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O que leva uma pessoa ao vício em apostas?
Reportagem Seriada

O que leva uma pessoa ao vício em apostas?

Com popularidade crescente em todo o Brasil, as apostas esportivas começam a demonstrar um lado sombrio que leva apostadores a perda de controle e problemas de saúde mental. Especialistas indicam as razões que levam os apostadores ao vício e apontam caminhos de tratamento
Episódio 4

O que leva uma pessoa ao vício em apostas?

Com popularidade crescente em todo o Brasil, as apostas esportivas começam a demonstrar um lado sombrio que leva apostadores a perda de controle e problemas de saúde mental. Especialistas indicam as razões que levam os apostadores ao vício e apontam caminhos de tratamento
Episódio 4
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Enquanto milhares de torcedores se uniam para celebrar uma vitória do Ceará pelo Campeonato Estadual, um homem solitário se destacava. Em meio à multidão, ele narrava por um rádio todas as jogadas realizadas no gramado do estádio Presidente Vargas, em Fortaleza. Transmitindo tudo em inglês, logo chamou atenção, pois seu trabalho não era para alguma equipe de rádio ou TV, mas para um grupo de apostadores em Singapura. Isso aconteceu há cerca de duas décadas.

“Uns caras me pagaram alguns dólares para narrar o jogo, passando essas informações privilegiadas para eles”, justificou o homem ao então estudante de Medicina, Eduardo Bacelar. Os detalhes da partida – como o ano, o adversário e o placar – se perderam na memória, restando apenas um fato. “O Ceará venceu por goleada”, orgulha-se o hoje psiquiatra e dono de um vasto currículo acadêmico e clínico.

Na época em que Bacelar encontrou o homem transmitindo o Campeonato Cearense para pessoas do outro lado do mundo, o cenário das apostas esportivas inexistia no Brasil – pelo menos de maneira legal. Quase 20 anos depois, porém, as chamadas “Bets” estão por toda parte, dentro e fora do esporte, provocando sérias discussões sobre regras e riscos. Especialistas já apontam para uma verdadeira epidemia de pessoas viciadas em apostas, as quais acarretam problemas de saúde e financeiro em um público crescente.

A história das apostas em território nacional possui uma relação marcante com o humor e a visão de determinados presidentes do Brasil. Ao longo dos últimos cem anos, há registros tanto de apoio quanto de forte repressão aos estabelecimentos que promovem esse segmento.

Embora nunca estivessem completamente ausentes da realidade dos brasileiros, que burlavam as leis apostando em sites estrangeiros, as casas de apostas ganharam força nos últimos cinco anos no País. Com o afrouxamento das leis e cifras que fazem inveja a qualquer indústria, as apostas se consolidaram no mercado e caíram no gosto do público brasileiro.

Para melhor situá-lo nessa discussão, confira uma breve linha do tempo do setor de apostas no Brasil.

 

Da proibição à regulamentação das apostas no Brasil

 

 

A força das casas de apostas se evidencia tanto pela percepção quanto pelos números. Na principal competição nacional de futebol, por exemplo, a Série A do Campeonato Brasileiro, as bets representam 80% dos patrocínios dos clubes. Seguindo essa tendência, torneios e estádios passaram a ser apoiados ou até mesmo a incorporar o nome de casas de apostas em suas fachadas.

Basta ligar a TV durante qualquer transmissão esportiva para ser inundado por uma enxurrada de propagandas de casas de apostas. Além disso, influenciadores digitais – esportivos ou não –, jornalistas e até jogadores profissionais entram nessa equação, utilizando seu prestígio e promessas de ganhos fáceis para atrair cada vez mais novos apostadores.

Com o crescimento da popularidade dessas plataformas, emergiu uma preocupação progressiva no campo da saúde mental no Brasil: o vício em apostas. Para entender as inúmeras problemáticas envolvidas, é essencial compreender como uma atividade que surge para “dar mais emoção” a uma partida consegue se transformar em uma compulsão que leva apostadores a buscar ajuda psiquiátrica.

 

 

Como a dependência se forma no cérebro?

Para quem acompanha competições esportivas, o mundo das bets parece oferecer emoções e recompensas maiores do que o simples ato de torcer. Com as apostas, para além dos sentimentos próprios de torcedor, soma-se fatores de risco como ganhar e perder de maneira imediata, o que atinge sobretudo uma região muito sensível do corpo humano: o bolso. Tudo isso, ao passo de um processo complexo e silencioso que se desenrola no cérebro de seus jogadores.

Segundo o psiquiatra Eduardo Bacelar, especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o vício em apostas é uma armadilha que altera as estruturas cerebrais responsáveis por controlar o comportamento e buscar prazer. “O cérebro começa a funcionar de maneira a alimentar o impulso de apostar, tornando-se refém de um ciclo que se intensifica a cada tentativa de controlar o desejo”, afirma, destacando o impacto profundo que isso causa na vida do indivíduo.

Eduardo Bacelar é psiquiatra e especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Eduardo Bacelar é psiquiatra e especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Mestre e doutor em psiquiatria pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Bacelar explica que a base do vício está no sistema de recompensa do cérebro, onde áreas como o núcleo accumbens e o córtex pré-frontal desempenham papéis essenciais. O núcleo accumbens é ativado quando a pessoa experimenta algo prazeroso, como uma vitória numa aposta, liberando dopamina, neurotransmissor associado à sensação de prazer.

Com o tempo, no entanto, o córtex pré-frontal, que é responsável pelo controle inibitório e pela capacidade de tomar decisões racionais, se desgasta, tornando o ato de resistir ao impulso cada vez mais difícil. “O que vemos é uma desconexão progressiva entre o desejo de apostar e a habilidade do cérebro de regular esse comportamento”, menciona, apontando que esse processo é particularmente mais perigoso em jovens, cujos cérebros ainda estão em fase de desenvolvimento.

O especialista aponta que a maturação cerebral pode se estender até os 25 anos, e durante esse período, os jovens são mais suscetíveis a desenvolver dependências. "Quanto mais exposto o cérebro está ao estímulo de prazer imediato, maior é o risco de ele se condicionar a buscar esse estímulo compulsivamente", alerta. Isso cria um ciclo vicioso, onde o prazer de uma vitória é substituído pelo desespero de recuperar perdas, mantendo o jogador preso numa espiral de dependência.

Eduardo Bacelar, então, compara o vício em apostas a dependências químicas, como o alcoolismo ou o vício em drogas, ressaltando que o impacto no cérebro é similar.

 

"As apostas têm o mesmo efeito que substâncias químicas, porque ambas mexem com o sistema de recompensa. A pessoa perde a capacidade de parar, mesmo sabendo que o comportamento é autodestrutivo" Psiquiatra Eduardo Bacelar comenta que a progressão do vício em aposta é lenta, mas devastadora e que leva o indivíduo a uma compulsividade crescente.

  

 

As estratégias dos sites para fisgar novos apostadores

As plataformas de apostas esportivas investem pesadamente em publicidade e utilizam elementos de gamificação, semelhantes aos de jogos digitais, para atrair e manter os jogadores ativos. Embora diferentes dos tradicionais jogos eletrônicos, as apostas oferecem recompensas financeiras e psicológicas similares, as quais ajudam a prender a atenção dos apostadores.

O professor Artur de Oliveira, da UFC em Itapajé, destaca que a imersão é um dos principais prazeres nos jogos, embora questione se esse elemento está igualmente presente nas plataformas de apostas. Ele sugere, porém, que em casos de vício, a imersão pode desempenhar um papel significativo, uma vez que, nos jogos, o jogador perde a noção da realidade e se integra à interface.

Mestre e doutorando em Ciência da Computação pela UFC, possuindo foco de estudos em jogos digitais, Artur destaca que sites de apostas tendem a modelar o risco e a probabilidade, o que se alinha com a emoção gerada pela incerteza. Ele explica que, ao lidar com probabilidades, os jogadores experimentam prazeres ligados à expectativa de ganhar ou perder.

Artur de Oliveira é professor de Ciência da Computação, na Universidade Federal do Ceará (UFC), em Itapajé(Foto: Viktor Braga / UFC Itapajé)
Foto: Viktor Braga / UFC Itapajé Artur de Oliveira é professor de Ciência da Computação, na Universidade Federal do Ceará (UFC), em Itapajé

Além disso, aponta que um dos prazeres mais perigosos envolvidos nas apostas está relacionado à perda total de recursos. "Quando você perde tudo, isso pode ser libertador, porque você não tem mais nada a perder. Essa sensação pode ser viciante, já que o jogador pode se ver atraído por uma possível recuperação total", diz, elucidando que esse tipo de prazer é perigoso porque leva o apostador a buscar uma "virada" em situações extremas, alimentando um ciclo de perdas e tentativas de recuperação.

A combinação desses elementos – incerteza, recompensa imediata, suavização das derrotas e a simplicidade das regras – cria um ambiente altamente envolvente para os jogadores, com um apelo psicológico que vai além do ganho financeiro. Segundo Artur de Oliveira, é nesse contexto que a gamificação se torna uma ferramenta poderosa para prender a atenção dos apostadores.

Outro fator que influencia na permanência dos apostadores de maneira ativa está ligado a diretamente à própria estrutura das plataforma. No artigo “Em busca de mais excitação: Reflexões acerca das apostas esportivas”, escrito por Fernando Resende Cavalcante, publicado pela Universidade de Brasília (UnB), os sites de apostas utilizam de diversas estratégias, sendo as principais delas:

 

 

Um caminho que pode levar a desesperança, mas que tem volta

Com regras simples e acesso facilitado, as plataformas de apostas estão disponíveis na palma da mão a qualquer instante. Muitos entram nesse universo movidos pela curiosidade ou como uma forma de experimentar algo novo. No entanto, se não houver cautela, aquilo que começa como uma distração pode rapidamente evoluir para algum nível de dependência, conforme aponta o psiquiatra Eduardo Bacelar.

Segundo o especialista, a maioria das pessoas não ingressa nesse meio com a intenção de se viciar. No início, há uma tentativa de “fazer uma renda extra” ou simplesmente aumentar a emoção de um jogo. Com o passar do tempo, porém, essa percepção ganha contornos problemáticos à medida em que o desequilíbrio entre ganhos e perdas vai aumentando.

 

"No começo, muitas vezes o apostador tem até resultados positivos, o que reforça sua confiança. Ele compartilha as pequenas vitórias com amigos, o que o faz acreditar que está no controle da situação" Eduardo Barcelar, que comenta que depois de um período de ganhos, as perdas financeiras começam a se tornar mais frequentes e o apostador passa a desenvolver determinados comportamentos.

 

A partir do momento em que o envolvimento com as apostas deixa de ser um passatempo e transforma a rotina do indivíduo, alguns sinais se evidenciam. De acordo com Eduardo Bacelar, entre as atitudes estão quando o apostador começa a mentir para amigos e familiares sobre quanto perdeu ou quanto apostou; e/ou quando a pressão para recuperar o dinheiro perdido leva o apostador a ter comportamentos antissociais, como pegar dinheiro emprestado sem dizer a real intenção ou até envolver-se com agiotas.

A psicóloga Noelle Abreu Siebra também aponta para indícios como descontrole de tempo e dinheiro empreendido nas apostas, priorização do jogo em detrimento de responsabilidades pessoais e profissionais, além dos problemas financeiros ocasionados pelas apostas. “Uma vez que esses sinais sejam identificados, é muito importante que a família e amigos sirvam como rede de apoio, considerando que esse sujeito está em sofrimento, e que pode ser muito difícil que tome consciência do vício”, diz.

Noelle Abreu Siebra é psicóloga e coordenadora do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicopedagógico (Naap) da UniFanor Wyden(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Noelle Abreu Siebra é psicóloga e coordenadora do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicopedagógico (Naap) da UniFanor Wyden

Coordenadora do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicopedagógico (Naap) da UniFanor Wyden, ela comenta que é preciso analisar cada caso de maneira individual, mas que a depender do contexto o apostador deve passar por acompanhamento psicológico e psiquiátrico concomitante. A necessidade de um olhar mais próximo ocorre por o vício pode afetar diretamente as dinâmicas pessoais e profissionais do apostador.

“Quando a pessoa tem uma relação não-saudável com o jogo, provavelmente existirá impacto nas dinâmicas das relações. O impacto financeiro é um dos primeiros a afetar o sujeito e sua família, principalmente se há prejuízo na renda familiar ou se a pessoa deixa de cumprir com suas responsabilidades financeiras. A família e amigos também sofrem ao observarem uma pessoa querida em um contexto danoso, além de serem diretamente afetadas quando há negligência, por exemplo, com as responsabilidades parentais, com compromissos afetivos e de rotina”, afirma.

Na prática clínica, Eduardo Bacelar retoma, afirmando que pacientes relatam sentimentos de depressão e ansiedade. "A pessoa começa a sentir apatia, perde interesse por outras atividades, e o jogo passa a dominar sua vida. Muitas vezes, não é mais o prazer da aposta que a move, mas a obrigação de tentar consertar as consequências das perdas”, testemunha. Apesar de tudo isso, há possibilidade de reverter o quadro mesmo em casos avançados de vício.

Diretor do Centro Terapêutico Villa Vita, em Fortaleza, Bacelar especifica que o tratamento envolve não apenas a mudança de comportamento, mas também a compreensão dos mecanismos psicológicos que mantêm o vício ativo. Uma das estratégias usadas é a entrevista motivacional, que visa reforçar a autoestima do paciente e oferecer apoio para que ele retome o controle sobre sua vida.

"Não adianta apenas dizer para a pessoa que ela é forte ou que pode vencer. O trabalho precisa ser mais profundo, mostrando que há saídas e que o comportamento pode ser modificado com as ferramentas certas", conclui.

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