A virada do comércio internacional para o Oriente tem ganhado cada vez mais força nos últimos anos e um projeto em especial explica os porquês de os asiáticos estarem entre os principais vendedores ou compradores do planeta em diversas cadeias produtivas. Trata-se da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês) ou Nova Rota da Seda, que já movimentou US$ 1 trilhão entre 2013 e 2023 e se projeta com muita robustez na geração de novos negócios no mundo.
O projeto possui ações em diversas partes do mundo, como ferrovias entre a Ásia e a Europa, tráfego de embarcações em rotas não convencionais para promover novos pontos de negócios e empreendimentos de geração de energia e mineração. As aplicações envolvem o Banco da China e miram uma presença geoeconômica forte do país em locais estratégicos.
"Com sua presença cada vez mais consolidada na Ásia, África, Europa Oriental e agora América do Sul, o projeto propicia à China não apenas novos mercados, mas também influência política e acesso preferencial a matérias-primas e rotas comerciais estratégicas", aponta Larry Carvalho, advogado sócio da RC Law e presidente e cofundador da Youngship Brazil.
Mesmo o Brasil, que optou por não aderir ao BRI, deve se beneficiar dos negócios que permeiam as iniciativas, segundo Eduardo Maróstica, professor de Estratégia de Mercado e Visão Sistêmica e Dinâmica dos Negócios da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Ele diz que o aumento das exportações de commodities, como soja, minério de ferro, carne, e petróleo, para a China e outros países da Ásia se configuram como principal benefício. "A melhoria da conectividade portuária permitiria uma redução nos custos logísticos, otimizando o transporte e aumentando a competitividade do Brasil no comércio internacional."
Rebeca Oliveira, vice-presidente financeira do Complexo do Pecém, diz que os impactos dos investimentos chineses ainda não são mensurados, mas considera que "quanto mais conexões, melhor é para o comércio marítimo e para o Pecém". "No mercado de importação e exportação, isso pode fazer com que a gente fique mais competitivo quando comparado ao mercado do Sudeste. Quebra uma pernada, como a gente chama. Hoje, uma carga chega em Santos e tem que subir para o Nordeste. Com a carga chegando direto aqui, dá muita competitividade".
Os produtores beneficiados, enumera, podem ser as frutas frescas, frango, carnes e demais produtos que precisam de maior agilidade na distribuição para assegurar a qualidade no destino final, uma vez que a distância a ser percorrida será menor.
Entendimento compartilhado por Cristiano Koga, CEO da Modern Logistics. A empresa operou no Porto do Pecém um transbordo de cargas multimodal no ano passado, envolvendo tráfego rodoviário e o Aeroporto Internacional Pinto Martins. Com a seca do Rio Amazonas, eles usaram a infraestrutura para abastecer a Zona Franca de Manaus.
"Minha leitura é que vai haver, em um curto prazo, um redesenho das cadeias de suprimentos e aí eu vejo o Brasil se posicionando de uma forma extremamente estratégica aqui na região, tanto na América Latina quanto América do Sul. Principalmente na relação comercial com países como Argentina, Chile, Colômbia e até mesmo México com alguns acordos comerciais", cita.
Carlos Alberto Nunes, diretor comercial da Tecer Terminais, compartilha da visão de ambos, mas aponta o acirramento da competição com outros países como um possível complicador neste cenário futuro. Ele fala especialmente sobre o Porto de Chancay, no Peru.
O terminal tem 60% do controle da chinesa Cosco Shipping e foi alvo de US$ 3,4 bilhões em investimentos. Inaugurado em novembro do ano passado, o complexo portuário foi projetado para ser um hub de distribuição de produtos chineses na América do Sul, evitando o uso do Canal do Panamá, com um corredor direto para o Porto de Shanghai e influência até sobre a Zona Franca de Manaus.
No entanto, Carlos Alberto reconhece que há mais opções de conexões que colaboram com o Brasil e o Ceará. No Estado, a rota que conecta Pecém à China passa pela África e estabelece outras opções de negócios entre os cearenses e os destinos com os quais os chineses estabeleceram pontos de parada.
É com esta perspectiva que a secretária estadual Roseane Medeiros (Relações Internacionais) diz trabalhar. "Os chineses são extremamente ligados nisso de conexão. "Nós não temos que ter preconceito a quem se dispõe em investir no Ceará. Temos que abrir as portas, entender as necessidades e, se agregar valor à nossa economia."
Desde o início do governo de Elmano de Freitas (PT), conta a secretária, foram quatro missões na China, uma delas com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Já os setores em vista são, basicamente, energia renovável e educação.
Já a vinda dos chineses para prospectar negócios no Ceará são incontáveis. A última, na semana passada, foi promovida pela Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec) com quem o Conselho Chinês para a Promoção do Comércio Internacional de Dalian assinou memorando de entendimento para cooperação comercial, industrial e de investimentos.
Conheça a BRI/Nova Rota da Seda
O que é?
A Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês) ou Nova Rota da Seda é um projeto de desenvolvimento global chinês idealizado em 2013 e que mira ampliar a atuação do País nos demais continentes, com investimentos em infraestrutura (energia, transporte e mineração, principalmente) e novas relações comerciais.
O nome Nova Rota da Seda faz referência à Rota da Seda, uma rede de conexões que ligava o Oriente e o Ocidente antes do século XV D.C. e promoveu a conexão e troca de tecnologia entre os países envolvidos naquela época.
No portal dedicado ao projeto, a China lista mais de 150 países que aderiram ao BRI em todos os continentes do planeta, e cita o Brasil como um deles, mas o governo brasileiro optou por não fazer parte da iniciativa até agora.
Qual o impacto econômico esperado?
Até 2023, foram mais de US$ 1 trilhão investido pela China no BRI, do qual US$ 600 bilhões foram feitos por bancos chineses via empréstimos.
A partir desta investida, o Banco Mundial estima que o comércio da China com África e Europa aumente em 30% até 2030. Com as ferrovias, a China espera reduzir custos logísticos entre a Ásia e a Europa em até 12%.
O objetivo é criar novas rotas comerciais alternativas ao Canal de Suez, ao Canal do Panamá e às rotas tradicionais.
Quais as principais iniciativas?
Principal iniciativa na América do Sul
O Porto de Chancay (Peru) foi alvo de US$ 3,6 bilhões em investimentos e passou a ter 60% da operação de propriedade da chinesa Cosco Shipping. O terminal conta com um corredor econômico até o Porto de Shanghai e se tornou um hub logístico da China na América do Sul, distribuindo os produtos chineses nos países do continente, como alternativa ao Canal do Panamá.
Fontes: Banco Mundial, Banco China, Portal BRI, China-Britain Business Council e Governo do Perú
Investidas dos EUA buscam barrar influência chinesa
Ciente do avanço da China com a Nova Rota da Seda e as demais ações que escalam o país asiático como uma potência econômica rival, os Estados Unidos empreenderam investidas para barrar a influência chinesa. Já neste ano, sob o comando de Donald Trump, o Canal do Panamá e a Groenlândia foram os alvos preferidos.
A pressão americana resultou na saída do Governo do Panamá da BRI e na rescisão de contratos com operadores chineses. O canal, construído pelos EUA e entregue ao Panamá plenamente apenas em 1999, é ponto central de 180 rotas marítimas, que envolvem 170 países, 1.920 portos e contabilizou o trânsito de 9.944 embarcações em 2024.
O recuo dos panamenhos acalmou os ânimos americanos, os quais, agora, concentram-se na Groenlândia. Trump já falou em comprar o território da Dinamarca ou mesmo ocupar militarmente. O país localizado no polo ártico é considerado estratégico por dois motivos principais: a presença atestada em 2008 de metais raros e petróleo e a formação de rotas marítimas no Ártico a partir do derretimento das geleiras como reflexo das mudanças climáticas.
Entre 2013 e 2023, o fluxo de navios aumentou naquela parte do globo de 9,8 milhões de quilômetros para 20 milhões de quilômetros, sinalizando um potencial de conexão entre Ásia-Europa-Costa Leste Americana por percorrer 40% menos distância quando comparadas as que usam os canais de Suez e do Panamá.
"Se novas rotas marítimas pelo Ártico se consolidarem, o Brasil precisará adaptar sua estratégia. Isso não significa perda de relevância imediata, mas sim a necessidade de reinventar-se como um hub de transbordo sul-atlântico", analisa Larry Carvalho, advogado sócio da RC Law e presidente e cofundador da Youngship Brazil.
Já Fabiano Silva Távora, presidente da Comissão de Direito Internacional da Ordem dos Advogados do Brasil secção Ceará (OAB-CE), diz não enxergar na estratégia dos Estados Unidos ações que freiem a BRI.
"As investidas do Trump é para manter os mercados que ele ainda não perdeu e os que não quer perder. Algumas decisões que está tomando para manter os que estão em disputa são totalmente erradas", apontou, citando as medidas protecionistas que interferiram nas cadeias produtivas do aço em todo o mundo.
No caso da política de governo do Ceará, a secretária Roseane Medeiros (Relações Internacionais) reforça que não há motivo para escolha de lados ou optar por um país em especial, vide que os Estados Unidos são os principais parceiros na exportação e os chineses na importação.
Novo cenário pode ter o Nordeste como protagonista
A disputa das duas principais potências globais redesenhando o mapa de influência comercial pode ter o nordeste brasileiro, com destaque para o Ceará, em um papel de grande relevância, mesmo o Brasil estando fora de iniciativas como a Nova Rota da Seda, afirmam os analistas ouvidos pelo O POVO.
Eduardo Maróstica, professor de Estratégia de Mercado e Visão Sistêmica e Dinâmica dos Negócios da Fundação Getulio Vargas (FGV), aponta os portos de Pecém (CE) e Suape (PE) como principais beneficiados por uma dinâmica mais aquecida de comércio marítimo a partir da BRI.
Os portos de Itaqui (MA) e Salvador (BA) também são citados entre os terminais que podem tirar proveito dessa configuração, juntamente com os de Ceará e Pernambuco, segundo Vitor Yeung, advogado do Ciari Moreira Advogados.
A explicação está na localização estratégica em um país de dimensões continentais, o que coloca os terminais em vantagem na escolha dos armadores para pontos de parada e distribuição e transbordo. Aliados à infraestrutura multimodal, na configuração de um hub, os equipamentos podem se sobressaltar tanto nas ações relacionadas à Nova Rota da Seda quanto às novas rotas do Ártico.
"Estamos em meio a um redesenho das rotas e dos centros de poder do comércio mundial. Quem souber se posicionar estrategicamente, conectando-se com hubs e promovendo eficiência logística, terá lugar garantido neste novo mapa. O Nordeste brasileiro pode — e deve — ser protagonista nesse novo cenário. Mas isso exige visão de longo prazo, pragmatismo e coragem para competir globalmente", diz Larry Carvalho.
Para ele, "o Ceará, com sua excelente localização e ambiente de negócios favorável, tem tudo para participar dessa transformação — desde que haja planejamento integrado, visão internacional e políticas públicas voltadas à atração de cargas e armadores".
Trabalho que vem sendo feito, segundo destaca Rebeca Oliveira, vice-presidente financeira do Complexo do Pecém. Ela menciona os preparativos feitos mirando o início da operação da ferrovia Transnordestina e também a captação, juntamente com os operadores, de rotas que envolvem a China entre as ações.