ODia da Libertação, como foi batizado o dia 2 de abril pelo presidente Donald Trump ao impor tarifas aos parceiros comerciais dos Estados Unidos, foi o estopim para que as principais economias do mundo anunciassem quebras de acordos, retaliações e apoios a partir dos quais uma nova ordem econômica mundial se projeta.
Responsável por movimentar pouco mais de US$ 800 bilhões com importações entre janeiro e fevereiro de 2025, Trump fez uma jogada considerada arriscada, que pode fazer com que o peso dos EUA no comércio internacional seja comprometido, se as taxas forem cumpridas a cabo.
Na prática, ele calculou as perdas dos americanos em diversas atividades produtivas e estabeleceu a sobretaxa para, segundo ele, reequilibrar a economia americana, fazendo "a América rica novamente" com uma espécie de "declaração de independência econômica".
"Nós não podemos deixar de reconhecer que o Estados Unidos é uma liderança global e o que se pensa lá, de uma certa forma, tem impacto no mundo todo. Mas a verdade é que nós vivemos uma mudança, uma nova ordem mundial, estamos falando sobre isso", descreve Roseane Medeiros, secretária de Relações Internacionais do Governo do Ceará.
Como os demais líderes mundiais, ela também não encontrou a lógica que motivou os percentuais aplicados por Trump, os quais variam de 10%, caso do Brasil, a 50% - caso de Saint-Pierre e Miquelon (coletividade de ultramar da França) e Lesoto (África), uma vez que "não deu para saber exatamente quais os critérios que foram utilizados e como é que chegaram a esses percentuais".
O economista e doutor em Relações Internacionais Igor Lucena observa, no entanto, que a jogada de Donald Trump, apesar do barulho causado na última semana, é conhecida do mercado por chamar a atenção para renegociar as condições caso a caso, muitas vezes, sequer efetivando as tarifas anunciadas. Se vai conseguir atingir os objetivos, é outra história.
"Tudo depende de como vão ser as respostas dos outros países. Nós estamos na porta de uma guerra comercial. Se as nações vão para negociações caso a caso, significa que a estratégia dele está certa, o risco de recessão cai e vamos ver uma volta radical dos mercados. Agora, se as tarifas aumentam na Europa, na China e ninguém cede, ninguém negocia, aí realmente há o perigo de recessão."
Perguntado sobre o posicionamento chinês de acionar a Organização Mundial do Comércio (OMC), também mencionado pelo governo brasileiro em algumas ocasiões, Lucena diz não ver mais legitimidade em órgãos internacionais como a OMC para mediar conflitos desse porte.
"Aquela ideia do mundo plano, de buscar as matérias-primas e ver onde tem mais competitividade, isso aí foi abalado e ninguém quer mais ficar na dependência de um outro país", observa Roseane.
A lógica usada por Trump para aplicar os percentuais, explica o economista Ricardo Coimbra, mensura o que, no entender do presidente dos Estados Unidos, está descompensado em relação aos americanos.
"Ele está mudando como se gerasse uma perspectiva de disputa em mercados onde tem algum tipo de desequilíbrio e essas tarifas diferentes são utilizadas exatamente para gerar algum tipo de reequilíbrio nas relações. Ou seja, é como se ele estivesse querendo romper todas as relações de comércio em setores específicos de atividade de acordo com as suas características específicas", considera.
Mônica Luz, coordenadora do Núcleo de Práticas em Comércio Exterior da Universidade de Fortaleza, avalia que a retórica de Trump interpreta o tarifaço como forma de "corrigir práticas ileais que ele vê com relação à transferência de tecnologia."
Ciente do risco que a economia brasileira corre a partir das medidas, o governo brasileiro agiu em parceria com o Congresso em um projeto de reciprocidade tarifária capaz de unir governo e oposição como nunca antes na história recente do País.
O projeto, no entanto, já nas mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para sanção, foi freado após o Brasil ser colocado juntamente com os países de menor taxação entre as aplicadas pelos Estados Unidos.
"A medida é boa para a defesa nacional do ponto de vista institucional, mas eu não acho que ela deve ser feita. Expandir o sistema de reciprocidade contra os Estados Unidos pode instigar o governo americano a aumentar a tarifa e colocar todo mundo em situação pior", diz Lucena.
Países reagem, mas Trump ignora revanches
Negociações para aliviar as tarifas anunciadas por Donald Trump ocorrem nos bastidores, mas o presidente dos Estados Unidos ignora o colapso das bolsas e acusa a China de ter entrado em pânico.
Pequim anunciou na sexta-feira, 4, que vai impor tarifas aduaneiras adicionais de 34% aos produtos americanos a partir de 10 de abril. Também anunciou controles de exportação de terras raras, incluindo o gadolínio, utilizado para a ressonância magnética, e o ítrio, usado na eletrônica.
A resposta da China aumentou os prejuízos nos mercados financeiros, já sacudidos pelo último anúncio de tarifas americanas, que se traduziu em 10% para a maioria dos produtos a partir de sábado, 34% para a China e 20% para a União Europeia (UE) a partir desta semana.
Trump já havia imposto taxas de 25% sobre o aço e o alumínio e, na quinta-feira, dia 3, entraram em vigor outras de 25% sobre automóveis e seus componentes importados para os EUA. Com exceções para o México e Canadá por serem parceiros do Tratado de Livre Comércio da América do Norte.
"A China se equivocou, entrou em pânico. A única coisa que não podiam se permitir fazer", escreveu Trump em letras maiúsculas em sua rede Truth Social antes de ir ao seu clube de golfe na Flórida.
O governo americano alertou seus parceiros comerciais para não responderem às tarifas, para não correrem o risco de sofrer taxas adicionais. Europa, Canadá, Japão e Coreia ensaiam medidas também.
Úrsula Von der Leyen, chefe da Comissão Europeia, afirmou que o tarifaço gera uma "espiral de incerteza", levando consequências "terríveis para milhões de pessoas ao redor do mundo".
Já o Canadá empreende uma campanha contra produtos americanos desde que Trump citou o país como mais um estado americano. Japão e Coreia do Sul, ambos parceiros históricos dos EUA, também ensaiam uma reação ao tarifaço. (Com AFP)
Tarifaço abre oportunidades para o Ceará
A nova dinâmica para o comércio internacional que se abre após o tarifaço de Trump pode, apesar do impacto sobre a produção de aço cearense, impulsionar atividades produtivas no Ceará e criar novas oportunidades de negócios. O setor de calçados, no qual o Estado figura como o segundo maior produtor do País, foi o primeiro a sinalizar a possibilidade de ganhar espaço no mercado americano.
Mas a inconsistência com que as medidas foram anunciadas pelo governo americano ainda não dão segurança para se formar uma lista de segmentos que podem se beneficiar do novo fluxo, diz Roseane Medeiros, secretária de Relações Internacionais do Estado do Ceará.
"Porque o fato de as tarifas terem sido anunciadas agora, não quer dizer também que não haja correções no futuro. Mas dentro dessa nova configuração mundial, hoje, o calçados é um dos setores que pode se beneficiar e o vestuário também, uma vez que Bangladesh e Vietnã são grandes produtores destes artigos e foram taxados em mais de 60%", explicou.
Fora do raio de interferência de ação dos Estados Unidos também surgem oportunidades de amparar a indústria siderúrgica cearense, diz Cesar Ribeiro, diretor de Novos Negócios e Relações Internacionais da Colibri Capital. O produto, recorda, representou 37% das exportações cearenses, totalizando US$ 545 milhões, dos quais mais de 80% (aproximadamente US$ 438,2 milhões) foram destinados ao mercado norte-americano".
"Isso traz oportunidades para o Brasil e consequentemente para o Ceará. Embora as tarifas dos EUA representem um desafio, o Ceará pode transformar esse cenário em uma oportunidade de expansão global", observou, apontando a estratégia de busca por "novos mercados para compensar a perda dos EUA, fortalecendo parcerias com China, Europa e outros países".
O acordo Mercosul-União Europeia, apontado como um dos novos focos dos europeus, "pode permitir maior competitividade do aço cearense na Europa", segundo ele. Da mesma forma, "parcerias comerciais com nações em crescimento, como Nigéria e África do Sul, podem abrir novas oportunidades."
Ribeiro ainda avalia que "a diversificação dos mercados pode atrair investimentos estrangeiros para modernização da indústria siderúrgica no Ceará", o que tem na localização estratégica do Estado, a infraestrutura do Porto do Pecém e no amparo e estímulos da Zona de Processamento de Exportação (ZPE) um ambiente acolhedor.
São estes potenciais que Roseane aponta como o apoio do qual o Ceará dispõe para amparar a indústria que foi impactada pelo tarifaço e também a que deve tirar benefícios da nova ordem econômica.
"A gente tem que pensar mais no que é estratégico para nós. Para o mundo, essa parceria com a China é importante, porque se os Estados Unidos taxarem a China, a China taxar os Estados Unidos, alguma coisa pode sobrar para nós", arrematou.