. "Era visível para todos, mas eu não conseguia entender o que acontecia comigo", relatou E., homem de 32 anos.

É possível apontar culpados?

Por definição, uma pandemia acontece quando uma doença infecciosa que se espalha indiscriminadamente entre a população de grande região geográfica. Com os dados levantados até agora, é possível falar em uma crise que é econômica, sanitária e política. Mas quem é o paciente zero da epidemia de apostas?

O professor de Finanças e Controle Gerencial do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead/UFRJ), Rodrigo Leite, explica que é um quadro multifatorial, fazendo uma analogia, justamente, com patologias. "Para uma doença se espalhar, ela tem que ter um ecossistema", começa.

Os fatores para o "ambiente propício" consistem, primeiro, na liberação de 2018, pelo Governo Temer, somada à uma demanda reprimida no Brasil. Empresas estrangeiras se depararam com 200 milhões de habitantes, mal-acostumados com apostas online, em um país culturalmente apaixonado por esportes e por apostas - como veremos no próximo episódio.

Além disso, a proliferação de apostas online no Brasil envolve expansões tecnológicas, como o Pix, que facilitou transações bancárias. Houve ainda interesses da mídia, que percebeu possibilidades de anúncios em intervalos comerciais, em um mercado em decadência.

O próprio Governo vê uma grande oportunidade de arrecadação na taxação deste mercado. Somente com as licenças para funcionamento, estima-se um faturamento de R$ 3 bilhões para os cofres públicos. Cada uma custa R$ 30 milhões.

Se somadas as outorgas para funcionamento com a taxação sobre os prêmios e outros impostos, Rodrigo Leite estima uma porcentagem de impostos maior do que a do consumo. "A cada um real que ganham, vão pagar muito mais impostos do que uma empresa normal, até por causa dos malefícios disso. Assim como o cigarro que também paga muito mais impostos", diz ele.E não há como falar em expansão de mercados virtuais sem mencionar os "digitais influencers". Com milhões de seguidores, essas personalidades da internet têm o poder de atrair novos jogadores para as plataformas de apostas, incentivando comportamentos de risco sem medir as consequências.

A influência dos "blogueiros" é tão grande que consiste na maior parte do investimento das casas de apostas, segundo Rodrigo Leite do Coppead/UFRJ. A maior linha de despesa destas empresas, explica, não são os prêmios, são os influencers. "Se ninguém aposta, quanto eu ganho? Nada. Então eu preciso dos influencers. Mas por que ele vai fazer propaganda da casa de aposta X e não a Y? Porque ganha mais. Tem uma receita grande, mas o lucro não é tão alto", diz o professor.

Além disso, em diversas ocasiões, esses influenciadores se tornam "afiliados" das empresas, ou seja, sempre que novos apostadores indicam que conheceram a plataforma por meio de um determinado criador de conteúdo, esse influenciador recebe uma comissão adicional.

Mercado pode esconder negócios escusos

No competitivo cenário dos contratos e "permutas" dos influencers, até menores de idade se envolvem com as apostas. Em junho, o Instituto Alana, por meio do Programa Criança e Consumo, enviou uma denúncia ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), de que nove influenciadores mirins que divulgavam ilegalmente jogos de azar no Instagram, sem que a plataforma interferisse. Um dos perfis denunciados era cearense, e os outros dos estados de Alagoas, Paraíba, São Paulo e Rio de Janeiro.

Quatro meses depois, o Alana identificou que quatro dos perfis citados anteriormente continuam com a prática irregular. Na nova denúncia, feita na primeira semana de outubro, o Instituto afirmou não ter identificado "quaisquer mudanças nos sistemas de moderação ou nas políticas do Instagram para coibir a circulação desse tipo de conteúdo em perfis geridos e frequentados por crianças e adolescentes".

Sobre o caso, a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) articulou, em outubro, a campanha de conscientização "Aposta não é coisa de criança". O objetivo seria combater o uso de plataformas de apostas por menores de idade. A entidade informou que, apesar de já existir a proibição do cadastro de crianças nas plataformas regulamentadas, a campanha quer alertar pais e responsáveis sobre a importância de não permitir o acesso das crianças utilizando o CPF de um adulto.

O diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável destacou que as apostas são uma forma de entretenimento e que é preciso que as estratégias de divulgação sejam responsáveis e conscientes. "A publicidade das casas de apostas não pode, sob nenhuma hipótese, ressoar com menores de idade", disse.

Geffi pontuou, ainda, que é preciso identificar e desmentir narrativas apresentadas por influenciadores que vendem cursos online nos quais prometem ensinar métodos de enriquecer por meio das apostas. Nas palavras dele, a proposição "é uma canalhice".

Influencers, empresas estrangeiras, políticos, veículos de mídia, clubes esportivo: o mercado de Bets tem interessados o suficiente para que uma proibição, por exemplo, não esteja no horizonte. É uma "caixa de pandora", como cita Rodrigo Leite, professor da Coppead/UFRJ. Uma vez aberta, não pode ser fechada.

"Não é interessante pra ninguém proibir. Como você fala pros clubes, pras TVs, pros influencers, que não terão mais essa receita? Que político quer fazer isso? Como você tira R$ 15 bilhões do orçamento? Como você vai abrir mão de uma receita que pode tirar 50% do déficit?", questiona Leite.

O dilema ético e moral se assemelha a cobranças com cigarros e álcool. As pessoas deixam de consumir para investir em algo possivelmente sem retorno, com grandes malefícios. Arriscam ter a saúde mental impactada, a relação com a família.

"O problema é o empobrecimento da população. Não é benéfico. Quem ganha é um em um milhão, é uma falsa esperança", diz Alesandra Benevides, do curso de Economia da UFC.

Queixa

Apesar do grande perigo de adoecimento mental, os impactos mais relatados foram os financeiros. Entre 1º de janeiro e 2 de outubro de 2024, o segmento de apostas esportivas recebeu no site "Reclame Aqui" um total de 144.020 queixas de consumidores

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