As mudanças socioeconômicas e culturais advindas da disseminação de computadores a partir da década de 1990 estão entrando em um novo capítulo na história da tecnologia moderna com o uso da inteligência artificial (IA). Países estão buscando regulamentar o cenário, incluindo o Brasil, e setores econômicos já apontam oportunidades e desafios à frente.
O Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) Nº 2338/2023 em dezembro de 2024. Agora o texto que regula a IA no País vai para análise da Câmara dos Deputados, definindo regras para o desenvolvimento e utilização dos sistemas. O documento engloba sugestões de outras propostas que passaram pelo local e dezenas de emendas de senadores.
Uma das principais definições é que os sistemas de IA foram divididos em níveis de risco, com regulações distintas em cada categoria, a depender do impacto na vida e nos direitos fundamentais. Foram proibidas aplicações que apresentem risco excessivo, como os sistemas de armas autônomas (SAA), que podem definir e atacar alvos sem intervenção humana.
O advogado e presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual, Mídias e Novas Tecnologias da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), Roberto Reial Linhares, pontuou, assim, que a necessidade de legislação é urgente e complexa, especialmente em razão do rápido desenvolvimento digital, pois surgem atualizações a cada instante.
Com o PL, setores econômicos veem benefícios relacionados à segurança, confiança, ética, integração com mercados globais e eficiência produtiva, apesar de desafios ligados a custos, possivelmente, por meio do investimento em infraestruturas e consultorias especializadas, à dificuldade de adaptação e à necessidade de qualificação profissional.
O diretor de tecnologia e inovação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Jefferson Gomes, acredita que o Brasil deva se valer de uma regulamentação moderna e dinâmica para que a IA seja uma ferramenta de competitividade para as indústrias especificamente. O foco, na sua visão, deve ser na aplicação da tecnologia e não na tecnologia em si.
Todavia, esta tecnologia ainda não é tão disseminada no setor industrial do Ceará, isso porque apenas 9% do segmento dispõe de projetos de IA em implementação no Estado, de acordo com o gerente do Observatório da Indústria e economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Guilherme Muchale.
Guilherme vê que o projeto de lei deve fomentar a continuidade dos investimentos, tendo em vista a necessidade do desenvolvimento da Indústria 4.0 – voltada à transformação digital. A Fiec tem apoiado o crescimento da IA no setor industrial e a sua regulação, na busca pela melhoria operacional em um ambiente globalmente competitivo.
“É importante que haja interoperabilidade do marco regulatório com legislações estrangeiras, evitando o risco de isolamento tecnológico e fuga de projetos de desenvolvimento e investimentos no tema. O Brasil tem potencial para atrair investimentos internacionais na cadeia de valor da IA”, considerando a energia renovável e os data centers, segundo Jefferson.
O Ceará já tem se atentado aos possíveis potenciais tecnológicos. O governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), tem a intenção de criar um polo de data centers na região da Praia do Futuro, em Fortaleza. E o prefeito Evandro Leitão (PT) mira a construção de um centro tecnológico entre as Avenidas Dom Manuel e Monsenhor Tabosa, com startups.
Para a coordenadora de inovação e empreendedorismo da Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Estado (Secitece), Sarah Monteiro, o Ceará – como um dos maiores hubs de dados do mundo – possui posicionamento estratégico para se consolidar neste mercado digital. “Vamos ver um Ceará, também, como um grande hub em IA.”
O empresário e professor da Faculdade CDL – cuja sigla faz referência à Câmara dos Dirigentes Lojistas –, Assis Júnior, reconheceu que a IA tem feito grande diferença no comércio e que o crescimento dessa tecnologia pode levar à prosperidade das empresas. Não deixou de citar, no entanto, o desafio ético e de preservação da privacidade dos dados.
“Eu acredito que a inteligência artificial no nosso comércio varejista é uma grande oportunidade para os empresários proporcionarem uma experiência de consumo para o cliente. (...) Se a empresa não tiver o cuidado com a legitimidade e o armazenamento dos dados dos seus clientes, essas informações podem vazar; e aí é um cuidado, um desafio.” (Com Agência Senado)
A regulamentação precisa atentar-se ao equilíbrio entre a inovação e a proteção dos direitos, segundo a coordenadora do Comitê de Inteligência Artificial da Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net), Ana Bialer. Ela explicou que as empresas brasileiras ainda precisam melhorar o nível de governança e gestão de riscos na IA.
No varejo, a especialista ponderou se a regulação pode influenciar a competitividade entre grandes e pequenos comerciantes. O eventual aumento de custos para as empresas garantirem a conformidade com as novas regras é visto com atenção. Grandes varejistas devem sair na frente, enquanto pequenos negócios podem ter dificuldades de adaptação.
A diretora de políticas públicas e regulamentação da Associação Brasileira de Startups (ABStartups), Bárbara Furiati, ressaltou que a regulamentação deve criar um ambiente mais seguro e ético, mas precisa de equilíbrio, de fato, para não sufocar também o potencial inovador das startups – empresas de tecnologia.
“A nova legislação da inteligência artificial, como proposta atualmente, posiciona o Brasil de maneira mais alinhada com padrões da União Europeia e alguns estados dos Estados Unidos (EUA). Essa harmonização é particularmente importante para o desenvolvimento de produtos baseados em inteligência artificial”, acrescentou.
Cerca de 14 audiências públicas foram realizadas para debater o PL, com a participação da sociedade civil, de vários setores e de especialistas em tecnologia e inovação. Conforme o senador Carlos Viana (Podemos), presidente da comissão temporária sobre o tema, o dispositivo é resultado de consenso, e colocou o ser humano no centro das decisões.
IA é uma das prioridades do mercado de trabalho
A inteligência artificial é uma das prioridades para o mercado de trabalho em 2025, de acordo com levantamento da plataforma gratuita de empregos Catho. A saúde mental e novos modelos de atuação também tiveram destaque para o futuro corporativo. Cerca de 66% dos profissionais usam ou já usaram ferramentas de IA para suporte ou orientação no mercado de trabalho, como o auxílio em atividades cotidianas, o aprimoramento de atividades e produtividade, bem como demandas acadêmicas.
As dicas de como construir um bom currículo (22,6%), dúvidas sobre temas específicos da área de atuação (19,2%), avaliação de currículo (14,6%) e esclarecimento de dúvidas sobre plano de carreira (14,5%) estão entre os tópicos mais comuns consultados na IA. De acordo com o diretor de vendas B2C (negócios para consumidores), marketing e produtos da companhia, Fabio Maeda, a tecnologia está transformando o trabalho em múltiplas frentes, desde a automação de processos até o desenvolvimento de competências essenciais.
"Isso também vem refletindo nas fases de contratação, onde 49% dos profissionais acreditam ser muito positivo as etapas dos processos seletivos serem feitas de modo online, facilitando a participação e acessibilidade", indicou o especialista. A procura pela qualificação profissional em inteligência artificial e novas tecnologias é, também, uma prioridade para 30,4% das pessoas consultadas na pesquisa, o que a Catho reforça ser reflexo de um mercado mais digitalizado e da importância das competências técnicas.
A mudança cultural abarca tópicos relacionados à saúde mental, pois os trabalhadores estão mais atentos às suas necessidades emocionais e aos impactos de um ambiente saudável, segundo Fabio. Os horários flexíveis (45,7%) e o desenvolvimento de habilidades comportamentais (17,8%) foram indicados como preferenciais no estudo. Há uma busca por condições de trabalho que promovam equilíbrio, com 28,7% dos entrevistados.
8 em cada 10 bancos com IA
A expectativa é que 86% das instituições bancárias implementem ou iniciem preparativos para operações com inteligência artificial generativa - tecnologia capaz de criar novos conteúdos a partir de dados existentes -, conforme a International Business Machines (IBM). Para 78% dos bancos pesquisados em 2024, a implementação tática da tecnologia já está ocorrendo em pelo menos um caso de uso. Outros 8% já estão focando em um uso sistemático e abrangente da IA nos negócios.
Foram analisados relatórios financeiros de quase 2.000 instituições pelo mundo, incluindo o Brasil, além de uma pesquisa com 600 executivos de bancos. Na América Latina, quatro pilares dominaram o levantamento. O primeiro é que 31% dos entrevistados disse que a aplicação da tecnologia tem como foco o engajamento do cliente, depois operações de risco, compliance e segurança (25%), recursos humanos, marketing e operações de compras (25%) e tecnologia da informação (19%).
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) destacou, neste sentido, que a regulação da inteligência artificial já evoluiu muito desde a sua apresentação, demonstrando ser favorável ao projeto de lei Nº 2338/2023, aprovado no Senado Federal. "É importante estabelecer um marco legal com diretrizes claras para a aplicação da tecnologia, que promova o desenvolvimento socioeconômico e a inovação, em harmonia com as estruturas regulatórias já existentes e os direitos fundamentais", pontuou em nota.
O uso da IA é um desafio mundial na visão da Febraban, mas o sistema financeiro tem plenas condições para conciliar a tecnologia com as demandas sociais e legais de transparência, ética e segurança devido à maturidade e complexidade do ambiente regulatório que já atua.
DeepSeek: a nova frente da "guerra fria" da inteligência artificial
O lançamento da inteligência artificial chinesa DeepSeek, somado ao acirramento das tensões entre os Estados Unidos e países como a China, colocou o desenvolvimento da IA no centro do que muitos já chamam de “nova guerra fria” – uma referência à rivalidade indireta entre EUA e União Soviética após a 2ª Guerra Mundial, durante a segunda metade do século XX.
“A quebra de paradigma e recado, por assim dizer, do DeepSeek foi apelidado de ‘momento Sputnik’ da inteligência artificial, como uma referência ao marco histórico da corrida espacial, quando a União Soviética surpreendeu os Estados Unidos ao lançar o primeiro satélite em órbita”, acrescentou o advogado Roberto Reial Linhares.
O presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual, Mídias e Novas Tecnologias da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE) também mencionou as ações do atual presidente norte-americano Donald Trump, as quais deram destaque às grandes empresas de tecnologia (big techs) e ao empresário Elon Musk.
Os EUA chegaram a anunciar investimentos de US$ 500 bilhões em infraestrutura durante quatro anos na área de IA. O projeto, denominado Stargate, visa ser a maior iniciativa do segmento na história, reunindo as empresas Oracle, SoftBank Group e OpenAI. Não houve detalhamento de quanto cada uma investirá ou como irão captar recursos.
Até então, o poder da IA estava diretamente relacionado ao tamanho da infraestrutura disponível para o seu desenvolvimento nas grandes empresas, isto é, ao seu capital financeiro. “Quanto maior o número de chips – e a (multinacional dos EUA) Nvidia é a maior produtora –, servidores, data centers, dados e energia mais poderosa era a IA”, pontuou.
Um relatório da Universidade Stanford mostrou níveis sem precedentes de custos para treinamentos de modelos de IA em 36 países, na casa dos US$ 25,2 bilhões, em 2023. Somente o Google desembolsou US$ 191 milhões para a IA Gemini Ultra, ao passo que a empresa OpenAI gastou US$ 78 milhões com o modelo do ChatGPT-4.
É como se os EUA quisessem mostrar “como a IA é importante para o desenvolvimento” e “dar um recado de que o País detém o monopólio da IA Generativa (modelos que criam conteúdos novos a partir de outros dados)”, para Roberto. No entanto, o novo concorrente direto desse modelo, DeepSeek, desafiou o monopólio ocidental desenvolvido pelas big techs.
A principal surpresa foi o tombo de quase US$ 1 trilhão das big techs na bolsa de valores com a chegada do novo player, atrelado ao custo muito baixo que o DeepSeek afirmou ter tido para desenvolver a tecnologia, no valor de US$ 5,6 milhões. A companhia utilizou chips da Nvidia para reduzir custos. No cenário, países têm restringido o uso da plataforma.
Pesquisadores da área de segurança da empresa de soluções Cisco alertaram que o DeepSeek é vulnerável a ataques e manipulações. Com uma técnica de desbloqueio de dispositivo, denominado jailbreak, a IA chinesa não conseguiu barrar nenhum modelo prejudicial. Os concorrentes ChatGPT e Gemini tiveram resistência parcial.
De toda forma, especialistas veem uma revolução na IA com impactos para a economia, abrindo espaço para contribuições, tendo em vista o modelo de “código aberto” do DeepSeek, que permite acesso a qualquer pessoa em uma forma colaborativa. “Nos mostra que é possível construir modelos de IA com base em criatividade”, disse Roberto.
As mudanças de paradigmas e aumento de possibilidades pode fazer com que o Brasil invista em uma regulamentação voltada a códigos abertos, fomentando a criatividade. O advogado acredita que o País tem de investir em pesquisa e inovação, colocando a inteligência artificial em prol do auxílio na resolução de problemas da sociedade.
Porém, um alerta surgiu no mundo. Na última semana, o Google revogou seus princípios originais para desenvolvimento de inteligência artificial. A empresa excluiu o trecho que antes proibia o uso da tecnologia para construção de armas ou dispositivos de vigilância, deixando a IA mais permissiva. (Com Agências)